Afastados de tudo, apreciam musica em frente da lareira da biblioteca. As palavras atrapalhariam o contemplativo silêncio que enche a biblioteca, vazio de palavras por ambos tão desejado. Não sabiam que dizer, que tumulto trazer à ribalta de entre o turbilhão de tumultos que a ambos preenchia.
John remoía a morte dos pais, e para afastar esses pensamentos nefastos concentrou-se em analisar aquilo que sabia de Diogo. A verdade é que Diogo nunca falava de si. John havia partilhado com ele a sua historia, pedaço por pedaço. Diogo ouvia, empatizava, mas não retribuía a partilha. John sabia como Diogo era, mas não de onde vinha. Conhecia Diogo ao ponto de terminar as suas frases sem pensar, mas não sabia nada do passado ou do presente de Diogo alem do tempo de escola e do tempo que passavam juntos.
Havia uma questão a começar a formar-se na mente de John. Diogo vivia com o pai, de momento ausente em trabalho, e com os avós paternos com quem John havia jantado pouco antes. No entanto, onde estaria a sua mãe? Deveria perguntar? Iria remexer onde não devia?
Perguntas sem resposta que pairavam na cabeça de John, evidentes na sua expressão, absorto, alheio ao seu redor, perdido nos seus pensamentos.
Um copo de um liquido de côr âmbar foi-lhe estendido, captando por fim a sua atenção.
- Bebe scotch, pode ser que te solte a língua.
A expressão neutra de Diogo mascarava a preocupação e a curiosidade. Assim que John pegou no copo, Diogo desapareceu do seu campo de visão. John ouviu a musica parar e ser substituída por novos acordes para si estranhos. Sentiu Diogo sentar-se na poltrona ao lado da sua. Levou o copo aos lábios, sentindo o incendiante calor da bebida a descer até ao estômago, numa benvinda onda interna de chamas.
"Summer is miles and miles away, and no one would ask me to stay." A letra da musica escolhida por Diogo chamou-lhe a atenção.
- Estou a espera.
Diogo soltara a frase com uma fria naturalidade a que John já estava habituado. Diogo sabia que John estava com algo em mente. Lançou o isco, pedindo à sua maneira que John partilhasse o que lhe atormentava a alma.
- Posso fazer uma pergunta estranha?
- Alem dessa?
- Sim.
- Diz.
- É um assunto delicado.
- Diz de uma vez.
- A tua mãe?
- Não faço ideia. Era isso?
- Hum hum... Como é que não fazes ideia?
- Não tenho memorias dela. Desapareceu do mapa quando eu era um bebé. Cresci com o meu pai e os meus avós, não conheço a família dela.
- Não tens curiosidade?
- Terias curiosidade em conhecer alguém que abandona um bebé para ir em busca de seja o que for?
- Acho que não.
- Eu fui deixado para trás. sacrificado por motivos que desconheço, deixado à minha sorte, com perguntas sem resposta possível. Tento não pensar nisso.
- Eu não era muito chegado aos meus pais, mas ainda assim. Pelo menos conhecia-os. Sabia que tinham feito tudo o que podiam pelo meu bem estar. Foi difícil?
- Não penso muito nisso, como te disse. Tive outras coisas em que pensar. Preocupa-me mais ser discriminado pela minha inteligência que recordar-me de quem me abandonou.
Diogo acaba a frase, acende um cigarro e engole um longo trago do conteúdo do seu copo.
- Já tinhas falado de seres discriminado. Queres falar sobre isso?
- Não há muito a dizer. Inteligência não é benvinda nos dias de hoje. Já deves ter reparado no quão ingrato pode ser este país. Algo que saia de uma norma estabelecida há dois séculos atrás é criticado, ostracizado, forçado a escolher entre a sua personalidade e a aceitação na sociedade em geral. Eu escolhi a primeira e paguei com a segunda. Nem sei bem que te dizer. Sempre estive sozinho, tolerado como engraçado pelos adultos, condenado como "chico-esperto maniento" pelos mais jovens.
- Nunca agiste como um "chico-esperto", como lhe chamas.
