segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Para um anjo

A história é longa e penosa, três anos de dor e sofrimento para ele, que culminaram com um exilio auto-imposto do qual ele teme sair, escondido numa quinta do interior de cujos limites ele raramente sai, não porque algo o impeça mas porque a sua vontade assim o dita.
Na verdade, a diferença é pouca. Entre a quinta e o seu pequeno apartamento nos arredores da capital nenhuma distinção existe. Ambas são prisões impostas pela sua vontade, refugios espirituais nos quais a sua busca interna por paz se desenrola.
Ele tem sofrido com a certeza de uma escolha errada com a qual o seu tormento foi iniciado.
Falou com todos, contou a cada um o motivo de o ter feito, guardando-a a ela para o fim, por medo, por covardia, por...
Demorou meses a decidir tomar aquele gigantesco passo que ele sempre soube separá-lo da sua tão desejada paz.
Demorou mais uma semana depois de decidir que era altura de o fazer antes de agir. Não tinha ideia da reacção dela, da dor que ela havia suportado nesse tempo, da raiva que ela deveria sentir da miserável existência dele.
Ele não é a mesma pessoa que ela conheceu. De certa forma, ele não é a pessoa que a magoou. E no entanto, a sua consciência insiste em lembrá-lo de que o seu corpo é o mesmo, a sua mente é a mesma, os seus olhos são os mesmos. E será isso que será visto e recordado.
A criança que ele foi aprendeu a ser forte. O demónio que essa criança se tornou aprendeu a odiar a fraqueza em si. O anjo que ele deseja ser aprendeu a proteger a fraqueza dos outros. O humano que é tudo isto sabe, tudo isto possui.
Pegou nessa força, nesse ódio à sua própria fraqueza e no desejo de proteger quem o merece e tomou finalmente o derradeiro passo que sabia ser a sua única esperança de alguma vez voltar a ter paz. Não pondera egoismo, não pondera a dor que o seu passo irá causar.
Permitiu-se pela primeira vez em anos recorrer a um dos seus maiores dons e despejou a sua alma no papel, manchado por circulos das lágrimas que não conseguia evitar deixar escorrer pelo seu rosto.
Enviou-lhe o resultado. Esperou uma eternidade que não passou de alguns dias pela agressiva e magoada resposta que carregava dentro algumas das acusações que ele a si mesmo atirava diariamente.
Se ele não havia esquecido, a resposta dela atirou a sua mente numa viagem pelo tempo.
Recordou aquela noite em que a vira pela primeira vez, apresentados um ao outro por um colega dela que vivia com um colega seu. Nessa noite, mal reparou. Ele tinha tanto mais em que pensar, ocupado em beber a sua vodka e em tentar resolver um qualquer exercicio de programação.
Recordou a noite, na semana seguinte, que marcou a queda das suas barreiras, que marcou o momento em que o seu coração deixou de ser seu e passou a ser dela.
Ele subia a rua, vindo de um bar cujo nome não consegue recordar, acompanhado de três colegas. Encontrou-a a descer essa mesma rua, rodeada de  vários dos seus colegas, dirigindo-se ao sitio de onde ele viera. A tradição académica exigia que ela permanecesse com o grupo. Ficar sozinho no meio deles impedia-o de a seguir.
Pararam no meio da rua, dois beijos de boa noite trocados. Uma curta e ligeira conversa, ambos indicando onde se dirigiam. Ambos sabiam não poder demorar, os seus respectivos grupos seguindo em direcções opostas, alheios a que eles se encontravam para trás.
Tinham que se despedir. Ele tocou a face dela, percorrendo o perfil do seu rosto com a ponta dos dedos, segurando por instantes o seu queixo no término da carícia quando sentiu o tempo parar, perdido no olhar expressivo dela, que irradiava uma beleza e uma bondade e um carinho imensos, e no seu simples e inocente sorriso, que derreteu o coração dele, arrancando todos os falsos e pretenciosos sentimentos, marcando a ferro e fogo aquele olhar, aquele rosto, aquele sorriso, aquela beleza completamente fora do vulgar, gravando-a a ela na sua mente, na sua alma e no seu coração para a eternidade, uma cicatriz que jamais sararia, e cuja cura, cuja única cura, era segurá-la nos seus braços e beijar os seus lábios e mantê-la perto de si para que a dor da sua ausência não se fizesse sentir.
