domingo, 16 de março de 2014

Suspensão

John encontrou Ema na sala de professores, ocupada a preparar aulas, sozinha. Ema gostava do sossego da sala de professores durante o primeiro tempo. Os colegas que não tinham aula a essa hora chegavam mais tarde, os restantes encontravam-se nas respectivas salas com as suas turmas, permitindo-lhe quase duas horas de sossego para preparar aulas ou tratar de assuntos referentes à direcção da turma a si entregue.
Estranhou ouvir bater na porta, mas respondeu.
 - Entre.
John abriu a porta, percorrendo a sala com o olhar.
 - Entra, John. Precisas de algo, querido? Não devias estar na aula?
John entrou, fechando a porta atrás de si.
 - O Diogo voltou.
 - Onde está ele?
 - No café. Pedi-lhe para esperar enquanto eu vinha avisá-la. Ele queria ir à aula. Fui eu que disse que era melhor falar consigo primeiro.
 - Fizeste muito bem. Eu quero falar com ele antes de ele entrar no recinto. São quase 9 horas. Dá-me um momento enquanto arrumo esta confusão. Esperas por mim junto ao portão da escola, por favor?
 - Com certeza.
John saiu, seguindo para o portão da escola. Ema arrumou o material na pasta, guardando-a no seu cacifo. Apanhou o porta moedas, o isqueiro e o maço de tabaco e apressou-se a ir ter com John. Precisava perceber o que se passara com Diogo.
Ema estava a arriscar a posição dela, o seu emprego e a sua estabilidade ao proteger aqueles dois. Aos 38 anos, Ema tivera um punhado de grandes alunos. Recordaria cada um deles até ao final dos seus dias. Mas havia algo naqueles dois que fazia com que ela estivesse disposta a arriscar-se por eles. Menos de seis meses, e eles haviam conquistado o coração dela. Ema sabia que não haviam sido eles a começar a situação. Falara com todos excepto Jace. Ninguém ousou mentir-lhe. Temiam Jace. O director estava furioso, exigia suspensão igual para todos. Isso incluía Jace. Tratava-se de passar uma mensagem. Violência não seria tolerada dentro do recinto. E agora Ema teria que ser o corvo da tempestade, teria que dizer a um dos seus meninos prodígio que iria ser suspenso por ter defendido quem amava.
Saiu do portão da escola, acendendo um cigarro. Fez sinal a John para indicar o caminho, e seguiu-o sem dizer uma palavra.
Apagou o cigarro, inspirou fundo e atravessou a porta do café. Dentro, o ambiente era escuro, parcamente iluminado, o contraste com o ambiente exterior cegando-a momentaneamente até os seus olhos se adaptarem à penumbra.
 - Bom dia. Posso servir-lhe algo?
A voz doce da dona Céu, acolhedora e simpática, surpreendeu Ema.
 - Bom dia. Procuro um rapaz...
Céu cortou-lhe a frase a meio.
 - O Jace está lá em cima, sala do fundo. O John sabe disso. Presumo que você seja a directora de turma. Ema, certo? Você parece ter visto um fantasma, Ema. Está pálida, como quem não tem orgulho do que vai fazer. Sim, eu sei. Não vale a pena dizer-me que eu não devia saber disso só de olhar para si. Demasiados anos a dar de beber a almas atormentadas. Suba. Vou fazer-lhe um chá. Lembre-se, estes dois são importantes. Você pode ajudá-los. Faça-o.
 - Como...
 - Shiu... vá lá falar com o Jace. Já lhe levo o chá. John, podes ajudar-me a mudar o barril de imperial por favor?
John acenou afirmativamente, e Ema subiu as escadas. Atravessou a primeira sala e encontrou Jace na seguinte, encostado à parede, fumando um cigarro de olhos fechados.
 - Bom dia, Ema.
 - Bom dia, Diogo. Como te sentes?
Jace puxou mais um bafo, sustendo o fumo nos pulmões um longo momento, libertando-o em vários anéis de fumo.
 - Confuso.
 - Confuso?
Jace suspirou.
 - Acordei de manhã a pensar que era terça-feira. Chego aqui e descubro que é quinta, que passei dois dias e meio inconsciente, que me envolvi numa luta que não recordo por mais que tente, que pela primeira vez usei o que sei fora do dojo, para defender alguém que me é querido, e que, devido a tal, vou ser suspenso, ou expulso, quando não fui eu ou o John a começar seja o que for. Não acha suficiente para me sentir confuso?