- Dizes isso porque partilhas a minha sede de conhecimento e a minha vontade de superar-te a ti mesmo. Somos a excepção, meu caro, não a regra.
- Como vives com essa raiva, essa dor dentro de ti? És tão jovem...
- A minha idade não passa de um numero. A maioria não me daria esse numero se não me conhecesse fisicamente. Sou um adulto num corpo de menino, forçado a crescer demasiado rápido para sobreviver. Já tive que me defender antes, terei que o fazer novamente. Foste uma lufada de ar fresco, um interlúdio na dor que um dia irá embora, do qual me restarão memórias e saudades, mas que partirá sem olhar para trás.
- Não acredito que penses mesmo isso.
- Porque não? Eras popular. Tens duas ou três miúdas atrás de ti, és social, coisa que eu nunca aprendi a ser. Não precisas de mim para nada, John.
- Quem estava lá, a apanhar os estilhaços da minha vida e a ajudar-me a superar a dor? Não foram eles ou elas, idiota, foste tu. Tens razão. Um dia os nossos caminhos vão provavelmente separar-se. Mas, desde que te conheço até ao dia de hoje, eu mantenho a mesma ideia.
- Que ideia?
- És o melhor ser humano que já conheci.
- Tretas.
- És um idiota. Como raios alguém como tu tem tão pouca confiança no seu impacto nos outros?
- Talvez por nunca ter tido impacto.
- Não acredito nisso, Diogo. Tiveste comigo. Tens impacto em todos os que se cruzam no teu caminho, mesmo que não te apercebas.
- Talvez...
Diogo não acreditava na teoria, mas não tinha vontade de argumentá-la. Despeja o restante do copo e levanta-se para reabastecê-lo.
- Que raios queres dizer com há duas ou três miúdas atrás de mim?
- A Marta, a Diana, e desconfio que a Sílvia também.
- Onde foste buscar essa ideia?
- Infelizmente, não tenho a habilidade de escolher o que ouço ou não. Ouvi vários comentários.
- Lamentavelmente, não estou de todo interessado.
- Porque não? São miúdas giras até.
- Podiam ser top-models, o resultado seria o mesmo. Não há nada nelas que me atraia.
- Já tiveste namoradas?
- Já. Tu não?
- Não deve ser difícil de deduzir que não. Sou demasiado jovem, e é como uma criança que todos me vêem.
- Eu não te vejo como uma criança.
- Talvez. Mas já te disse que és a excepção.
- Alguma vez beijaste alguém?
- Não nesse sentido.
- Nem mesmo em criança, algo inocente?
- Nah, nada.
- Pena.
- Porquê?
- Acho que deves dar optimos beijos.
- Onde raios foste buscar essa ideia?
- A tua empatia, aquela que tanto escondes do resto do mundo. Diria que irias sempre colocar o outro em primeiro lugar.
- Talvez.
- Merda para o talvez. Eu não duvido de tal.
- Honestamente, nenhuma das miúdas que conheço me chama a atenção.
- Sério? Não há nem uma que aches mais gira ou mais atraente?
- Não, nem por isso. Sou o estranho.
Diogo pausou para puxar um longo bafo do seu cigarro semi-esquecido, antes de murmurar o termino da frase.
- Como sempre...
- Raios de atitude. És uma influência positiva nos que te rodeiam, mas vês-te como uma nódoa.
- Que queres que te diga a isso? Foi o que me mostraram durante todo o tempo.
- Eu nunca te tratei como uma nódoa.
- És a excepção, não me obrigues a continuar a repetir isso.
- O teu pai alguma vez te tratou como uma nódoa?
- Até agora não.
- Isso quer dizer que esperas que o faça?
- Eventualmente.
- Nem toda a gente te quer mal, sabes?
- Apenas a maioria.
- Irra. É impossível demover-te, não?
- Bem, sou uma pessoa razoável. Se há argumentos que indiquem que estou errado, após ouvi-los e ponderá-los, posso mudar de opinião.
