A rotina estabelecida entre Diogo e John após a entrada no clube funcionava dentro de um padrão de complacente aceitação, misturando nas conversas e silêncios partilhados um misto de teoria informática, as suas vidas, música, filosofia, fúteis e sarcásticas observações da realidade imediatamente perceptível.
Ao contrário de Diogo, que apenas recentemente começara a explorar aquilo que compunha a informática que o utilizador comum ignorava no dia-a-dia, John começara a fazê-lo aos 10 anos. Foi ao longo do tempo aprendendo e limando arestas, procurando novas e melhores técnicas de programação, tentando pouco a pouco infundir consciência no seu trabalho.
Partilhavam o fascínio por aquele mundo de abstrata lógica, no qual a sua diferença, tão evidente no mundo físico, desaparecia atrás do anonimato providenciado pelo ciberespaço. Cá fora, a sua inteligência e a sua excentricidade eram olhadas de lado, toleradas nos dias menos maus, activamente exposta como negativa nos dias piores. No ciberespaço, essas mesmas características eram as suas vantagens, reconhecidas por outros indivíduos sem face que partilhavam com eles ideais e desejos e paixões. Enquanto no mundo fisico só se tinham um ao outro, ali encontravam uma miríade de outros que com eles partilhavam o tédio da existência a paixão pela descoberta.
Durante o primeiro período, apareceram talvez a metade das aulas. Iam aos testes com resultados perfeitos nos mesmos, apareciam para entregar trabalhos. Passavam a maioria do tempo a fazer pesquisa na biblioteca, ora na sala do clube ora nos computadores de acesso publico. Partilhavam teorias e técnicas descobertas, mantendo no entanto a linha de estudo e os projectos individuais separados, num semi-acordo nunca acordado de apenas revelarem as técnicas inerentes, não o que o todo seria.
Diogo começou por estudar teoria de redes, sujando as mãos e construindo do zero o seu próprio servidor, testando com ele formas de ganhar controlo do mesmo, corrigindo as falhas deste sempre que possível, bem como aprendendo novas e mais eficazes formas de dar a volta às defesas. Jogava ao gato e ao rato consigo mesmo, e ambas as partes queriam mais.
Começou a analisar o próprio servidor, recolhendo dados disponíveis neste sobre os seus utilizadores. Procurava entre os dados, percebendo a imensidão de informação que ficava para trás, como rasto da actividade de cada um. Estes rastos, pequenas migalhas deixadas para trás, poderiam ser seguidos, usados para identificar cada um dos utilizadores. Fascinava-o e horrorizava-o ao mesmo tempo este rasto. Poderiam seguir os seus passos, descobrir a sua pesquisa e usá-la contra ele. Mesmo não tendo até aí feito nada de legalmente questionável, era a invasão à sua privacidade que o deixava revoltado. Recatado como sempre, cada vez mais paranoico, a pergunta começou a formular-se repetidamente na sua mente. Poderia esconder estes rastos? Poderia apagar as migalhas? Como? As perguntas dançavam na sua mente, exigindo uma resposta adequada. Agora. Questionou os restantes membros do clube. Questionou o professor de informática. Questionou John. Procurou nos recantos mais profundos da internet por respostas. Tentou diversas ideias e técnicas, descartando as que falhavam. Questionou David, recebendo ideias interessantes e um olhar de curiosidade. Demorou semanas a dar uma resposta inicial uniformizada à questão. Começara por fazer tudo manualmente, desistindo quase de imediato da abordagem. Era demasiado falível, demasiado fácil cometer um erro, sofrer uma distracção. Precisava da perfeição da máquina, a sua atenção era falível. Começou a procurar compilar as diferentes técnicas em pequenos programas individuais, scripts. Começou a procurar uma forma de os integrar a todos numa única aplicação. Sabia estar no caminho certo, era uma questão de tempo.
Enquanto investigava e testava, havia uma necessidade que cada vez mais se tornava evidente: precisava de mais exemplos para teste. O seu próprio servidor não era suficiente para lhe dar todas as respostas que procurava. Cada vez mais esta situação o consumia. Dias antes das férias de natal finalmente resolveu partilhar essa questão com John. Este limitou-se a pedir-lhe para não fazer nada, mas para não esquecer a ideia durante as férias. Esquecer era impossível para Diogo, esta questão tornara-se o ponto fulcral da sua atenção, mas aquele pedido velado para que nada fizesse sem a presença de John fê-lo ficar sossegado. Não o impediu de colocar na mesa todas as questões e hipóteses que ponderava, mas respeitou o pedido do seu amigo, antecipando ansiosamente a altura certa de falar no assunto.
Além de colegas de turma, eram amigos, colegas de clube, companheiros de saídas. Inteligentes e com passados conturbados, encontraram um no outro uma rebelde e magoada alma à sua semelhante em diversos aspectos, capaz de compreender e amainar a dor de cada um.