Naquele instante em que o tempo parou, o seu coraçaoo deixou de ter outro dono que não ela. Naquele momento a sua mente e a sua alma foram invadidas pela essencia dela.
Ele não conseguiu evitar. Ele tinha que a ter. Era loucura, paixão, desejo, amor. As noites passaram a ser marcadas pela imagem dela nos seus sonhos, os dias pela ansia de a poder ver nem que ao longe, por segundos.
Foi a lógica e a razão e a dor da infância, e a escolha de tentar poupar o seu filho a esta que o arrancaram dos braços dela. Ele fez o que achava certo, sacrificando a felicidade dele no processo, escolha consciente que ele não poderia jamais perdoar-se se não tomasse. Afinal de contas, ele poderia esquecer. Ele poderia, deveria voltar a cuidar do seu pequeno...
E descobriu em breve que não podia também perdoar-se por ter tomado essa escolha, mesmo sabendo que o fez pelos motivos certos.
E ao voltarem a trocar mensagens instantaneas, maravilha da técnologia moderna, ele tanta vez escreveu aquelas seis palavras, apagando-as de seguida, escrevendo uma qualquer resposta àquilo que estavam a falar.
Mas essas palavras não saem da sua mente, queimam a sua alma, exigem ser proferidas, exigem ser por ela ouvidas.
"Eu nunca deixei de te amar."
Talvez um dia...

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Um pequeno conto

O sol já desapareceu e a lua ainda vai baixa no céu estrelado e limpo de qualquer nuvem. A planície aberta a perder de vista é apenas marcada por uma ainda distante luz numa janela do primeiro andar de uma mansão de dois pisos.
Ele está sozinho, carro parado à beira da estrada, recusando-se a arrancar por algum motivo para ele desconhecido. Mecânica não é o seu mundo. Está sem bateria no telemóvel. Amaldiçoa silenciosamente o seu total desapego ao dispositivo, esqueceu-se de verificar a bateria antes de iniciar a viagem. Agora precisava dele para chamar um reboque.
Acende um cigarro, tranca o carro e dirige-se num passo rápido, leve e ágil à mansão que quebra a monotonia da planície. Talvez tenham a bondade de lhe permitir usar o telefone. Claro que ele pagará o telefonema.
O cigarro acaba e ele pouco se aproximou do seu destino. Calcula que tenha ainda mais uns dois quilómetros a percorrer. Pára, inspira fundo, soltando um longo suspiro.
Coloca-se novamente em movimento, afastando os pensamentos e a frustração. Carro, telemovel... nada funciona. Abre o maço, conta os cigarros que lhe restam sem nunca parar de caminhar. Tira mais um e acende-o.
Demora mais uns dez minutos a chegar à entrada da mansão.  Fica parado alguns momentos observando a fachada. A parede está coberta de hera, cada milímetro da superfície escondido pela planta, à excepção da pesada porta de madeira e de três janelas no andar superior. Apenas uma tem luz.
Decide finalmente usar o pesado batente com a forma de uma cabeça de bode. O som ecoa na mansão, sem no entanto qualquer resposta chegar durante minutos. Eventualmente a porta abre-se perante si, uma silhueta feminina pouco mais baixa que ele fazendo-lhe sinal para entrar.
- O meu carro deixou de funcionar a alguma distancia daqui. Não tenho bateria no telefone para poder chamar um reboque. Será possivel usar o seu para tal?
Ele nao se mexeu ao proferir estas palavras.
- Entre. - a voz é suave, um murmurio apenas, mas perfeitamente audivel no silencio que os envolve.
Ele segue a indicação, entrando para um empoirado hall que se abre a sua direita para o que aparenta ser uma biblioteca ou sala de estar e à esquerda para uma escadaria de acesso ao andar superior.
A sua anfitriã segue para a divisao à sua direita. Ele segue-a. Entra na divisão e a sua visão é-lhe roubada pelo subito clarão do enorme candelabro antigo, adaptado a electricidade.
A medida que os seus olhos se adaptam à luz, ele observa a ampla divisão em que se encontra. As paredes estão cobertas de estantes repletas de livros, volumes empoirados seguidos uns aos outros. Ele já viu bibliotecas publicas com menos que a sala onde se encontra. Ao fundo, no canto há uma lareira apagada, uma poltrona em pele negra com um aspecto convidativo e uma pequena mesa de café com alguns volumes empilhados. Ao lado da lareira há um pequeno armario com um antigo telefone de disco preto. Há anos que ele não via um destes.