Ema demorou uns momentos a responder. Não podia imaginar o que se estava a passar dentro da cabeça de Jace naquele momento.
 - Diogo...
 - Fora das aulas, chame-me Jace, Ema. Deixemos de formalidades.
 - Muito bem. Jace, o que te lembras daquela tarde?
 - Fui aos correios a correr depois da sua aula. O John foi almoçar sozinho. Quando entrei na escola de novo vi um grupo em volta de John. A única coisa que me lembro é ver John levar um soco. Tenho um flash do John a olhar para mim apavorado. Mais nada.
 - Jace... aquilo que tu fizeste...
 - Foda-se, Ema. Aquilo que eu fiz, segundo o John me contou, foi defender quem gosto. Aquilo que aconteceu foram os últimos 5 anos de dor e humilhação a virem acima. Eu sobrevivi a isso. E eu não vou deixar que o John passe pelo mesmo. E se não posso racionalizar com eles, talvez esteja na hora de lhes mostrar que não são tão fortes quanto pensam. Cansei de engolir em seco, Ema. Cansei de me restringir e deixar os idiotas fazerem o que querem. Eu sou melhor que eles em tudo, e estou farto de ser apontado por isso. Eu aguento muito. Mas não aguento ficar parado enquanto os que me são importantes são magoados quando eu tenho a capacidade de os defender.
 - Eu não te culpo pelo que fizeste, Jace. Pelo contrário. Eu falei com o teu pai. Ele contou-me dos treinos, e contou-me aquilo por que tu passaste. Tu, tal como o resto, estás suspenso até amanhã. Para mim, e para o director, é irrelevante se passaste metade da tua suspensão inconsciente. Eu lamento, mas não consegui evitar que apanhasses suspensão. Mas há outra questão, Jace. Não podes vir novamente com armas para a escola.
 - Isso implica que eu não posso vir à escola. O meu corpo tornou-se uma arma, Ema.
 - Menos, Jace, menos. Nada de correntes escondidas, só isso. Tens uma sorte enorme em legalmente não existir nada que preveja a ilegalidade das tuas correntes. Felizmente, nenhuma lei te impede de as carregar contigo. Faz isto por mim, Jace. E por ti.
 - Sem promessas. Posso pensar em deixar de trazer as correntes, mas já disse. Eu sou uma arma.
 - Jace, esquece. Cumpre isto. Não tragas as tuas correntes, só isso. Não sou eu a dizê-lo, é ordem do director.
 - Eu compreendo.
 - Não podes ir ás aulas até segunda-feira.
 - Mas hoje é dia de clube de informática.
 - Também não podes ir hoje. Vai para casa. Descansa. Voltas segunda-feira, fresco e de baterias carregadas.
 - Só tenho autocarro às 6 da tarde. Normalmente nas quintas o meu pai vem buscar-me depois do clube.
 - Queres que te deixe em casa? Não moras assim tão longe, consigo deixar-te e voltar a tempo da aula.
 - Bem, talvez seja melhor.
 - Sendo assim, anda, senão chego atrasada e esta semana já está um caos suficientemente grande sem eu ter que justificar uma falta minha.
 - É só pagar o pequeno almoço e despedir-me da dona Céu e do John.
 - Sem problema. Jace...
 - Sim?
 - Bom trabalho.
Jace pagou, deu um beijo rápido a John e outro à dona Céu e saiu com Ema. Tinha um fim de semana prolongado pela frente. Arranjaria certamente algo com que se entreter.


domingo, 2 de março de 2014

Problemas

Ao lado de John, Jace não sentia dor ou vazio. Sentia felicidade. Sentia-se especial e gostava de tentar demonstrar que John também era especial para si. Jace não sabia até aí o que era ser feliz, o quão bom, quão sublime é amar e ser amado. Porque mais do que a paixão que havia dentro de si, o que mais existia era amor. Empatia, familiaridade, afinidade... Mas sobretudo amor. E para ambos, o amor que sentiam e partilhavam era novo e excitante e perfeito no facto de eles serem tudo um para o outro.
Mas toda a perfeição e felicidade eventualmente atrairia atenção externa, e depois da atenção a descriminação depressa se generalizou. Já nem importava quem testemunhara aquele beijo, a verdade é que na segunda-feira seguinte já toda a escola sabia dele. Não tardaram a notar os comentários quando passavam. Jace e John passaram a odiar ainda mais segundas-feiras.
