domingo, 26 de maio de 2013

Despertar

Ele sai do edificio poucos minutos depois das 23:00, copo de café na mão esquerda, mexendo rapidamente a palheta de plastico que é substituta de uma colher real nestas maquinas de
distribuição automatica.
"Já trabalhei com estas máquinas" é um dos pensamentos soltos que preenchem os 25 minutos de caminhada que o separam da estação de comboio para casa e para o desejado oblivio do sono, o
desejado vortice temporal do sono, amenizador da dor da espera.
Faz sempre o mesmo caminho nos fins de semana, aquele solitário caminho, repleto de calma, por fora das artérias da cidade, atalho após atalho percorrido a pé num passo demasiado rapido
para a leveza e serenidade que transparece, quase como se os seus pés não assentassem sequer no chão, como se ele fosse vento que passa desafogadamente pelos becos e ruelas e travessas
da capital.
E é deste estado de meditação em movimento que se sente arrancado pela sensação de que algo está errado. Mas é uma sensação de perigo, não um dos habituais baques de trise realização.
Algo está mal. Algo na calma aparente da ruela deserta está errado.
Ele pára, procura nos bolsos o isqueiro e acende um cigarro, cabeça baixa, imóvel, os olhos alerta a perscutar cada milimetro da ruela.
Não vê ninguem, mas a sensação permanece.
Torna a caminhar, passo mais lento, cabeça baixa, olhos fixos no chão, ouvidos focados em qualquer som novo num raio de largos metros a sua volta.
Sente formar na sua mente uma imagem sua, vista de cima. Analisa o seu redo à medida que avança.
"Estou em panico apenas." tenta acalmar-se, ignorar a sensação.
"É apenas a tua reacção aos ultimos tempos. É só stress e cansaço."
A ultima coisa que sente é uma picada na parte de trás do pescoço e a dormencia qu dessa picada de imediato se espalha, roubando-o do equilibrio segundos antes de lhe roubar a
consciencia.
...
"Já acordavas..."
...
Torpor. Escuro. Uma incomoda dorzinha no peescço. O corpo pesa-lhe, como se o seu cerebro estivesse acordado mas o seu corpo a dormir.
Tentou abrir os olhos. Nenhuma alteração. Escuro. Mas as suas pestanas roçam algo ao abrir e fechar.
Vendado?
Alarme! Disparo de adrenalina pelo seu corpo, acordando cada extensão nervosa, permitindo-lhe perceber a sua situação.
Sentado naquilo que deve ser um banco de metal, braços amarrados atrás das costas, tornozelos amarrados ao banco. Em tronco nu, sente o toque cruel do nylon na sua pele, aspero e
constritor, fonte imediata da sua incapacidade de acção.
Preso e vendado. Resta-lhe ouvir.
Abranda a respiração e ouve. Concentra-se por completo em ouvir, em detectar algo.
Inspira.
Ouve um expirar que não o seu.
Expira.
Existe mais uma pessoa na mesma divisão que ele.
Não tinha forma de perceber se essa teria consciencia de que ele estava acordado.
Decidiu dar mais alguns minutos, tentar avaliar as sensações que recebe, analisar o que está a acontecer. Alem da irracional sensação de perigo, da picada e das cordas que o prendem não
há nada.
Um passo.
Leve. Sapato de mulher, salto.
Outro passo. Aproximava-se dele. Lentamente aproximou-se até estar junto a ele, ao seu lado, e acariciou-o com a ponta da unha, desde o inicio da sua barba por fazer até à sua pêra,
mais longa que o resto.
O toque electrizou-o por completo, arrepiando os pelos dos seus braços.
Os passos afastaram-se. Caminhavam na direcção oposta a ele. Contou sete passos até que a pessoa parasse.
Silencio, apenas cortado pela respiração de ambos.
Por mais que se concentrasse não conseguia detectar qualquer som exterior à sala, apesar de o mero respirar ou deslocar do seu anonimo anfitrião ecoar nos seus ouvidos com a intensidade
de um tiro.
E no completo silencio ouve um som que lhe arrepia a espinha.
O estalo seco de um chicote, brandido sobre o chão.
Não tem forma de saber a composição do mesmo, e a sua mente alegremente lhe apresenta diversos modelos de chicote capazes de produzir semelhante som.
O estalo inesperado do chicote nas suas costas depressa o arrancou do seu delirio, chamando a sua atenção para a linha de dor ardente nos seus ombros. Ainda esta não tinha começado a
aliviar quando nova chibatada percorreu as suas costas na diagonal, com tal força que ele sentiu a sua pele a rasgar debaixo do couro.
Cinco outras se abateram sobre a nua e já ensanguentada pele das suas costas.
Ele segura o grito de dor de cada vez que sente o impulso, que ouve o couro a cortar o ar em direcção à sua pele, que sente a sua violenta caricia no seu corpo.
Tanta raiva fora imbutida naquela investida inicial que ele conseguia notar a aceleração da respiração do seu torturador.
A percepção de tempo dele estaria certamente afectada devido à experiencia mas pareceu ter uma eternidade para respirar e ponderar se estaria a ser punido ou a receber a realização de