Foi John a permanecer em silêncio. Havia obviamente motivos que o levavam a pensar que Diogo estava errado. Mas na cabeça de John, ele sabia que Diogo iria ouvir, contra-argumentar até deitar por terra os seus argumentos, e manter a sua ideia. Era o que normalmente via acontecer sempre que Diogo resolvia argumentar algo com alguém. Lembra-se das aulas de filosofia e dos debates organizados pela professora, recorda a forma como Diogo conseguiu uma vez levar a turma e a professora a ver um lado diferente desse tão mal-afamado tema, o suicídio.
Diogo defendeu a sua posição com uma implacável calma e um sempre presente sorriso de desafio. John recorda-se do brilho nos olhos de Diogo a intensificar-se a cada resposta sua, o impacto destas evidente nas faces de cada um dos presentes.
"A única questão realmente importante na filosofia é se devemos ou não cometer suicídio. A ausência de um Deus, de uma recompensa final, torna a vida num percurso entre dor, tédio e a desilusão da falta de propósito de tudo isso. O facto de cada um lidar com essa dor de forma diferente pode mudar a resposta de cada um, mas a pergunta permanece como a única com mérito de análise de uma disciplina que perdeu a maior parte dos seus campos de intervenção para ciências dedicadas que emergiram entretanto. Estou errado?"
John recorda como aquela argumentação final terminou o debate. No fundo, todos ficaram tocados por tal, mesmo não querendo admiti-lo. E no final, ninguém sabia qual a real opinião de Diogo sobre o assunto. Ao recordar este pequeno episódio, John sabia o quão inútil seria argumentar com Diogo algo em que ele acreditava. Era praticamente impossível demovê-lo, e quando o argumento acabava, Diogo normalmente estava na mó-de-cima, invalidando a sua alteração de opinião. John permanecia em silêncio, procurando uma forma de mostrar a Diogo o que ele precisava ver. Palavras seriam inúteis. Não podia simplesmente contar que o tempo mostrasse a Diogo que este estava errado. O seu tormento de Diogo destrui-lo-ia antes de o tempo o provar errado.
Levantou-se, encheu o seu copo até ao topo e voltou a sentar-se.
- Ficaste chateado?
- Não. Estou a pensar em como te mostrar o que preciso que vejas.
- Que precisas que eu veja?
- Que estás errado em relação a ti.
- Em que sentido?
- Quase todos.
- Prova-o.
- Como se eu não soubesse que vais refutar os meus argumentos. Geniozinho teimoso, tu.
- Não sou nenhum génio.
- Irra... Aceita a merda do elogio.
Riram juntos. Beberam mais um pouco, observando as chamas da lareira.
- Porque dizes que ninguém te atrai?
- Nunca disse que ninguém me atraia. Disse que não tenho real interesse em nenhuma das miúdas que conheço. Além disso, porque raios iria adicionar um desgosto de amor à minha lista de dor?
- Talvez esse desgosto, mesmo que viesse a acontecer, acontecesse na sequência de boas memórias suficientes para, balanços feitos, o impacto total ser positivo.
- Não sei que te responder a isso.
- Wow. Sem palavras, por uma vez?
- Hum hum.
John levanta-se da poltrona, pousa um joelho no chão em frente de Diogo e fixa os seus olhos nos dele.
- Talvez...
- Talvez o quê?
- Talvez alguém te devesse provar o quão importante és.
- É? E quem o iria fazer?
John não responde. Durante segundos, um sorriso confiante e perverso preencheu o seu rosto.
Diogo observava o sorriso, intrigado com o que passaria naquele momento na cabeça de John, a voz deste adicionando ainda mais à sua curiosidade.
- Vou arrepender-me disto...
- De quê?
Sem uma resposta, sem um momento que pudesse incitar uma reacção, John foi rápido demais numa acção que temia e desejava há algum tempo. Os seus lábios encontraram os de Diogo, sentindo finalmente um toque há muito fantasiado e desejado, há demasiado tempo reprimido.
Os lábios de Diogo responderam por instinto ao beijo inesperado, apreciando a desconhecida sensação de prazer e bem estar que este lhe proporcionava.
Os segundos fundiam-se, e nenhum dos dois sabia bem quanto tempo passara quando por fim os lábios de ambos se separaram.