- O telefone funciona. Esteja à vontade. Vou só lá acima terminar uma coisa e já volto para lhe fazer companhia. Peço desculpa, não esperava visitas a esta hora, e não posso deixar de terminar o que comecei. Há bebidas dentro do armário do telefone, bem como copos. Faça o seu telefonema, mas... duvido que lhe resolvam a questão. Passa das 21 já. Tenho um quarto de hospedes que poderá usar para pernoitar. Volto já.
Ela saiu, deixando-o sozinho. Ele faz o telefonema, e tal como previsto pela sua anfitriã, não iriam fazer a reparação antes da manhã seguinte. Ele abre o armario, tira um copo e uma garrafa de whiskey e enche o copo quase até ao topo. Torna a guardar a garrafa e percorre a divisão lendo as lombadas, procurando um padrão. Volumes cientificos, textos sobre ocultismo, filosofia, biologia. Alguns romances clássicos. A colecção imensa demoraria anos, decadas talvez a ler por completo.
Acaba por se sentar na poltrona, pousar o copo na mesa de café e olhar os volumes em cima desta. Um em particular chama-lhe a atenção. Pega nele, abre-o. Um arrepio percorre o seu corpo ao ler o titulo e o autor.
Necronomicon, escrito pelo louco árabe Abdul Alhazred.
- Uma optima escolha. Vejo que tem um gosto refinado.
A voz dela arranca-o de sobressalto dos seus pensamentos.
- Obrigado. Sempre pensei que este livro fosse apenas um mito. Nunca pensei um dia vir a segurar uma copia nas mãos.
- Não é uma copia. É o original. Não me contento com réplicas. Exijo o melhor. E sei como o conseguir.
- O original?!
- Isso mesmo. Abra-o, não se acanhe. É bastante resistente. Feito para sobreviver à eternidade.
Ele segue a instrução. Percorre os olhos pelas palavras escritas em árabe, incompreensíveis aos seus olhos, mas sentindo-se invadido por uma estranha sensação, como se o livro estivesse vivo. Como se nas mãos segurasse um ser vivo, demoníaco, inspirador de tantos actos de loucura e génio, pronto a influenciar muitos mais.
- Fascinante, não é?
- Imenso. A sua biblioteca é incrível. Nunca imaginei que alguém pudesse ter algo assim. Poderia passar aqui uma vida sem me cansar.
- Meu caro, ninguém o impediria de tal. Mas por agora, foquemo-nos noutro assunto. Quando virão buscar o seu carro?
- Só de manhã.
- Tal como eu previa. Já comeu?
- Sim, jantei há pouco tempo, antes de voltar a fazer-me à estrada.
- Optimo. Se precisar de algo, chame-me. Aprecie a biblioteca que tanto parece agradar-lhe. O seu quarto é o ultimo do andar de cima, ao fundo do corredor que encontrará ao subir as escadas. Leia. Beba. Descanse. Amanhã tratará de seguir a sua vida se o desejar.
- Peço perdão pela falta de educação. Como se chama?
- Cátia.
- Prazer. Sou o Jay.
- Alcunha?
- Diminutivo.
- Com certeza. Tenha uma boa noite Jay. Se precisar chame. Lamento não lhe oferecer mais companhia mas há algo que eu preciso terminar.
Com estas palavras ela deixa novamente a divisão, cortando-lhe a oportunidade de agradecer a hospitalidade, deixando-o entregue a si mesmo.
Levanta-se, percorre as prateleiras numa infrutífera busca por um dicionário que lhe permita traduzir do árabe para qualquer língua que ele compreenda. Acaba por desistir, pega num volume de Poe e lê enquanto termina o copo de whiskey.
Sente-se cansado, o dia foi longo. Odeia conduzir, mas esta viagem é necessária. Necessária pela busca de paz, pelo escape à desilusão, pela necessidade de algo novo. Enche de novo o copo e emborca-o de um trago. Sai da biblioteca, sobe as escadas e percorre o corredor, entrando na ultima porta, conforme indicado. O quarto é pequeno, mobiliado apenas com uma cama e um guarda-roupa.
Cai em cima da cama, vestido. Adormece minutos depois, embalado pelo cansaço e pelo whiskey. Já não pensava. Demasiado exausto até para isso.
...
Está na biblioteca, em frente da lareira, com o Necronomicon a mão. Sente medo. Frio.