Durante toda a manhã ouviram outros a chamar-lhes paneleiros, rabetas, panilas, entre um chorrilho de outros insultos murmurados. Era impossível não notar. Falavam sempre baixo, mas garantindo que a eles seria perceptivel.
Coincidência, destino ou mero azar, David pedira a Jace que lhe fosse colocar um envelope no correio antes das 13:00. Devido ao pedido, assim que saíram da aula da directora de turma as 12:45, John foi almoçar, enquanto Jace corria para apanhar os correios ainda abertos antes da pausa para almoço. Jace fez o percurso remoendo a raiva, imprimindo-a no passo rápido e pesado.
Conseguiu chegar aos correios nuns dez minutos e enviar o envelope a tempo.
Voltou o mais rápido que pôde, esperando apanhar John ainda a almoçar na cantina. Além disso, a raiva dera-lhe fome.
Entrou na escola, seguiu para a cantina. Ou pretendia seguir, não fosse a pequena multidão que se juntara no pátio. Viu John no centro. Viu John levar um soco.
A próxima memória de Jace era o olhar aterrorizado de John ao olhar para si. Havia um peso familiar nas suas mãos. Desmaiou, o seu ultimo reflexo o de agarrar com a vida o peso em suas mãos.
(...)
Acordou na cama. Olhou o relógio na mesa de cabeceira, os dígitos vermelhos sobressaindo no escuro. 3:00 da manhã. Voltou a fechar os olhos. Não interessava, podia dormir mais um pouco.
(...)
Acordou com o despertador. Horas de banho, pequeno-almoço à pressa e correr para o autocarro. Rotina matinal em piloto-automático. O despertar efectivo de Jace viria mais tarde, não precisava de estar muito consciente para a rotina. Beijinho de bom dia à avó. Leite com café e torradas. Sair a correr de casa com a mochila. Apanhar autocarro. Colocar phones e ligar musica. Dormitar encostado à janela do autocarro. Descer. Caminhar em direcção do café. Sentar. Esperar. Mexer. Beber. Bom dia, John, bom dia, Dona Céu.
 - Bom dia, John. Bom dia, dona Céu. O que vamos ter, John?
 - História.
 - História? Isso é às segundas e quintas.
 - É quinta.
 - Não! É terça.
 - Jace, qual é a tua ultima memória?
 - Acordar? De manhã?
 - E antes disso?
Lembrava-se de segunda-feira. De ver John levar o soco. Do olhar aterrorizado dele. Do peso. De perder os sentidos e ter acordado de madrugada. Nada mais. O choque era evidente na sua expressão.
 - Lembro-me de te ver levar um soco. De te ver a olhar para mim como se tivesses medo de mim. De perder os sentidos logo após. Devo ter desmaiado.
 - Não te lembras de mais nada?
 - Não. Que aconteceu?
 - Desmaiaste. Estiveste no hospital. Foste para casa na segunda à noite. Estiveste inconsciente terça e quarta.
 - O QUÊ?!
 - Lembras-te da luta?
 - Que luta?
 - Não te lembras?!
 - Não me lembro de nada, só do que te disse. Que luta estás tu a falar?
Foram interrompidos pela dona Céu.
 - Vão lá para cima, estão mais sossegados. Tostas de frango e dois galões?
 - Sim, acho que ficamos por aqui, não vamos à aula. Anda Jace.
Subiram para a sala do fundo.
 - John, conta-me tudo o que sabes. Desde que eu saí de perto de ti em matemática.
Havia uma sombra no rosto de John. Acendeu um cigarro, revendo mentalmente a sequência de eventos. Fumou metade dele antes de começar a falar.
 - Tu saíste depois da aula. Eu fui almoçar.
Parou. Inspirou fundo.
 - Vinha a atravessar o pátio para vir para aqui. Pensei que te devia encontrar pelo caminho. Bloquearam-me o caminho, começaram a empurrar-me, chamaram-me nomes, a mim e a ti. Um deles deu-me um soco e eu caí. Foi quando tu apareceste. Meteste-te à minha frente, entre mim e eles. Tinhas as mãos na cintura. Não disseste nada.
 - Não me lembro de nada disso.
