terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Sr Estranho II

Despertei no cadeirão, a lareira há muito apagada. Talvez fosse já manhã. Doía-me a cabeça, como se a apertassem com uma pressão insuportável. Na mesa ao meu lado o copo estava ainda cheio. Peguei nele e emborquei de um único trago todo o seu conteúdo, engolindo sofregamente, nem percebendo bem o sabor acre e férreo até o liquido ter desaparecido pela minha garganta abaixo, provocando-me náuseas, fazendo-me curvar sobre mim mesmo agarrado ao estômago, tentando minimizar o protesto do meu corpo ao tentar rejeitar o liquido morno que eu havia ingerido. Mas a indisposição passou rapidamente, o meu estômago acalmou momentos depois de começar a doer.
A dor de cabeça apenas intensificou, no entanto. Tentei levantar-me, sendo forçado a sentar-me de novo, as minhas pernas falhando sob o peso do meu corpo, vazias de sensação e sem qualquer capacidade de controlo real das mesmas, privadas do correcto fluxo de sangue, provavelmente por demasiado tempo na poltrona adormecido. Esfreguei-as com as mãos durante uns minutos e em seguida tentei de novo, desta vez sendo capaz de me manter em pé, mas não sem alguns protestos dos meus músculos, magoados da noite mal dormida. Caminhei, ou tropecei, até à cozinha, enchi um grande copo com água e bebi-o de seguida, tentando afogar a ressaca. Três meros copos não deviam causar um efeito tão destrutivo. Que raios havia eu bebido afinal?
Pela reacção adversa de há pouco, duvidava que o meu estômago fosse ficar muito feliz por receber comida, portanto resolvi explorar o andar de cima da mansão. Talvez conseguisse uma ou duas respostas. Algo simples, como onde estou, ou outra coisa pequena a que me pudesse agarrar.
Subi as escadas de madeira pesada, com um aspecto antigo, cobertas de uma passadeira presa aos degraus por barras do que aparentava ser cobre ou bronze, sob constantes rangidos de protesto a cada degrau que subia, protestos da casa ao sentir o seu sossego e paz perturbados por um estranho sem memória de si.
O topo das escadas terminava no inicio de um corredor com duas portas de cada lado, todas fechadas, pelo menos à primeira vista. Abri a primeira do lado esquerdo, revelando uma casa de banho bem cuidada, em tons de rosa, modesta mas agradável à vista apesar da escolha de cor. Mas dado que o que no meu sistema digestivo insistia em resmungar era o estômago, não os intestinos, rapidamente perdi o interesse na divisória e segui para a primeira porta do lado direito.
Do outro lado da mesma encontrava-se um pequeno escritório com uma secretária de madeira, grande e trabalhada, que deveria valer uma pequena fortuna para o comprador certo, com uma poltrona em pele semelhante à da biblioteca do piso inferior servindo-lhe de companheira. Em cima da secretária estavam espalhados vários livros, com ar de terem sido consultados recentemente, dois deles ainda abertos e com páginas marcadas por pequenos envelopes. Dirigi-me à poltrona e sentei-me. À minha frente a secretária parecia estar com todos os livros dispostos ao alcance dos braços, pelo menos para alguém da minha estatura. Ao meu lado direito havia uma série de pequenas gavetas, cinco no total, embutidas na estrutura da secretária. Comecei, meio por curiosidade, meio por tédio, a abri-las uma por uma, analisando os seus conteúdos.
A primeira continha duas facas de abrir envelopes, parecendo feitas de prata, com cabo em osso, e por baixo delas uma pilha de envelopes fechados, sem qualquer endereço escrito. Tirei um deles ao acaso. Estava fechado. Deveria abri-lo? Era o do fundo da pilha. Tirei-o para fora da gaveta, coloquei-o em cima do tampo da secretária e peguei uma das facas, usei-a para abrir o envelope. Dentro dele estava uma página manuscrita numa caligrafia difícil de perceber, como se escrita à pressa, como se a mente do autor fugisse e a mão corresse para conseguir acompanhar o ritmo do seu pensamento. Demorei a conseguir decifrar algumas das palavras, mas não foi demasiado complicado tirar uma ideia geral do texto, mesmo quando algumas palavras se tornavam indecifráveis na pressa da escrita.

"10 de Fevereiro de 2012.
A mudança correu bem, se bem que organizar todos os livros correctamente sozinho demorou-me os últimos dois dias, trabalho moroso e entediante, mas imensamente necessário para o normal fluxo da continuidade do meu trabalho.
Ainda irá demorar quase uma semana a ter disponível o laboratório e a cave. Fruto do secretismo necessário. Afinal de contas, a aquisição deste local deveu-se precisamente à minha necessidade de isolamento e de distancia de olhares demasiado curiosos. Os fins justificarão os meios. Por agora há trabalho a fazer."

Algo naquela curta mensagem me despertou a atenção. Talvez a mistura entre uma banal página de um normalíssimo diário e a menção de segredos por desvendar, ou talvez a minha mente a procura de uma resposta que não lhe interessava para nada, mas cuja pergunta poderia mantê-la ocupada e longe de outras perguntas mais relevantes mas igualmente sem resposta que pairavam no limiar da minha consciência.
Resolvi no momento abrir as restantes, tentar encadear aquela pilha de mais de 30 envelopes por ordem de data, tentar encontrar uma resposta qualquer. Demoraria quase uma hora a fazê-lo, e perderia mais duas a ler e reler cada um deles...
Realmente parecia ser um diário, mas um que levantava mais questões que aquelas a que respondia.

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