Corre sem sair do lugar. Vê a face dela. Tenta falar-lhe mas ela não aparenta ouvi-lo. Tenta agarrá-la, mas ela desfaz-se em fumo.
Há um gato preto a roçar-se nas suas pernas. Pega nele ao colo e olha-o nos olhos. O gato fala-lhe numa voz de mulher que lhe é familiar sem ele saber de onde.
- Foge. Morrerás se ficares. Foge, por favor.
...
Ele acorda, suores frios a escorrer pelo seu corpo. Mais um pesadelo. Sempre que dorme os tem. Este foi no entanto estranhamente diferente dos padrões normais dos seus habituais pesadelos.
Senta-se na cama, olha o relógio de pulso, acendendo  a luz que ilumina o mostrador.
3:00.
Madrugada ainda. Está completamente desperto. Desce as escadas, volta a biblioteca. Pensa sentar-se a ler, mas os seus planos são frustrados.
Ao chegar ao fundo da escada nota que há luz na divisão onde se pretendia dirigir. Aproxima-se o mais silenciosamente possível da entrada da divisão. Tem uma sensação estranha, talvez reminiscente do pesadelo que do sono o arrancou.
Cátia está de costas para ele, debruçada sobre uma mesa que antes não estava ali. Algo se encontra em cima da mesa, mas ele não consegue de imediato perceber o quê. Está fixo na cena que se apresenta em frente dos seus olhos, paralisado pela curiosidade e um estranho terror que o assola.
Ela endireita-se e ele finalmente consegue perceber o que se encontra em cima da mesa. Um corpo humano, nu, de um homem que deveria estar nos seus 50 anos. O peito aberto, deixando ao ar o conteúdo da caixa toráxica. Ela mete a mão lá dentro e com um poderoso movimento retira-a de novo, arrancando bruscamente o coração da sua vitima. Ela vira-se para trás e ele vê novamente o rosto que o acolheu, sangue escorrendo da boca dela, olhos completamente negros, que o fitam, finalmente percebendo a sua presença. Ela pousa o coração em cima da mesa sem tirar de cima dele aquelas negras orbes.
- Deverias estar a dormir, Jay. Não precisavas ter testemunhado isto.
- Que se passa aqui?
- Sobrevivência meu querido. Preciso continuar a viver. E tu, infelizmente, terás agora que contribuir para tal, como ele o fez.
Ele sente o seu corpo ser puxado na direcção dela, arrastado por uma força invisível que ele não consegue combater, impedindo-o de se mexer. Para a centímetros dela, forçado a olhar aqueles aterradores olhos negros, completamente negros.
- Solte-me.
- Sabes demais. Neste mundo moderno, monstros como eu não podem deixar pontas soltas. Senta-te.
A mesma força invisível atira-o para a poltrona. O seu corpo está paralisado. Apenas consegue controlar a sua cabeça, o seu rosto. Consegue falar.
- Porquê matar-me? E se o vai fazer, porque não o faz de uma vez, qual é a necessidade de brincar comigo desta forma? Demonstrar os seus poderes?
- Não podes fugir de qualquer forma. Tenta mexer-te.
- Não consigo.
- Eu sei. Meu querido, o Necronomicon guarda segredos incríveis. A minha telecinesia, a minha juventude, a minha longevidade. Tudo graças a ele, e à coragem de usar os terríveis segredos que ele encerra.
Ela aproxima-se dele, olhando-o nos olhos durante alguns momentos.
- É uma pena. A tua alma é forte. Poderias ter ido longe. Poderias dominar as minhas habilidades. Bem, pelo menos poderei juntar essa essência à minha. Há séculos que não encontrava alguém tão... deliciosamente apetecível.
- Ensina-me. Mostra-me os segredos de que falas. Não és o único monstro na sala. Que ganho eu em denunciar-te?
- Mas tu pensas que eu sou burra? Este corpo é humano. Mas a minha mente há muito que transcendeu esses limites. És um monstrinho engraçado. As tuas memórias são fascinantes. Até tens algumas habilidades fora do normal. Esse teu instinto, como lhe chamas... pena não teres controlo sobre tal.
- Que queres dizer?
- És um empático, idiota. Sentes o que os que te rodeiam pensam e sentem. Com treino poderias controlar isso. Poderias forçar outros a sentirem o que tu queres. Vou adorar adicionar isso às minhas habilidades.
