sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Um pequeno conto

O sol já desapareceu e a lua ainda vai baixa no céu estrelado e limpo de qualquer nuvem. A planície aberta a perder de vista é apenas marcada por uma ainda distante luz numa janela do primeiro andar de uma mansão de dois pisos.
Ele está sozinho, carro parado à beira da estrada, recusando-se a arrancar por algum motivo para ele desconhecido. Mecânica não é o seu mundo. Está sem bateria no telemóvel. Amaldiçoa silenciosamente o seu total desapego ao dispositivo, esqueceu-se de verificar a bateria antes de iniciar a viagem. Agora precisava dele para chamar um reboque.
Acende um cigarro, tranca o carro e dirige-se num passo rápido, leve e ágil à mansão que quebra a monotonia da planície. Talvez tenham a bondade de lhe permitir usar o telefone. Claro que ele pagará o telefonema.
O cigarro acaba e ele pouco se aproximou do seu destino. Calcula que tenha ainda mais uns dois quilómetros a percorrer. Pára, inspira fundo, soltando um longo suspiro.
Coloca-se novamente em movimento, afastando os pensamentos e a frustração. Carro, telemovel... nada funciona. Abre o maço, conta os cigarros que lhe restam sem nunca parar de caminhar. Tira mais um e acende-o.
Demora mais uns dez minutos a chegar à entrada da mansão.  Fica parado alguns momentos observando a fachada. A parede está coberta de hera, cada milímetro da superfície escondido pela planta, à excepção da pesada porta de madeira e de três janelas no andar superior. Apenas uma tem luz.
Decide finalmente usar o pesado batente com a forma de uma cabeça de bode. O som ecoa na mansão, sem no entanto qualquer resposta chegar durante minutos. Eventualmente a porta abre-se perante si, uma silhueta feminina pouco mais baixa que ele fazendo-lhe sinal para entrar.
- O meu carro deixou de funcionar a alguma distancia daqui. Não tenho bateria no telefone para poder chamar um reboque. Será possivel usar o seu para tal?
Ele nao se mexeu ao proferir estas palavras.
- Entre. - a voz é suave, um murmurio apenas, mas perfeitamente audivel no silencio que os envolve.
Ele segue a indicação, entrando para um empoirado hall que se abre a sua direita para o que aparenta ser uma biblioteca ou sala de estar e à esquerda para uma escadaria de acesso ao andar superior.
A sua anfitriã segue para a divisao à sua direita. Ele segue-a. Entra na divisão e a sua visão é-lhe roubada pelo subito clarão do enorme candelabro antigo, adaptado a electricidade.
A medida que os seus olhos se adaptam à luz, ele observa a ampla divisão em que se encontra. As paredes estão cobertas de estantes repletas de livros, volumes empoirados seguidos uns aos outros. Ele já viu bibliotecas publicas com menos que a sala onde se encontra. Ao fundo, no canto há uma lareira apagada, uma poltrona em pele negra com um aspecto convidativo e uma pequena mesa de café com alguns volumes empilhados. Ao lado da lareira há um pequeno armario com um antigo telefone de disco preto. Há anos que ele não via um destes.
- O telefone funciona. Esteja à vontade. Vou só lá acima terminar uma coisa e já volto para lhe fazer companhia. Peço desculpa, não esperava visitas a esta hora, e não posso deixar de terminar o que comecei. Há bebidas dentro do armário do telefone, bem como copos. Faça o seu telefonema, mas... duvido que lhe resolvam a questão. Passa das 21 já. Tenho um quarto de hospedes que poderá usar para pernoitar. Volto já.
Ela saiu, deixando-o sozinho. Ele faz o telefonema, e tal como previsto pela sua anfitriã, não iriam fazer a reparação antes da manhã seguinte. Ele abre o armario, tira um copo e uma garrafa de whiskey e enche o copo quase até ao topo. Torna a guardar a garrafa e percorre a divisão lendo as lombadas, procurando um padrão. Volumes cientificos, textos sobre ocultismo, filosofia, biologia. Alguns romances clássicos. A colecção imensa demoraria anos, decadas talvez a ler por completo.
Acaba por se sentar na poltrona, pousar o copo na mesa de café e olhar os volumes em cima desta. Um em particular chama-lhe a atenção. Pega nele, abre-o. Um arrepio percorre o seu corpo ao ler o titulo e o autor.