 - Tentaram provocar-te, mas sem resposta tua. Um deles tentou dar-te um murro. Só aí tu reagiste. Foste bastante rápido. Só depois me apercebi do que tinhas tirado da cintura. Atiraste uma corrente ao braço dele, ela prendeu e tu puxaste, deixando-lhe um pé à frente. Ele desequilibrou-se, tropeçou e caiu de cara no chão. Dois dos amigos dele foram na tua direcção. Atiraste a corrente à cabeça de um, apanhaste-o na têmpora. Acho que ele desmaiou. Deste uma pegada no estômago do outro, seguida de uma pancada com a outra ponta da corrente na testa dele. Toda a gente ficou abismada, sem reacção. Estávamos todos assustados depois de te ver em acção. Parecia que não estavas ali. Eu tentei agarrar-te e tu viraste-te a mim como se fosses eliminar-me também. Olhaste para mim, e depois desmaiaste.
 - Lembro-me só de olhar para ti, e de sentir as forças a desaparecerem do meu corpo.
 - A cena gerou demasiada confusão, os professores aperceberam-se. Eu, tu e eles os três fomos para o centro de saúde. Tu ficaste. Fomos examinados. Ninguém tinha nada partido, mas um deles tem vários arranhões na cara de ter caído.
 - Que aconteceu depois?
 - A Ema falou conosco, todos juntos e depois um a um. Quer falar contigo também.
 - Quão dura foi contigo?
 - Eu safei-me. Eles os três ficaram esta semana de suspensão.
 - Alguém se meteu contigo depois disso?
 - Não. O pessoal ficou chocado.
 - Chocado com quê?
 - Jace, tu desfizeste três tipos do ultimo ano, com um ar de quem nem percebeu o que aconteceu, e desmaiaste em seguida. Como se estivesses noutro mundo. Onde raios aprendeste aquilo?
 - O quê?
 - Aquilo que fizeste com a corrente-
 - Ah! Ninjutsu. Pratico aos fins de semana desde pouco depois de ter entrado para a escola.
 - Não me tinhas dito nada.
 - Não digo muita coisa.
 - Nota-se, senhor caixinha de surpresas.
 - A Ema vai querer falar comigo. Vou levar suspensão de certeza. Estou a espera de uma bela reacção na escola também.
 - Não me parece que te digam seja o que for. Fica aí, come. Eu vou falar com a Ema, dizer que estás aqui e ver o que ela quer fazer.
John saiu, e a dona Céu entregou-lhe momentos depois duas tostas de frango e um enorme galão, bem escuro, tal como ele gostava. Sentia fome, por qualquer motivo.
 - Bom apetite. Três dias sem comer devem dar fome.

Conversas

Refugiaram-se na sala do fundo do café do costume, acompanhados de dois cafés, oferta da dona Céu, porque "ambos pareciam precisar".
Começaram um jogo de pool, bola 9, ainda em silêncio, despejando os cafés e acendendo um cigarro cada um. Dentro de ambos havia tanto a dizer, tanto a perguntar que nenhum sabia bem por onde começar.
Diogo quebra o silêncio após um rápido final de jogo da parte de John, sem ter feito uma tacada.
 - Porque me beijaste?
Diogo abre o jogo, colocando a bola 7 num dos buracos do fundo.
 - Porque respondeste?
Diogo taca a bola 1 para um dos buracos centrais.
 - Foi instintivo.
Bola 2 e 5 aos buracos do centro.
 - Gostaste.
Bola 8 no buraco do centro.
 - Não sei.
Bola 9 no buraco do centro. Diogo ganha.
 - Não era uma pergunta.
 - Sim, gostei.
 - Gostas de mim?
 - Passaria tanto tempo contigo se não gostasse?
 - "Naquele" sentido?
 - Qual sentido?
 - Tu sabes...
 - Não sei de nada. Explica-te.
 - Se gostas de mim como algo mais do que amigo.
 - Gosto de ti como o meu melhor amigo, como de um mestre, como de um exemplo a seguir. Eu não costumo pensar em termos romanticos.
 - Mas tu reagiste. Gostaste.
 - Sim. Que queres que te diga a isso?
 - Quero que me digas a verdade, Diogo.
 - Que verdade?
 - É como tentar falar com um computador, irra. Gostas de mim? Merda mais as perguntas formais, Jace. Gosto de ti. Sim, gosto de gajos.
 - Não tinhas tido namoradas?
 - Tive. O que mais ainda ajuda a saber. Não sinto nada por mulheres. Apaixonei-me por ti aos poucos. Desde aquela tua apresentação que me ficaste marcado. Colei-me a ti devido a ela, e tu fizeste-me gostar, adorar, tudo o que és.
 - Tretas. Sou só um puto.
 - Jace, tu estás longe de ser puto. Disseste que me vês como mestre, mas na verdade ensinaste-me imenso.
