A latejante e aguda dor na nuca acordou-me de um atormentado sono repleto de fugazes imagens de indescritíveis horrores e abomináveis sombras que me perseguiam por um qualquer pântano sem nome.
Levei a mão à nuca, sentindo o liquido morno que a cobria. Sangue. Apercebi-me ao olhar a minha mão, coberta daquele liquido vermelho vivo. Ferido. Como? Onde?
Não sabia, não conseguia recordar. Não conseguia lembrar-me de nada. Nome, idade, aspecto físico... sentia-me como se me tivessem roubado de mim mesmo. Afinal de contas, o que é um homem sem a sua memória? Sem saber de onde vim, como poderia saber para onde vou?
O meu instinto de sobrevivência sobrepôs-se, no entanto, a todas estas questões. Olhei finalmente em volta, tentando perceber onde estava.
Árvores. Arbustos. Um coelho que corria apressado na direcção de um monte de pedras onde provavelmente teria a sua toca, evocando na minha mente a frase "conejo estupido, conejo malo", vinda de algum ponto da minha mente. Nada disto ajudava. Acordei no meio de um bosque, sem memoria e com sangue a escorrer pela nuca. Doía só de tentar pensar na minha situação actual. O pânico de não saber como vim parar aqui começava a tomar conta de mim, a adrenalina a correr nas minhas veias, o instinto, aquele velho companheiro animal, o "bate ou foge" a tomar conta. Excepto que não havia nada onde bater, não havia um sitio para onde fugir. Fugir de quê exactamente? O que quer que tivesse causado a pancada na nuca, se me quisesse matar, teve essa oportunidade. Era pelo menos uma preocupação imediata retirada. Mas e se não o quisesse fazer? E se quisesse torturar-me? E se...
Tentei parar com a especulação, aquela auto-estrada cujo destino é a loucura.
Precisava de procurar uma forma de estancar qualquer ferida, precisava pelo menos de primeiros socorros e de me localizar no tempo e no espaço. Era um plano, tão bom quanto qualquer outro que alguém sem memória, perdido e ferido podia conjurar. Tentei localizar o Sol através das copas das árvores, uma tentativa de conseguir perceber pelo menos que horas seriam, quanto tempo de luz ainda teria, mas sem sucesso. A copa cerrada impedia-me de conseguir identificar a posição. Não me recordava de nada sobre sobrevivência. Teria algum dia sabido algo sobre tal? Noções, truques... fosse o que fosse. Nada.
Escolhi aleatoriamente uma direcção e caminhei por entre a vegetação cerrada, a custo, um progresso lento entre caminhar e tropeçar nos galhos, pedras e simples alterações no terreno ocultas pelas plantas. Que raios fazia eu no meio de um bosque, sequer?
Caminhei durante o que me pareceram horas, pela minha percepção toldada da realidade, afectada pelo excesso de adrenalina e pela minha própria desorientação espacial e temporal, até que a vegetação começou finalmente a ceder, revelando um pequeno trilho, provavelmente usado por animais, completamente esquecido pela humanidade. Segui-o durante mais umas centenas de passos, chegando por fim até à margem de uma albufeira cuja parede parecia ter séculos, deteriorada, coberta de musgo, com pedras soltas. Finalmente livre da copa das árvores, olhei por fim o sol que descia no fundo do horizonte, raiando de vermelhos e rosas o céu, invocando na minha mente a imagem de um inferno pessoal demasiado familiar e no entanto cuja origem eu não conseguia identificar por mais que tentasse, também ele roubado junto com o restante da minha memória. Tudo o que sentia era uma inquieta familiaridade com aquela imagem, e um sentimento de desassossego interno ao ser absorvido por aquele cenário que muitos diriam ser idílico. Com medo de um pôr-do-sol... quão mais fundo iria eu bater ainda?
Olhei em volta, tentando encontrar através do horizonte agora mais desimpedido um qualquer vislumbre de civilização na qual pudesse refugiar-me.