Necronomicon, escrito pelo louco árabe Abdul Alhazred.
- Uma optima escolha. Vejo que tem um gosto refinado.
A voz dela arranca-o de sobressalto dos seus pensamentos.
- Obrigado. Sempre pensei que este livro fosse apenas um mito. Nunca pensei um dia vir a segurar uma copia nas mãos.
- Não é uma copia. É o original. Não me contento com réplicas. Exijo o melhor. E sei como o conseguir.
- O original?!
- Isso mesmo. Abra-o, não se acanhe. É bastante resistente. Feito para sobreviver à eternidade.
Ele segue a instrução. Percorre os olhos pelas palavras escritas em árabe, incompreensíveis aos seus olhos, mas sentindo-se invadido por uma estranha sensação, como se o livro estivesse vivo. Como se nas mãos segurasse um ser vivo, demoníaco, inspirador de tantos actos de loucura e génio, pronto a influenciar muitos mais.
- Fascinante, não é?
- Imenso. A sua biblioteca é incrível. Nunca imaginei que alguém pudesse ter algo assim. Poderia passar aqui uma vida sem me cansar.
- Meu caro, ninguém o impediria de tal. Mas por agora, foquemo-nos noutro assunto. Quando virão buscar o seu carro?
- Só de manhã.
- Tal como eu previa. Já comeu?
- Sim, jantei há pouco tempo, antes de voltar a fazer-me à estrada.
- Optimo. Se precisar de algo, chame-me. Aprecie a biblioteca que tanto parece agradar-lhe. O seu quarto é o ultimo do andar de cima, ao fundo do corredor que encontrará ao subir as escadas. Leia. Beba. Descanse. Amanhã tratará de seguir a sua vida se o desejar.
- Peço perdão pela falta de educação. Como se chama?
- Cátia.
- Prazer. Sou o Jay.
- Alcunha?
- Diminutivo.
- Com certeza. Tenha uma boa noite Jay. Se precisar chame. Lamento não lhe oferecer mais companhia mas há algo que eu preciso terminar.
Com estas palavras ela deixa novamente a divisão, cortando-lhe a oportunidade de agradecer a hospitalidade, deixando-o entregue a si mesmo.
Levanta-se, percorre as prateleiras numa infrutífera busca por um dicionário que lhe permita traduzir do árabe para qualquer língua que ele compreenda. Acaba por desistir, pega num volume de Poe e lê enquanto termina o copo de whiskey.
Sente-se cansado, o dia foi longo. Odeia conduzir, mas esta viagem é necessária. Necessária pela busca de paz, pelo escape à desilusão, pela necessidade de algo novo. Enche de novo o copo e emborca-o de um trago. Sai da biblioteca, sobe as escadas e percorre o corredor, entrando na ultima porta, conforme indicado. O quarto é pequeno, mobiliado apenas com uma cama e um guarda-roupa.
Cai em cima da cama, vestido. Adormece minutos depois, embalado pelo cansaço e pelo whiskey. Já não pensava. Demasiado exausto até para isso.
...
Está na biblioteca, em frente da lareira, com o Necronomicon a mão. Sente medo. Frio.
Corre sem sair do lugar. Vê a face dela. Tenta falar-lhe mas ela não aparenta ouvi-lo. Tenta agarrá-la, mas ela desfaz-se em fumo.
Há um gato preto a roçar-se nas suas pernas. Pega nele ao colo e olha-o nos olhos. O gato fala-lhe numa voz de mulher que lhe é familiar sem ele saber de onde.
- Foge. Morrerás se ficares. Foge, por favor.
...
Ele acorda, suores frios a escorrer pelo seu corpo. Mais um pesadelo. Sempre que dorme os tem. Este foi no entanto estranhamente diferente dos padrões normais dos seus habituais pesadelos.
Senta-se na cama, olha o relógio de pulso, acendendo  a luz que ilumina o mostrador.
3:00.
Madrugada ainda. Está completamente desperto. Desce as escadas, volta a biblioteca. Pensa sentar-se a ler, mas os seus planos são frustrados.
