sábado, 10 de maio de 2014

Biblioteca

A última coisa que queria era ficar aborrecido e sem nada para fazer. E os dois dias de suspensão foram um desassossegado aborrecimento, uma quieta inquietação. Tentou ouvir música, ler, programar, jogar. Não conseguia concentrar-se. Desistia, mais irrequieto, agitado e frustrado depois de cada tentativa falhada de se entreter, de tentar não pensar. E o pensamento fugia para questões às quais temia a resposta, o que tornava tais questões sobre si mesmo ainda mais pertinentes de resolver. A frustração era enorme. Não conseguia resposta, mas não conseguia deixar de ouvir a questão ser repetida ad nauseum na sua cabeça.
Estava na biblioteca, na noite de sexta, já depois das 23:00 quando ouviu dois toques na porta.
 - Entra.
Ouviu a porta abrir, ficou momentaneamente cego com a luz.
 - Que estás tu a fazer no escuro?
 - Pensar.
 - Na morte da bezerra.
 - É importante.
 - Aposto que sim. Quão importante? Partilha lá.
 - Falaste com a Ema?
 - Falei.
 - Que lhe contaste?
 - O suficiente para satisfazer as questões dela. Se havia antecedentes. Onde aprendeste aquilo. Se eu tinha noção de que tu andavas com uma arma. Se a questão de perderes os sentidos também já havia acontecido.
 - Que lhe disseste?
 - Tens lume? Deixei o meu isqueiro na cozinha.
 - Toma.
David acende o seu cigarro.
 - Trás lá um digestivo ao pai, vá. Faz-te útil.
 - Dá-me um cigarro, não tenho. Mas que lhe disseste?
Diogo passa um copo de whiskey a David.
 - Disse-lhe que sim, que já antes havias passado por episódios semelhantes. Que já tiveras que passar por lutas e provocações antes. Disse-lhe que tanto quanto sei, é a primeira vez que usas excesso de força e perguntei-lhe o que te levou a lutar.
 - Pelos vistos, o John. Eu não consigo lembrar-me da cena.
 - Foi o que ela me respondeu. Que teria sido por ele.
 - E...?
 - E, o quê? Disse-lhe que estavas a defender alguém importante. E que para isso, usaste o que aprendeste pela primeira vez.
 - E quanto à arma, que lhe disseste?
 - Isso? Respondi que desconhecia que tu andavas armado, porque a corrente que tu usas, com lamina, está em casa excepto em dias de treino, e que a corrente para caniches que tu trazes, com os pesos mais leves, não é uma arma, só um acessório de estilo, um cinto, porque estás na adolescência e é normal existirem certas afirmações estilísticas características da idade enquanto te tentas encontrar. Disse-lhe também que nunca te permitiria carregar algo capaz de colocar vidas em perigo, não que tu o fosses fazer para começar. Acho que deixei bem clara a minha posição.
 - Eles querem que eu deixe de as levar ainda assim.
 - Eu vou ver o que preciso de fazer.
 - Como assim?
 - Puto, dada a tua propensão para atrair sarilhos, eu gosto de saber que podes ter uma vantagem à mão.
 - Pai.
 - Sim?
 - Levas-me ao dojo às 8?
 - Acordar cedo no meu primeiro dia de folga em quase três semanas. Que maravilha...
 - Depois dormes.
 - Eu vou, não disse que não. Tenho que gostar, é?

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