Abre os olhos e observa o seu redor. Nevoeiro denso tolda-lhe a visão, roubando-o da possibilidade de perceber onde se encontra. Tenta recordar-se de algo, qualquer coisa recente que lhe permita fazer uma ideia de onde está e porquê, mas a memória recusa-se a colaborar. Não há nada na sua memoria de curto prazo. Quase como se tivesse acordado de uma enorme ressaca depois de uma noite de excesso de álcool. Mas não podia ser essa a situação. Não sentia nenhum dos sintomas de uma ressaca. Perder a memória deveria ter causado um enorme mal estar no seu estomago, uma dor de cabeça infernal. Não, não sente nada disso. Além disso, mesmo por muito bêbado que esteja, ele costuma encontrar sempre o caminho para casa. Não está em casa. Não se levantou. Abriu os olhos e estava de pé no meio do nevoeiro.
Caminha, sem direcção definida. Passo após passo, durante segundos, minutos, horas. Não tem noção do tempo. À sua volta existe apenas nevoeiro. Poderia ter andado apenas uns metros ou uma dezena de quilometros. Não sabe. Não sente cansaço sequer. Não faz sentido. Nada faz sentido. Suspira. Pergunta em voz alta sem esperar uma resposta.
- Onde estou?
E não esperando uma resposta, foi apanhado de surpresa quando a recebeu.
- Estás aqui.
A voz vinha de dentro do nevoeiro, aparentemente poucos metros à sua frente. Não se sentia ameaçado ou em perigo. A voz era grave, quase melódica. Bastante semelhante à sua própria na verdade.
- Mostra-te.
O nevoeiro pareceu responder à sua ordem, desvanecendo da sua frente, dissipando-se o suficiente para lhe permitir ver uma figura vestida de negro, roupas largas, aparentemente da mesma estatura que ele, o capuz do longo casaco escondendo-lhe o rosto.
- Quem és tu?
A mesma voz respondeu-lhe após um longo suspiro.
- Já te esqueceste? Eu sei bem que há muito não temos contacto. Mas tu sabes quem eu sou. Só tu sabes quem eu sou.
Sim. Ele sabe, sem saber. Ele conhece aquela voz, e aquele porte, e aquele gosto estranho para roupas, e aquele irritante hábito de falar por enigmas. Sempre soube. Conhece aquela etérea figura desde sempre. Desde que se recorda de si, recorda-se dele. Sempre esteve lá. Aparecia nos momentos mais estranhos. Normalmente sempre quando ele mais precisava de ajuda, quando ele se sentia só e desamparado e perdido.
- Onde estamos?
- Em lado nenhum. Em todo o lado. Onde queres estar?
- Que raios queres dizer com onde quero estar?
- Vá lá, responde. Onde queres tu estar?
- Neste momento? Não sei.
- Exacto. Como não sabes, não estamos em lugar nenhum. Poderíamos estar num lugar onde quisesses estar.
Ele não responde. Inspira fundo. O ar tem um odor sulfúrico, leve mas presente.
- Não é muito relevante onde estamos, pois não?
- Para mim nunca foi. Para ti, as vezes é. Acho que agora não é uma dessas vezes, ou estaríamos lá.
O homem à sua frente dá dois passos na direcção dele, removendo o capuz. O rosto é esguio, magro, tem olheiras profundas debaixo dos olhos castanhos escuros, quase negros. Aparenta ter uns 20 anos, talvez um ou dois mais. O cabelo cinzento prateado cai-lhe sobre o olho esquerdo numa mecha única, o restante apanhado atrás da cabeça num rabo de cavalo que cai pouco abaixo dos ombros. Estende-lhe a mão e espera que ele a tome num aperto de mão que ele demora momentos a retribuir. Na verdade nem sabe bem porque o faz. Acaba por questiona-lo.
- Porquê a formalidade?
- Deve-se sempre cumprimentar um Homem.
Há enfase na palavra homem, um reforço que ele não esperava.
- Agora sou um homem, é?
- Para mim, sim. E um homem merece um bom aperto de mão.
- Nunca o tinhas feito antes.
- Presumo que não precise de te explicar isso.
- Acho que não. Desapareceste. Há anos que não tínhamos contacto.
- Sim. Passaram anos.
- Estás com ar de quem não dorme há uma semana.
- Não te preocupes com isso. Diz-me, como te sentes?
- Além da confusão de não ter a porcaria de ideia nenhuma de onde estou ou como vim aqui parar? E do desejo de estar em casa, na minha cama?
- Sim, além disso.
- Não sei.
- Exacto. E cá estamos novamente. Sentes-te perdido?
- Claro que sim, não faço ideia de onde estou.
- Claro que fazes. E não me referia a sentires-te perdido no espaço.
- Um bocado, sim.
- Casa, dizes tu? Na tua cama?
O nevoeiro dissipa-se e de um momento para o outro dá por ambos no seu quarto, no seu apartamento, em pé ainda, junto à sua cama.
- Que raio?
O homem sorri.
- Assim estás localizado no espaço. Menos uma coisa a preocupar-te.
- Isto não é real.
- Nem deixa de o ser.
- Isto não é a minha casa.
- Claro que é. O teu apartamento. A tua cama. Casa.
- Mas eu não vivo aqui.
- Disseste que querias estar em casa, e estás. Não disseste que querias estar onde vives.
- É a mesma coisa.
- Não. Isto é casa. A tua casa. O teu lar.
- Não é aqui que eu vivo ha quase um ano.
- E nunca deixou de ser casa. Tu sabes disso, ou não seria aqui que estaríamos.
- Enfim... que queres?
- Eu? Nada de especial. Queria ver-te. Saudades sabes?
- Tu? Saudades?