 - Estás só frágil devido ao acidente.
 - Alguma vez te esbofetearam?
 - Não. Normalmente levo mesmo murros.
John foi rápido demais para as defesas em modo passivo de Diogo. Este sentiu o impacto da chapada uma fracção de segundos depois de se aperceber do gesto de John.
 Ainda se estava a aperceber da dor quando sentiu o sabor dos lábios dele nos seus. Fechou os olhos e entregou-se sentindo-se envolvido num abraço que de imediato devolveu, todo o turbilhão de pensamentos roubado da sua mente pelo desejo e o prazer que o beijo de John lhe proporcionava.
 Olhos fechados, ignoraram a silenciosa e inesperada testemunha da sua entrega ao desejo em seus corpos e almas.
 Só após minutos se separaram, e apenas aí Diogo perguntou:
 - Jace?!
 - É melhor que marrão. E o nome é a tua cara.
 John iluminou o seu rosto num sorriso derretido. Diogo ponderava a questão.
 - Jace. Gosto. Jace. Eu sou o Jace. Todos deveríamos definir quem somos. Sou o Jace. Gosto de ti, John.
Beijaram-se de novo.
O mundo continuava o mesmo, mas eles haviam mudado.

Regresso Às Aulas

Não falaram daquela noite. Na segunda semana de férias, Diogo esteve sozinho em casa, sem quase sair da biblioteca. Os avós estavam consigo, David apenas voltaria depois da passagem de ano.
Diogo enterrou a noite de Natal atribuindo os acontecimentos ao álcool. Durante a primeira semana de aulas bebeu café com John, em silêncio. Faltavam as aulas, mas não passavam tempo juntos. Apareciam alternadamente, e isso levantou suspeitas a alguns professores desde logo. Ou iam juntos, ou faltavam juntos, era essa a norma. Segunda feira tinham história e matemática em seguida. Diogo foi a história, sozinho. John apareceu a matemática. A directora de turma estranhou de imediato, mas não disse nada. No final desse dia voltou a olhar o livro de ponto. Haviam repetido a situação durante a tarde. Fizeram o mesmo nos dois dias seguintes.
Na quinta, depois de tornar a ver a repetição da questão, já que John estava presente, mas faltara a história, enquanto Diogo fora a historia mas estava agora a faltar, fez a chamada, anotou Diogo como presente e olhou a sala, passando por cada um dos presentes antes de falar.
 - Bom dia, turma.
Um eco de diversos murmúrios de bom dia.
 - Sara, fazes-me um favor, querida?
 - Que favor, stôra?
 - Vais a biblioteca e dizes ao Diogo para vir ter comigo. De imediato.
A rapariga cumpriu a ordem, mas Diogo ficou relutante em aceder. A directora de turma nunca o havia mandado chamar a uma aula antes. Normalmente deixava-os em paz. Acedeu, seguindo a colega num passo lento, olhos fixos no chão à sua frente. Entrou na sala, murmurou um bom dia e foi sentar-se ao lado de John. Os olhos de ambos não se cruzaram, eles não deram qualquer sinal de terem notado a presença um do outro. A professora notou isso, apesar de mais ninguém ter prestado atenção.
 - Turma, têm como trabalho de casa os exercícios da página 100 à 110.
Um dos rapazes exclamou em resposta um:
 - Isso é muito!
 - Bem, Roberto, eu ia dispensá-los por hoje, mas se o Roberto prefere, você e o resto da turma podem ficar aqui a fazer esses mesmos exercícios e levar a página 111 à 120 para trabalhos de casa, sendo que quem não os apresentar na segunda leva falta aos dois tempos. Que acha?
Um burburinho elevou-se na sala, Diogo e John sem se manifestarem. Todos pareciam concordar com a dispensa e o trabalho de casa.
 - Bem, como é? Roberto, ainda acha muito?
 - Não, stôra.
 - Optimo. Uma coisa. Isto é dispensa para estudo. Nada de sair do recinto da escola ou não se torna a repetir. Entendido?
Todos concordaram. Depois se veria se cumpririam.
 - Até segunda, turma.
A turma começou a arrumar o material quando a voz da professora se voltou a ouvir.
 - Diogo, John, vocês dois ficam. Resto, despachem-se e nada de barulho no corredor.
Esperou que todos saíssem, fechou a porta e foi sentar-se de frente para eles do outro lado da secretária que ambos partilhavam.
 - Muito bem, meninos, comecem lá a explicar.