Ao fundo, do outro lado do lago artificial, talvez à distância de uns dois quilómetros, conseguia vislumbrar o topo do que parecia uma torre de igreja, escondida atrás de uma colina. Talvez houvesse algo próximo da mesma, uma casa, uma aldeia, um qualquer sinal de civilização que acolhesse um estranho perdido e sem memória de si mesmo durante uma noite. Talvez até conseguisse um prato de comida, pois o meu estômago começava a doer de fome, urrando em protesto por não ser alimentado desde nem eu sabia quando.
Forcei-me a caminhar, usando como ponte a decrepita parede que servia de barragem ao curso da ribeira, quase caindo por duas vezes antes de chegar ao outro lado. Segui mais por teimosia que por real força física, determinado a chegar perto daquela torre antes de tentar descansar. Precisava continuar antes que as forças me faltassem, antes que algo me apanhasse e me dilacerasse, me atirasse para um inferno maior que aquele em que me encontrava.
O caminho foi longo e penoso, cada passo cada vez mais difícil, as forças a abandonarem o meu corpo a cada movimento, reduzindo-me a caminhar por pura força de vontade mais que por qualquer outro motivo. Quando cheguei finalmente ao topo da colina que havia visto à distancia, a esperança abandonou-me por completo. Lá em baixo não havia qualquer sinal de que alguém habitasse aquele local há imenso tempo, o edifício cuja torre eu pensara ser de uma igreja era na verdade uma antiga casa senhorial em estilo neo-colonial, com uma torre no canto este do palacete, rodeado de um muro com cerca de dois metros de altura que rodeava toda a propriedade. Não havia qualquer iluminação na mesma e as paredes encontravam-se cobertas de heras que aproveitavam as paredes do edifício para trepar na direcção da luz do sol, para elas essencial à sua sobrevivência. Desci desanimado a colina, dei a volta ao muro em busca de uma entrada. Poderia ao menos abrigar-me durante a noite, pensei. Ao menos poderia ter um mínimo de protecção dos elementos. Do lado oposto aquele de onde eu viera encontrei um portão de ferro ferrugento, entreaberto, também ele consumido pelas heras que tomaram conta das paredes do edifício, e aparentemente de todo o lado interior do muro que eu conseguia ver. À minha frente estendia-se um caminho de terra batida que de alguma forma continuava a resistir ao avanço da vegetação, ladeado por o que em tempos fora um jardim, que agora não passava de um emaranhado de diversas espécies de plantas que se debatiam umas contra as outras por um pouco de luz. A uns vinte metros do portão o caminho terminava em frente de uma pesada porta dupla de madeira sólida, negra, intrinsecamente trabalhada. Caminhei até ela, seguindo o estreito carreiro pelo meio do matagal que substituíra o jardim. Um arrepio percorreu-me a espinha ao esticar a mão para bater na porta, tentando sem esperança que alguém pudesse abrir-me a porta. A casa parecia desabitada, abandonada aos elementos, apesar de se manter estruturalmente sólida, a falta de cuidados parecia indicar que estaria abandonada há vários anos. talvez décadas. Apenas a força dos materiais e a ingenuidade dos construtores pareciam fazer com que a mansão se mantivesse em pé.
Dei três fortes batidas na porta e ouvi o eco das mesmas dentro da mansão, seguido de um sepulcral silêncio. Só agora reparara que não parecia haver qualquer som no ar além dos provocados por mim mesmo. Nem mesmo o vento corria dentro dos muros. À minha volta tudo se encontrava em total estagnação, sem um movimento ou som produzido. Para a minha mente já bastante desassossegada esta percepção causou mais uma explosão de interrogações sem resposta à vista, baseadas nas minhas próprias sensações. Não sabia exactamente como agir, o que fazer, e a perda da minha memória não me ajudava a encontrar calma. Bati novamente, por mero descargo de consciência, antes de testar a pesada maçaneta de bronze. Destrancada. A porta abriu, produzindo um protestante ranger ao sentir a sua inercia perturbada, sem no entanto me levantar mais entraves à entrada na casa.