Ao chegar ao fundo da escada nota que há luz na divisão onde se pretendia dirigir. Aproxima-se o mais silenciosamente possível da entrada da divisão. Tem uma sensação estranha, talvez reminiscente do pesadelo que do sono o arrancou.
Cátia está de costas para ele, debruçada sobre uma mesa que antes não estava ali. Algo se encontra em cima da mesa, mas ele não consegue de imediato perceber o quê. Está fixo na cena que se apresenta em frente dos seus olhos, paralisado pela curiosidade e um estranho terror que o assola.
Ela endireita-se e ele finalmente consegue perceber o que se encontra em cima da mesa. Um corpo humano, nu, de um homem que deveria estar nos seus 50 anos. O peito aberto, deixando ao ar o conteúdo da caixa toráxica. Ela mete a mão lá dentro e com um poderoso movimento retira-a de novo, arrancando bruscamente o coração da sua vitima. Ela vira-se para trás e ele vê novamente o rosto que o acolheu, sangue escorrendo da boca dela, olhos completamente negros, que o fitam, finalmente percebendo a sua presença. Ela pousa o coração em cima da mesa sem tirar de cima dele aquelas negras orbes.
- Deverias estar a dormir, Jay. Não precisavas ter testemunhado isto.
- Que se passa aqui?
- Sobrevivência meu querido. Preciso continuar a viver. E tu, infelizmente, terás agora que contribuir para tal, como ele o fez.
Ele sente o seu corpo ser puxado na direcção dela, arrastado por uma força invisível que ele não consegue combater, impedindo-o de se mexer. Para a centímetros dela, forçado a olhar aqueles aterradores olhos negros, completamente negros.
- Solte-me.
- Sabes demais. Neste mundo moderno, monstros como eu não podem deixar pontas soltas. Senta-te.
A mesma força invisível atira-o para a poltrona. O seu corpo está paralisado. Apenas consegue controlar a sua cabeça, o seu rosto. Consegue falar.
- Porquê matar-me? E se o vai fazer, porque não o faz de uma vez, qual é a necessidade de brincar comigo desta forma? Demonstrar os seus poderes?
- Não podes fugir de qualquer forma. Tenta mexer-te.
- Não consigo.
- Eu sei. Meu querido, o Necronomicon guarda segredos incríveis. A minha telecinesia, a minha juventude, a minha longevidade. Tudo graças a ele, e à coragem de usar os terríveis segredos que ele encerra.
Ela aproxima-se dele, olhando-o nos olhos durante alguns momentos.
- É uma pena. A tua alma é forte. Poderias ter ido longe. Poderias dominar as minhas habilidades. Bem, pelo menos poderei juntar essa essência à minha. Há séculos que não encontrava alguém tão... deliciosamente apetecível.
- Ensina-me. Mostra-me os segredos de que falas. Não és o único monstro na sala. Que ganho eu em denunciar-te?
- Mas tu pensas que eu sou burra? Este corpo é humano. Mas a minha mente há muito que transcendeu esses limites. És um monstrinho engraçado. As tuas memórias são fascinantes. Até tens algumas habilidades fora do normal. Esse teu instinto, como lhe chamas... pena não teres controlo sobre tal.
- Que queres dizer?
- És um empático, idiota. Sentes o que os que te rodeiam pensam e sentem. Com treino poderias controlar isso. Poderias forçar outros a sentirem o que tu queres. Vou adorar adicionar isso às minhas habilidades.
- Mostra-me como.
- Não, meu querido. És perigoso. Se te mostrasse isso, irias usá-lo contra mim. Mas eu quero essa habilidade. Chega pequeno, hora de morrer. Será rápido, quase indolor. Lamento.
Ele continua sem controlo do seu corpo. Forçado a observar em silencio, o controlo da sua voz também retirado, sem hipótese de reagir, ele vê o punhal a ser desembainhado, a lamina brilhante a aproximar-se da sua garganta, sente o seu toque na pele, a aterradora sensação da sua veia a ser rasgada pela afiada lamina. Os seus olhos fecham-se contra a sua vontade, não pode gritar, não se consegue mexer.
A ultima coisa que sente são os lábios dela no seu pescoço, bebendo o sangue que se esvai, levando consigo a sua vida, desvanecendo-se no frio abraço da morte.

Sem comentários:

Enviar um comentário