Fizeram-se de desentendidos em uníssono.
 - Explicar o quê?
 - Explicar porque andam há uma semana a aparecer alternadamente às aulas.
Foi Diogo quem respondeu.
 - Assim ao menos temos toda a matéria, entre as notas de ambos.
A professora não conseguiu resistir a soltar uma gargalhada sonora.
 - Nenhum de vocês tira apontamentos. Ouçam, podem fingir o quanto quiserem, vocês não estão normais.
 Foi a vez de John responder.
 - Nunca o fomos.
 - Mas vocês têm uma rotina na vossa singularidade. Isto é simples, meninos. Ambos deveriam ter chumbado o ano por faltas a meio do primeiro período. Eu fiz, e enquanto não me desiludirem vou continuar a fazer com que tal não aconteça, apesar de ter avisado o teu pai, Diogo, e a tua avó, John. Mas sabem o que isso significa?
Murmuraram um não em conjunto e deixaram-na continuar.
 - Significa que vocês estão em divida comigo e que, como tal, me vão obedecer, ou acaba-se a professora querida e compreensiva. Não estou, neste momento, preocupada em falar-vos como directora de turma ou como vossa professora, apenas como pessoa. Aquilo que vocês encontraram um no outro é precioso. E vocês estão com qualquer coisa a perturba-los. Não vou deixar-vos fazer isso sem um esforço, e sei bem o quão casmurros vocês são. Portanto, aquilo que vocês disserem a mim ou um ao outro não vai sair daqui, mas vocês não saem desta sala sem resolverem o que quer que seja que se passa e eu aprove a resolução. Entendido? Podem começar.
Nenhum respondeu. A professora deu-lhes um par de minutos antes de os pressionar novamente.
 - Que se passa? Qual é a vergonha afinal? John, vamos lá. O Diogo não vai iniciar. Que aconteceu nas férias? Desembucha que eu não tenho o dia todo, e ao contrário de vocês dois, não tenho um anjinho da guarda a fazer desaparecer as minhas faltas.
 - O John beijou-me e basicamente não sei falar disso e ele também não disse nada e é estranho como isto me está a fazer sentir.
 - Só agora?!
Nenhum dos dois esperava aquela reacção.
 - Como assim, só agora?
Mais uma vez falavam a uma única voz.
 - Pensava que já tinham passado da fase do primeiro beijo há algum tempo.
Não houve uma resposta da parte deles, mas a surpresa era evidente nos seus rostos. Ela resolveu explicar.
 - Vocês são o par perfeito, meninos, a todos os níveis. Salta à vista dos pouquíssimos que percebem. Eu tinha a idade do John quando tive a minha primeira namorada. E naquele tempo as coisas eram bem piores que hoje, se bem que confesso-vos, continua a ser estranho na cabeça de muita gente.
Se antes estavam com um ar de surpresa, este intensificou-se e passou a choque.
 - Que foi? A professora directora de turma não pode gostar de lamber carpete, é?
A expressão aliviou a tensão, colocando um sorriso no rosto de todos, antes de ela continuar.
 - Vivo com a Vânia há anos. Quase cinco anos, na verdade. A minha primeira namorada chamava-se Diana. Não durou mais que seis meses, mas foi estranho, intenso e difícil. Diogo, tu já antes eras posto de lado e provocado. Isso vai voltar a acontecer, sabes? Mas tu és o que és. Não é uma escolha. É simplesmente aquilo que vocês são. Vocês são fortes e inteligentes. Não vos vou obrigar a nada, óbvio. Mas, se querem o conselho de alguém que já viveu isso mais do que vocês, não deixem de ser felizes pelo que o resto pensa.
 - Quem mais pensa como você sobre nós?
 - O Carlos de informática e o José de História. Tanto quanto sei mais ninguém. Não se preocupem nem com os adultos nem com os adolescentes. Aproveitem. Agora desapareçam da minha frente e vão vocês conversar um com o outro. Estão dispensados da tarde, eu trato disso. Não iam aparecer de qualquer das formas, portanto é melhor assim. Eu trato do assunto.
 - Obrigado, professora.
 - O meu nome é Ema fora das aulas, entendido? Nós três vamos voltar a falar. Agora desapareçam. Não se esqueçam dos trabalhos de casa.
Diogo fez um meio sorriso.
 - Como se nós os fizéssemos alguma vez, Ema.
Novo sorriso partilhado entre todos.
 - Entendam-se.
Eles saíram e foram para o café. Havia uma conversa a ter.