alguma fantasia erótica.
As gotas ocasionais do seu sangue que batem no chão fazem-no inclinar-se para a primeira.
Ele não estava amordaçado pois não?
Não, claro que não. Alguem que resolve aplicar este tratamento espera ouvir gritos, suplicas. Espera a recompensa pelo seu trabalho e pelo seu esforço.
O canto esquerdo do seu lábio levanta-se num rasgar perverso de meio sorriso.
A ponta da sua lingua recolhe uma lágrima de excruciante dor que ele não conseguiu conter e que desce pelo seu rosto, passando ao canto do seu lábio.
E o sorriso perverso valeu-lhe mais três chicotadas em rápida sucessão, menos fortes que antes, mas surpreendentemente rapidas e precisamente apontadas à ferida que ele sentia arder
abaixo da omoplata direita, abaixo do escorpião.
A extansiante dor rasgou alem da sua pele o seu sorriso, agora um completo e completamente perverso sorriso. Não saberiam que a dor era a sua mais velha e sábia companheira de uma vida?
Que ser acolhido nos seus braços também é uma forma de fugir ao vazio?
Fala finalmente, num murmurio calmo e suave que ecoa na divisão aterradoramente silenciosa.
"Posso questionar a quem devo a honra de tão acolhedora recepção?"
O sarcasmo era obvio na escolha de palavras, mas o seu tom era o mais sincero tom de vassalagem, de inferioridade, de perdição.
A resposta é o toqque leve de uma unha na sua espinha, percorrendo-a e baixo para cima cada vez aplicando mais força, mais pressão, ameaçando cortar a pele dele, e ele recosta-se ao
encontro daquela maravilhosa fonte de dor até sentir a gota de sangue começar a escorrer na parte de cima das suas costas.
Ele delicia-se no seu intimo, a dor trazendo acima aquilo que de pior há nele.
Novo murmurio, a servidão e inferioridade completamente descartadas do tom, substituidas por um tom de desafio, de rebeldia.
"Já provaste conseguir ser bastante sensual a causar dor. Diz-me, há um proposito para isto? Alem de excitar-me, fazer-me querer romper as cordas e possuir-te mostrando-te exactamente o
efeito da dor que me inflingiste?"
Som de um isqueiro a acender. Um primeiro bafo a ser puxado, solto calmamente contra a sua face, embrenhando-se nas suas narinas, fazendo-o desejar um cigarro.
Ele deixa cair a cabeça para trás, olhando vendado o tecto que não consegue ver, lábios ligeiramente afastados. Sente o filtro a serr colocado suavemente entre eles e puxa ansiosa e
sofregamente um longo bafo daquele abençoado veneno, segurando o fumo durante longos momentos, até os seus pulmões implorarem pela sua expulsão.
Solta pelas narinas o fumo, sem mudar de posição.
Tinha acabado de inspirar quando sentiu o calor e a dor e o crepitar e o odor a carne causterizada enquanto o cigarro lhe era apagado bem no centro das costas.
Nova picada no pescoço, leve e aguda e dormencia e tudo é nada.
...
Acorda no jardim em frente a casa, deitado num dos bancos de ferro mais escondido da visão geral do centro do jardim, bem longe do angulo de visão dos taxistas que a esta hora são os
unicos que poderiam ter visto algo.
Sente-se entorpecido. Está solto. Tem todos os seus pertences, tem a camisola e o casaco vestidos.
Não lhe falta nada.
Leva a mão ao pescoço. Não encontra nada que indique ou marque as duas picadas.
Levanta-se do banco, atravessa a estrada e sobe as escadas do prédio até casa.
Despeja os bolsos em cima da mesa, ao lado do computador.
00:58, a hora apresentada em digitos garrafais no centro do ecrã que acendeu assim que tocou numa tecla.
Despe o casaco e a camisola e olha as suas costas no espelho.
Nada. Não há marcas de chicote. Não há sangue. Não há os cortes daquelas unhas que mais pareciam garras.
Há apenas uma marca redonda no centro das suas costas, de queimadura recente cuja bolha foi precocemente rebentada e que arde a cada pequeno movimento que mexa a pele violada.
"Eu estou a ficar louco?"
Precisa de falar com alguém. Contar o que se passou. Desabafar que existe receio dentro dele. Receio pela sua vida e pela sua sanidade. Mas consegue já ouvir os argumentos dos que o
ouvissem.
"Não tens marcas, não tens testemunhas."
"Chegaste a casa uma hora depois? E então? Paraste para beber um copo e abusaste."
"Estás novamente a delirar, a jogar com a cabeça dos outros."
"Cresce."
"Isso são tretas. Estavas com a moca e deliraste."
Mas e a marca? E que dizer da queimadura?
E vêm-lhe à memoria as palavras da sua propria mãe: "Ele se está ferido foi porque se feriu a ele mesmo. Ele é maluco para tudo."
Sozinho e perdido, condenado a disfarçar a realidade de ficção para poder desabafar.
Mas quem poderia amar e odiá-lo tanto assim, com toda aquela intensidade?
Que outro demonio desperta dos infernos em busca de vingança ou paixão ou qualquer outro intuito escondido?
"Quem és tu?"
...

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