- Sim, qual é o espanto?
- Nada. Não faz parte do que me lembro de ti.
- Tu mudaste. Eu mudei. Simples.
- Que queres tu dizer com isso?
- Estas perdido de novo, e a precisar de mim. Como sempre, aqui estou.
- Nunca apareces quando eu preciso. Apareces quando te apetece.
- Errado. Eu só apareço exactamente quando tu precisas de mim. Já devias saber disso há muito tempo. Na verdade, acho que nunca precisaste tanto de mim como neste momento.
- Porque dizes isso?
- Porque tu estás a ser casmurro que nem uma mula.
- Caralho, explica-te.
Novo sorriso no rosto do homem, que se dirige à cama e se senta nela.
- O que estás tu a fazer?
- Em que sentido?
- Em todos.
- Não sei o que te responder a isso.
- Mas eu sei. Estás a fugir de ti, a exilar-te de ti próprio. A fugir de casa, o que é extremamente irónico quando tu vivias sozinho.
- Não estou a fugir de nada.
- Estás. Estás a fugir de ti mesmo, a agarrar-te estupidamente a um passado que não é real. Estás a viver o que te tentaram incutir, a sofrer por aquilo que não fizeste, e a impedir-te a ti mesmo de viver. Estás a fugir da tua cidade, a escapar das memorias que esta te trás, em vão, quando estás a deixar que estas se apoderem de ti, e pior, estás a deixar que a tua mente distorça a realidade para servir propósitos que não são os teus. Nunca precisaste tanto de um par de chapadas de bom senso como agora, e tu fizeste muita merda.
- Continua.
- Estás a gostar de ouvir, é?
- Nem por isso.
- Eu sei. A verdade dói, e é por isso que tu me pedes para continuar. Esperas que te diga o que fazer. Bem, tu sabes o que fazer.
- Se sei, porque estou perdido?
- Ah! Agora já estás perdido?
- Foi o que disseste.
- Porque é a verdade. Ouve, eu sei que gostas dela. Tens todas as razões para gostar. Mas não podes fazer isto a ti mesmo. Não precisas perder nada para te encontrares, sabes? Tu sabes bem onde é casa. Tu sabes onde pertences. Infelizmente, não consegues o que queres. Não existe essa oportunidade. Mas isso não quer dizer que tenhas que estar ali, isolado, miserável. Queres estar isolado quando estas longe dela, força. Sempre foste um bichinho do mato de qualquer das formas. Aprendeste tanto, fizeste tanto. Descobriste tanto, sobre ti e sobre o mundo. Não és nenhum demónio, como insistes em chamar-te a ti mesmo. Isso são coisas que te fizeram acreditar, e tu no fundo sabes disso. Eu sei bem que sabes. Estás a torturar-te a ti mesmo, baseado numa mentira que estás a contar a ti mesmo. E pior, estás a atirar a responsabilidade da tua indecisão para longe de ti mesmo. No fundo, tu sabes que é possível ter o que queres, o que precisas. Tens que parar de fugir de ti, sabes? Já chega. Estás bem já. Estás curado. E tens a força para voltar ao que tu gostas de fazer, e a capacidade de o fazer. Mas estás a recusar-te a tentar, por uma estúpida mentira que estás a contar a ti mesmo.
- Que mentira?
- Distancia é distancia. Não importa se são 50 ou 200 quilômetros. Se não estás perto, se não tens de momento a possibilidade de estar perto, ao menos deixa-te de desculpas e volta para casa. Espera. Comunica. A distancia doi. Mas a distancia já vos está a doer de qualquer das formas. Não precisas de sentir a dor da distancia, e a dor de estar longe de ti mesmo. Já basta estares longe de quem queres. Não fujas de ti também. Já devias ter aprendido isso. Já passaste o suficiente para saberes disso. Está na altura, sabes?
- Na altura de quê?
- Na altura de te perdoares. Estas a causar mais estragos, e não estás a resolver nada de qualquer das formas. O que causaste ficou no passado. Não vais poder mudar isso. Não vais recuperar quem perdeste ou curar quem feriste ou ressuscitar quem mataste por te continuares a agarrar à culpa. Mas estás a matar-te a ti mesmo. Tu sabes que já não és isso. Que ha muito que não és o que eras. E aquilo que te podes tornar, aquilo que no fundo és, está a ser impedido de desabrochar por essa estupida decisão de te continuares a culpar. A escolha é tua, e não escolher é uma escolha. As palavras são tuas. Chega de merdinhas, e de desculpas. Tu tens a força e a inteligência para o fazer, e estás a desperdiça-las no fim do mundo, onde nada te espera, onde nada tens.
- Tenho-os a eles.
- E não vais deixar de os ter. Sabes bem que não. Mas tu precisas de outra coisa além deles.
- O quê?
- De ti mesmo. E estás a impedir-te de te tornares em ti mesmo.
- Não costumas dar respostas tão directas.
- Não, não costumo. Mas com um homem fala-se directamente. Tornaste-te um, mesmo sem teres a consciência de tal. Está na hora de deixares isso servir os teus propósitos. Vais sofrer, mas tu conheces bem a dor. Não tens medo dela. Deves a ti mesmo isto. Estás quase. Nunca estiveste tão próximo como agora. Mas estás a bloquear o teu próximo passo. Está na hora de dares esse passo. Estás quase a chegar onde deves estar. Faz isso por ti.
- Onde é que eu devo estar?
O homem sorri, um sorriso terno, quase carinhoso.
Ele acorda, na cama onde adormecera. 3:00 da manhã. Suspira e volta tapar-se. Tem tanto para fazer, mas a manhã ainda está longe de chegar. É tempo de dar mais um passo. De manhã, será necessário começar a dar esse passo.