Sentado, sozinho na solidão da noite, onde o sentido do ser se perde, desvanece na imensidão do negro céu e no vazio da alma, acompanhado de musica que ouve mas não escuta porque
escutar requer a sua atenção e nada consegue prender a mesma. Nada excepto a tormenta de desastres sequenciais, a vista tenue da destruição de si que sente cada vez mais proxima e que
tenta, a todo o custo, evitar que aconteça, condenado a falhar, adiando apenas por mais um dia, por mais uma hora aquele chamado ao oblivio e à loucura, e sente as vozes na sua cabeça,
ouve as suas palavras duras mas tão, tão cheias de sentido:
"Cede. Pára. Desiste. Esquece. Esquece-te de ti e do mundo, do passado do presente e do futuro."
"Esquece a dor da alma, esquece as cicatrizes."
Pudesse ele esquecer... ou aceitar...
E nessa brutal luta interna entre a teimosia da sobrevivencia e o desejo de parar ele se perde, lendo um caderno de poesia que por pequenos circulos fica página a página marcado pelas
lagrimas que não consegue segurar, lagrimas de dor e desespero silencioso e de solidão que desespera por uma cura, por mais um momento em que ele possa deixa de ser importante para
qualquer outra coisa que não seja fazer alguém, ainda que momentaneamente, sentir que é possivel chegar ao céu.
Fá-lo com gosto quando a oportunidade surge, fá-lo porque as suas cicatrizes lhe lembram que nem todos sabem o quão maravilhosos são e que o deveriam ouvir e sentir pelo menos uma
noite.
Ele próprio há muito que desistiu da busca por esse céu, aquele céu que se encontra na terra, ao lado daquele que se ama e adora e se preocupa sem medo de o mostrar.
Desistiu da busca, sem parar de desejar.
Sente dentro de si crescer ainda mais aquele enorme vazio que absorve tudo menos a dor na sua mente e pressiona o dedo sobre as suas feridas fisicas, sentindo a agonizante dor invadir o
seu cerebro bloqueando tudo o resto, e sente o sangue a acelerar nas veias numa tentativa de reparar os danos do seu corpo.
Ah, pudesse a sua mente ser curada com a mesma facilidade com que o seu corpo se cura.
Condenado.
Condenado a testemunhar e a sentir dor sem que nada lhe chegue a ele, condenado a sobreviver dia a dia num corpo que é demasiado resistente para que ele o consiga destruir, e a viver no
pesadelo da sua sanidade despedaçada, perdido entre momentos de loucura ponteados ocasionalmente pela sensação de lucidez que apenas o faz pensar ainda mais que é à loucura que
pertence.
À loucura onde a dor e a solidão e o mundo não existem e onde ele não sente nada.
Deixa uma ultima lagrima cair na pagina sem a segurar, lendo um poema que fala de esperança quando a sua já há tanto desapareceu, e anseia por segura-la nos seus braços e beijá-la e
dizer-lhe que ela é especial, especial demais para ele que não merece a dedicação e amor de tão pura flor, que o contacto com a corrupção da sua alma apenas irá fazer murchar.
Chá, e um cigarro, e a ansia de algo mais forte que ele sabe não poder tomar, e ansioliticos e antidepressivos e estabilizadores de humor que para pouco mais servem do que baixar o
volume da voz do desespero e transformar a loucura em farrapos sem lhe devolver a sanidade, coração e alma doentes alem de qualquer possibilidade de cura, atenuando o inevitavel,
adiando por mais um segundo, um minuto, uma hora...
E sente-se racionalmente infeliz na sua forçada felicidade quimica.
Que diferença há realmente entre as drogas do doutor e as drogas que arranjava na rua?
A legalidade? O preço?
Porque a função e o intuito são os mesmos. Ninguem deveria ser tão miseravel que esteja condenado a felicidade quimicamente induzida.
Sejam fumos de substancias psicadelicas ou comprimidos revestidos de falsa prata, nada passa de uma reacção quimica, reacção que nem consegue ser forte o suficiente independentemente da
dosagem, o seu corpo eliminando o veneno psiquico demasiado rapidamente, e anulando os efeitos desse mesmo veneno no seu corpo.
Imagina arder de dentro para fora, extinguir todo o seu ser numa explosão de chamas, e talvez, apenas talvez, ter a feliz sorte de o seu corpo não se erguer das cinzas, coisa que ele ja
desconfia que aconteça.
Não se destroi algo tão resistente quanto o seu corpo, e não se cura algo tão profundamente danificado quanto a sua alma...
E um não é compativel com o outro.
E ou cura a alma, ou destroi o corpo que a prende.
Perdido, pois ja tudo quanto se lembrou foi tentado e testado quer para fazer um quer para fazer o outro, e mesmo no unico caso de quase sucesso a Fatalidade resolveu intervir e ajudar
a que a sua dor continuasse a persistir, cruzando no seu caminho alguém que pensa tê-lo salvo quando no fundo apenas o condenou a mais sofrimento e à certeza de saber não poder terminar
o tormento que nem no suposto descanso dos seus sonhos teima em deixar a sua marca.
Acaba por ceder à exaustão e cair na cama, não antes de lançar uma prece a deidades imaginadas ou a quem estiver a ouvir:
"Deixai-me pelo menos por hoje não ter pesadelos."
Acordará mais tarde, suores frios cobrindo a sua pele nua e um grito preso na sua garganta que insiste em não sair e lhe negar sequer a libertação da sua dor em palavras.
...
E tudo o que precisava era que ela estivesse aqui...
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