segunda-feira, 12 de maio de 2014

Beco dos Vádio, parte 1: Questões sem resposta

Em todas as cidades existem gatos vadios, bolas de pêlo fofinhas que caçam e vasculham restos em busca de refeições. Alguns com antigos donos humanos, outros nascidos entre becos e ruelas, todos possuindo uma natural desconfiança para com os humanos que com eles partilham a cidade. Desde as mais antigas cidades da história humana, até à recente era de neons e anúncios berrantes, gatos vadios percorrem os nossos becos e ruelas, alimentando-se de presas fáceis.
Em várias culturas pré-clássicas, os gatos foram adorados como seres divinos, guardiões da passagem entre mundos. Culturas separadas pelo tempo, espaço e herança chegaram a um ponto comum nos gatos e nas lendas que os envolvem. Os gatos são inteligentes, sagazes caçadores, que aproveitam presas fáceis e indefesas.
Em várias cidades do mundo, numa qualquer avenida principal da cidade existe um arco baixo e sólido entre dois prédios que dispõe de um sinal de mármore escrito na língua nativa indicando o nome da rua à qual dá acesso. "Beco dos Vadios". Encontrar a entrada do beco dos vadios nunca é um acto voluntário. Ouvem-se rumores e histórias que contam que aqueles que o tentam encontrar voltam frustrados de infrutíferas horas de caminhada em busca de algo que se recusa ser encontrado. Mas quase todas as semanas mais alguém desaparece na noite. Atribuem-se as culpas ao álcool e às drogas e a outras coisas. Os olhos sem voz vêem e calam. Poucos perguntam aos mendigos. Quem o faz recebe uma resposta que de tão simples soa a um enigma sem solução. "Foram os vadios que o levaram." Aqueles que pretendem saber sobre os vadios, como sobre outros segredos das ruas, devem estar prontos para pagar a refeição e manter o vinho a fluir generosamente antes de poderem colocar a sua questão e serem julgados. Os mendigos, os que vivem nas ruas, sabem mais sobre muitos segredos que aqueles que vivem confortáveis em suas casas conseguem imaginar possíveis de existir. Tudo o que pedem em troca é uma refeição quente, e vinho, e a vontade de ouvir as suas histórias sobre os recantos esquecidos da cidade.
Quando questionado sobre os vadios, o mendigo pedirá um cigarro, e lume. Só depois, barriga cheia e pulmões aquecidos contará a sua versão do que sabe. Várias vezes testemunhara pessoas, normalmente jovens nos seus vinte e poucos anos, a caminhar ébrios pelas ruas fora, a meio da madrugada. Sozinhos. O ar ficaria subitamente mais frio, e próximo do solitário caminhante apareceria um gato jovem, pequeno, com aspecto de ter frio e fome. Com pena no coração, o estranho tenta confortar a pequena cria, que mia solicitosamente e se mantém a dois ou três passos de distância do humano. Pouco depois, apenas a uns metros de onde aparecera, a cria vira para um beco, através de um arco baixo entre dois prédios, com um sinal de mármore que indica o nome da rua. A história era retida e partilhada entre os sem-abrigo, e o numero de visões da entrada do beco parecia estar a aumentar ao longo das décadas, à medida que a própria cidade crescia. Os vádios são os habitantes do beco. Sejam os gatos ou os seus ocultos mestres, aqueles que atraem jovens ébrios a becos dos quais não retornam, cuja entrada desaparece com o raiar da manhã. A história é obviamente falsa, como diria uma mente sã actual. O mendigo menciona ainda antes de abandonar o seu anfitrião, de que há histórias de alguns que entraram e saíram, mas não sem deixar para trás a sua sanidade. Desencoraja tentar encontrar um desses poucos loucos que sobreviveram.
Mas certas almas necessitam de respostas mais do que outras, e para Filipa, o súbito e inexplicável desaparecimento de Elisa, sua irmã gémea, numa noite em que havia saído sozinha para esquecer, para nunca mais ser vista, precisava de uma resposta. Mente curiosa e alma atormentada, Filipa procurou incessantemente uma pista, uma razão, um esclarecimento. Gêmea, sabia que não era de Elisa desaparecer sem avisar. Algo acontecera de extraordinário para que a sua irmã tenha desaparecido da face da Terra. Filipa ficara obcecada em descobrir o quê. Distantes em personalidade e interesses, mas ligadas pelo nascimento e aparência, eram as melhores amigas, companheiras inseparáveis de uma vida.
Filipa tentou recriar os passos da sua irmã. Falou com os amigos e conhecidos. Chegou a um trajecto que desaparecia após as 2 da manhã. Elisa fora vista em alguns locais habituais, sempre sozinha. Bebera bastante. A última vez que alguém se recorda de a ter visto seriam quase 2 horas, a sair de um bar que costumava frequentar.
Nada disto respondia às questões de Filipa. Parecia uma noite de copos talvez um pouco abusada, mas nada que Elisa não estivesse habituada. O rasto que podia encontrar era inútil. Ninguém aparentava ter nenhuma pista.
Mas a necessidade de resposta fez Filipa pedir ajuda que lhe ficaria cara, e que era um risco usar. Dada a falha da parte da policia em dar noticias da investigação, respondendo as questões de Filipa apenas com "estamos a investigar", ela decidiu fazer a sua própria investigação.
Demasiadas vezes ouvira aquela frase, e deixara por completo de acreditar nela. Desabafou com um dos frequentadores do ultimo bar onde Elisa fora vista, entre vodka e outras conversas, um dos habituais clientes do local com quem Filipa nunca falara antes.
Estranhou o paranoico olhar dele face ao desabafo, e desconfiou ainda mais do "segue-me" murmurado em voz baixa. Seguiu-o a medo para um beco próximo, e só aí, depois de ele se certificar que ninguém os observava, recebeu um pequeno cartão de visita. "Pede para falar com o Rato."
Perguntou quem era o Rato. A resposta deixou-a ainda mais apreensiva. "O Rato explica. Não fales do Rato a ninguém. O Rato explica. O Rato sabe."
Em vez de respostas viu o estranho desaparecer de vista, deixando-a só num beco escuro, com mais perguntas sem resposta.
Estava a enlouquecer? Tudo lhe parecia surreal. Completo solipsismo sob ela caíra. Olhou o cartão, descrente. Impresso em fonte genérica, apenas a inscrição "O Rato" e um número de telefone.
Deveria ligar? Quando? Quem era o Rato? O que sabia o Rato? Que sabe ela? Que aconteceu afinal? Somente um louco confiaria num estranho sem rosto para responder a questões que ninguém saberia responder. Mas louca esperava Filipa ficar se não obtivesse uma explicação. Sem um corpo para velar, sem uma noticia de que Elisa estava viva, e sem uma pista que pudesse seguir, tinha ela alguma alternativa?
Tudo o que tinha era um cartão entregue por uma cara semi-familiar e o incessante eco a sua mente repetindo vezes sem conta aquelas palavras. "O Rato explica. O Rato sabe."

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