terça-feira, 28 de maio de 2013

Nem sempre se pode escolher

O dia seguinte foi longo e penoso e extramente desgastante no emprego e ele mal pensou na halucinante noite anterior.
Tinha a porta trancada e foi assim que voltou a deixá-la assim que entrou.
Um leve jantar e depois entregou-se à leitura até adormecer.
E no entanto, ao acordar e sair, tranca novamente a porta contráriamente ao seu hábito. Desce as escadas a correr, corre até ao comboio e só ao entrar na estação abranda o passo ao ver-se forçado a quase derrubar uma rapariga.
Segura-a, impedindo a sua queda, murmura um pedido de desculpas e segue para a plataforma para mais algumas horas de alivio e segurança.
E ao sair do comboio o seu corpo dispara num andar acelerado e numa postura que convida a sair do seu caminho, no fundo da sua mente a paranoia ainda arde, aquela sensação de perigo, leve e quase imperceptivel mas sempre presente.
E só ao cruzar as portas do edificio onde trabalha se permite relaxar.
Entrega-se ao trabalho e esquece tempo e solidão e vazio e trabalha tarde fora com afinco e celeridade, até que o seu chefe vem ter com ele poucos minutos antes das 19.
"Quando planeias ir jantar? Não tens a hora marcada para as 17?"
"Não tenho fome."
"Mas tens uma pausa de uma hora a tirar, obrigatoriamente. Faz log out às 19 no maximo, senão faço-to eu. Não estou para que questionem os  teus horarios outra vez."
"Tenho coisas a fazer e os meus telefones funcionam comigo deslogado na mesma..."
"A sério, faz uma pausa. Vai apanhar ar, fumar um cigarro, tomar café ao menos. O dia está controlado."
"Não tenho tabaco."
"Toma a minha onça, vai enrolar um."
"Não tenho vontade de sair daqui."
"Sai-me desta sala por um bocado se faz favor. Nem pausa fizeste."
"Fica pelos dias em que faço a mais."
"Pira-te."
Desististindo de discutir, pega na onça e sai.
Uma hora para queimar sem nada para o distrair.
Acaba por se sentar no jardim proximo e abrir a onça que "pedira" emprestada.
Abre-a para descobrir um bom pedaço de polén, bem mais que o suficiente para fazer uma e ele não se dar ao trabalho de reparar. "E se for um teste?"
Resolve não testar a sua sorte.
Enrola um cigarro e acende-o, sentado, braços estendidos no apoio para as costas do banco de jardim.
Minutos depois junta-se a ele um colega. Fazem conversa de circunstancia durante alguns segundos e ele fingue que tem que ir fazer qualquer coisa para se esquivar.
19:25.
Volta para dentro, senta-se no seu lugar ao canto da sala e volta a trabalhar.
Não tem realmente qualquer vontade de estar lá fora.
Acaba tudo por volta das 21:45, levanta-se e vai à sala de fumo, fuma dois cigarros e volta.
Próximo das 22. Pouco mais de uma hora para sair.
...
23:00.
Hora de sair. Não está cansado, como ontem. Olha em volta, a rua deserta à excepção do policia habitual, junto daquela suposta igreja.
Pondera que caminho seguir.
Acaba por percorrer o mesmo caminho de domingo, em direcção à baixa da cidade.
Sente um misto de receio, antecipação e ansiedade. Mais uma vez acelera o seu passo, mantendo-se atento aos movimentos e sons em seu redor.
Sabe que ruas passou no outro dia. Repete o caminho exacto.
Sente-se observado, mas sabe ser paranoia. Não se tem sentido observado tantas vezes ao longo das ultimas semanas? Sim, apenas paranoia. Paranoia e stress.
Continua a caminhar mais devagar, tentar detectar algo de anormal na inquietanto calma das ruas adormecidas. Em vão. Não há nada que o persiga, nada que ele consiga encontrar. Acaba por quase se convencer.
Caminha mais rapido ao aproximar-se de um trecho de uns 30 metros de rua sem iluminação, um daqueles becos esquecidos onde as trevas insistem em persistir. Há carros estacionados em espinha num dos lados da rua. Ele resolve circular pelo outro. Já passou há muito o sitio onde fora apanhado de surpresa. Quase convencido de que já não existia perigo, acaba por parar no meio daquele trecho escuro para acender um cigarro, o seu ultimo.
Solta o fumo do primeiro bafo devagar, deliciando-se com o efeito dentro de si, o corte da ansiedade causada também pela abstinencia.
Uma picada na nuca abaixo da linha da camisola.
...
A sua cabeça lateja, como se tivesse levado uma bordoada.
Abre os olhos. O jardim. O mesmo banco da outra vez. Novamente está tudo deserto. Não se lembra de nada.
Arrasta-se até casa, cabeça a latejar, pensamentos enevoados.
Pergunta-se o que raios lhe fizeram.
Abre a porta e tranca-a atrás de si. Pensa usar a correte de porta, mas lembra-se que ela ainda vai chegar e que usar a corrente implica ele ter que se levantar para lhe abrir a porta, coisa que ele não tem vontade nenhuma de fazer.
Esforça-se por se lembrar, mas não há nada alem do acender do cigarro.
Procura no bolso do casaco o seu bloco de notas actual e a caneta.
O bloco está no mesmo sitio. A caneta não. Acaba por se enfiar dentro do casaco, procurar em todos os bolsos.
Encontra a caneta o bolso direito interno, junto aos óculos de sol e a uma folha de papel dobrada.
"Que é isto? Não tinha folhas soltas comigo."
Pega nela e examina-a. É uma simples folha branca A5, impressa de um dos lados.
"Sei quem és. Sei onde vives. Sei onde o teu filho vive. Vais obedecer-me, ou ele vai pagar por a tua recusa."
Pânico. Não é possivel. Não o miudo. Não há qualquer instrução, só a ameaça. Servidão, usando como arma aquela que é a sua unica real fraqueza.
Precisa assentar estes acontecimentos em papel.
Pensa em mostrar a carta a alguém. Mas é um simples papel impresso. Podia ter sido escrito por qualquer um. Podia ter sido escrito e impresso or si. Apercebe-se disso. Mostrar aquela mensagem seria visto certamente como uma desesperada chamada de atenção. Não. Cabe a ele ver isto até ao fim, sozinho.
Queima a carta no cinzeiro que despeja de seguida. Sem riscos de cair em outras mãos agora.
Senta-se no sofá e escreve.
Ela chega e ele continua a escrever. Ela devia saber, afinal é a mãe daquele que está a ser ameaçado.
Não. Melhor deixá-la na abençoada ignorância. Afinal de contas, é algo dele que querem. Se colaborar vai ficar tudo bem.
Não vai haver motivo para que algo aconteça. Ele vai obedecer.
Não há escolha possivel quando é o miudo que está em risco.
E quem quer que esteja por trás disto aparenta saber disso.
...

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