A porta abriu para um escuro hall de entrada, e os meus olhos demoraram alguns momentos a conseguirem distinguir formas dentro da escuridão cerrada. Do pouco que eu conseguia distinguir, o hall continha um móvel à minha esquerda, uma espécie de cómoda, sobre a qual se encontravam alguns livros cujos títulos eu não conseguia ler devido a escuridão.
Instintivamente, coloquei a mão ao bolso das calças e tirei um isqueiro que não tinha reparado que tinha. Acendi-o, e pude finalmente observar o hall, parcamente iluminado ainda assim, mas pelo menos já não me encontrava na escuridão cerrada. O local parecia bem cuidado, contrariamente ao que o seu exterior dava a entender. Alguns livros em cima da cómoda, um candelabro por cima da minha cabeça, um interruptor à minha esquerda, logo ao lado da ombreira da porta. Testei-o, e fiquei surpreso por o candelabro se iluminar. Realmente eu estava a espera que o local estivesse abandonado, e fui apanhado de surpresa pela revelação de que este possuía luz eléctrica a funcionar.
A revelação atiçou a minha curiosidade, deu-me um propósito imediato. Explorar esta estranha mansão no meio do nada parecia-me uma ideia quase boa, apesar de algo no fundo da minha mente me implorar para não o fazer. Ignorei obviamente o conselho. Afinal de contas, havia encontrado no mínimo um tecto sob o qual passar a noite. Os roncos do meu estômago incentivaram-me ainda mais a procurar algo comestível que apaziguasse a fome. Estava em modo de sobrevivência básica. Precisava tratar de mim antes de me poder preocupar com coisas como a minha memória ou o porquê de ter despertado no meio de nenhures.
Caminhei pelo andar inferior, descobrindo uma biblioteca enorme de um dos lados da casa, e uma cozinha bem apetrechada, de estilo antigo, do outro. Ao centro, uma escadaria em madeira polida abria-se para o primeiro andar, mesmo em frente da porta de entrada. Encontrei pão, vinho e alguns queijos na cozinha. Apanhei dois deles, uma garrafa de vinho e um pedaço de pão, levando-os comigo para a biblioteca.
Sentei-me numa poltrona em pele negra, puxei a mesa de café do centro da divisão para o lado da poltrona, e fiquei sentado a olhar a lareira apagada, sob a luz de um trabalhado candelabro de cristal antigo, requintado. Este lugar parecia estranho, com uma aura familiar de desassossego e abrigo.
As paredes da divisão encontravam-se cobertas de estantes, cheias de livros de diversos tamanhos, alguns deles com aspecto bastante antigo, sendo a única parede de excepção aquela em que se encontrava a lareira, ao lado da qual existia um largo cesto com lenha para a alimentar, bem como uma pequena pá para a cinza e uma tenaz.
Tomei dum golo um copo de vinho e tornei a encher o copo, pegando em seguida no queijo. Comi, ou melhor, devorei o queijo sem tocar no pão, empurrando-o para baixo com mais dois copos de vinho. Só depois disso me consegui concentrar em algo mais que a fome e o cansaço, cansaço este que persistia e me ia roubando o controlo dos músculos das pernas, demasiado cansadas para obedecer. No entanto, elas mesmas seguiram caminho até à porta, fechando-a e trancando-a com a chave presente na parte de dentro da fechadura. Voltei em seguida à biblioteca, acendi a lareira, em piloto automático. Casa estranha no meio do nada? O meu corpo e mente não pareciam processar esse facto, e era assim que me sentia, expectador de mim mesmo, observando as chamas a surgirem dos esforços das minhas mãos.
Voltei a sentar-me na poltrona. Devem ter passado meros minutos até adormecer.
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