- Mostra-me como.
- Não, meu querido. És perigoso. Se te mostrasse isso, irias usá-lo contra mim. Mas eu quero essa habilidade. Chega pequeno, hora de morrer. Será rápido, quase indolor. Lamento.
Ele continua sem controlo do seu corpo. Forçado a observar em silencio, o controlo da sua voz também retirado, sem hipótese de reagir, ele vê o punhal a ser desembainhado, a lamina brilhante a aproximar-se da sua garganta, sente o seu toque na pele, a aterradora sensação da sua veia a ser rasgada pela afiada lamina. Os seus olhos fecham-se contra a sua vontade, não pode gritar, não se consegue mexer.
A ultima coisa que sente são os lábios dela no seu pescoço, bebendo o sangue que se esvai, levando consigo a sua vida, desvanecendo-se no frio abraço da morte.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Responder a questões jamais colocadas

Não sei o que escrever, por onde começar. Não, não é falta de inspiração. Sabes bem a minha opinião sobre tal. Não... a falha é outra. Faltam-me dados. Falta-me tanta coisa para poder escrever sobre ti. Falta-me o teu rosto e os teus olhos, falta-me sentir o teu calor. Não posso escrever sobre algo que não vejo. Não quero simplesmente fantasiar sem qualquer ligação à realidade. Isso já a minha mente faz sem eu querer, se lhe der rédeas para tal, mas não passa disso, fantasias da minha mente, incorpóreas, infundadas e delirantes, causadas pelo estrondo tempestuoso que o teu súbito e inesperado aparecimento causou.
A minha mente dispara perguntas as quais eu não posso responder, interroga-se sobre tudo acerca de ti numa desesperada e infrutifera busca por respostas.
Outros teriam caído a meus pés por bem menos. Tu viras o jogo e sobes a aposta. Um arrepio... Um miserável arrepio foi tudo o que consegui.
Quero olhar os teus olhos. Preciso de o fazer. Olhar os teus olhos e esperar que a minha percepção me dê uma resposta a algo que sei tu não poderes responder. E mesmo que pudesses, jamais o farias...
Só uma única vez encontrei alguém com um efeito em mim próximo daquele que provocaste. E essa proximidade tem ainda uma distancia enorme... Tal como agora, dois desejos incompatíveis se ergueram. Escolhi o primeiro. Destruí a competição, despedacei a mente sem nunca tocar o corpo.
Agora... Não é isso que desejo. Quero abraçar-te, sabendo que de tal não precisas, proteger-te, sabendo que te consegues defender sozinha.
Sabes... sempre me senti sozinho, mesmo rodeado de multidões. Sempre pensei que jamais tornaria a abrir as portas do meu mundo a mais alguém. Até nisso tu conseguiste causar estragos. Ao falar contigo não me sinto só. Sorrio, e rio, e esqueço o peso dos anos, do sangue e das lágrimas causadas e sofridas.
Como? Como podes olhar o pior de mim de sorriso no rosto e dizer que não te assusto? Como podes fazer-me sentir... humano? Frágil?
Sabes... sempre sobrevivi. Mas tu fazes-me querer mais que sobreviver. Fazes-me desejar voltar a viver.
Estou livre. Podia ir embora, procurar novos desafios. Mudar de cidade, general sem exercito, e vergar novamente o submundo à minha caprichosa vontade. Devia seguir, voltar para junto da princesa a quem jurei servir, sem nada receber em troca.
Mas aqui me encontro. Sem princesa, sem vontade de continuar a liderar um exercito de sombras que se mexem à minha vontade.
Hoje, depois de ires, nomeei como tenente alguém que sempre quis o meu lugar. Resignei. Já não sou eu quem comanda a cidade. Já não sou eu que tem que se preocupar com logística, operações, subornos, crescimento, negociações. Dentro de meses, aquilo que criei ao longo dos últimos 9 anos colapsará sobre si mesmo.
Demónio, general, assassino, mestre. Resigno a tudo isso. Faço-o sem pensar duas vezes. Faço-o para poder chegar junto a ti, sem títulos, sem reputação, sem passado.
Estou aqui, minha rainha. Apenas eu. Apenas o humano que em tempos transcendeu essa condição.
Ajoelho-me a teus pés.
"Deixai-me servir-vos, Majestade, ou terminai já esta existência sem propósito."
Espero sem esperança a tua decisão...