Diogo foi percebendo a história de John através de pequenos fragmentos apanhados ao longo do tempo que haviam passado juntos. John nasceu em Inglaterra, nos arredores de Londres, filho de pais portugueses, educado num colégio interno devido à profissão dos pais requerer que estes viajassem quase constantemente. Foi no colégio que John estudou e viveu até ao final do ano lectivo anterior. Dias depois das férias, os seus pais morreram na queda de um avião ligeiro de passageiros, deixando John entregue aos avós que mal conhecia, pais da sua falecida mãe, que John vira umas quatro vezes até aí. Ainda não sendo muito próximo dos pais, após a sua morte John sentia-se completamente sozinho no mundo. De um momento para o outro, John perdera os pais, a sua zona de conforto, o seu país, toda a gente que conhecia. A sua vida fora estilhaçada.
John não quis aceitar a sugestão dos avós de interromper os estudos durante esse ano enquanto se ambientava ao novo país. Precisava de uma réstia de normalidade, e as aulas, embora num país diferente e numa escola nova, eram tudo o que lhe restava dessa normalidade perdida. Aproximara-se de Diogo após observá-lo no primeiro dia de aulas, e sabia ter feito a escolha certa. As questões de Diogo sobre todos os temas que John adorava eram infindáveis, a sua curiosidade nunca satisfeita, forçando John a repensar o porquê das coisas. Sugeria alternativas com mérito de teste. Oferecia-lhe um sorriso compreensivo e uma cerveja quando os dias pareciam mais longos de passar. Saiam ao fim de semana para um bar próximo do dojo de Diogo, um bar de musica rock com o ocasional metal à mistura, com varias salinhas semi-privadas para grupos. Jogavam uma variante americana de pool, chamada Bola 9, e John tinha um particular jeito para o jogo, chegando a ganhar a ocasional aposta sobre o mesmo à pressão, valendo a ambos uns trocos extra para mais uma bebida.
Para John, este seria o primeiro Natal sem os pais, passado pela primeira vez num país estranho, junto de familiares que mal conhecia. Diogo não podia permitir isso. Pediu receosamente a David para que John e os avós fossem passar o Natal com eles. Pediu para não explicar o porquê, mas tal pedido foi-lhe negado. David precisava de uma explicação, e Diogo foi obrigado a revelar os motivos que o levaram a tal pedido. John facilmente obteve a autorização dos avós, embora estes tenham recusado o convite a eles dirigido.
Diogo ficou radiante ao saber que John iria passar o Natal com ele. Juntou algum dinheiro que tinha de parte e comprou a edição especial do "Darkness and Hope" dos Moonspell como prenda para John.
David teria que passar esse Natal fora, em trabalho, e como tal, Diogo sentia-se aliviado por ao menos poder contar com a presença de uma das duas pessoas que o compreendiam. Ter John significava que Diogo não passaria mais de metade da noite acordado, com pensamentos dolorosos que nenhum antidepressivo poderia apagar. Para John, ter Diogo ao lado significava ter o apoio daquele que melhor o conhecia num momento de profunda dor. O primeiro Natal depois do acidente...
A reunião de entrega de notas realizou-se dias depois do inicio das férias. David foi informado pela directora de turma do volume de faltas. Foi também informado que estas eram sempre partilhadas com John. E que a sua grande maioria era passada na biblioteca. Avisado para o repreender, castigar por tal até, esse aviso foi ignorado. David ficou mais tranquilo ao saber que Diogo tinha finalmente encontrado alguém próximo, algo inédito até aí. Muito embora o volume de faltas, as notas de ambos saltavam à vista, e tal facto não ficou alheio à atenção de David. Penalizados nas notas finais pela questão da assiduidade, ainda assim os resultados de ambos eram impressionantes. Especialmente porque David tinha plena consciência de que Diogo não se dava ao mais pequeno incomodo de estudar matéria referente às aulas. Guardou ainda assim uma nota mental para falar com Diogo sobre as faltas. Pelo tempo que este passava frente ao computador, e pelos esquemas de algoritmia encontrados na biblioteca, tudo apontava para que Diogo estivesse mais uma vez a ser auto-didacta, empenhado num qualquer projecto cujo fim David sabia bem a inutilidade de questionar. Tentara-o no Verão, afinal de contas, e nenhum resultado obteve. Se havia algo que para David era evidente era o facto de o seu filho manter sempre a cabeça ocupada com algo, se bem que só nos últimos tempos começou a conseguir desvendar um pouco do porquê. Não, não pretende repreendê-lo ou castigá-lo pelas faltas. Mas pretende ainda assim perceber onde está a ser gasto o tempo em que deveria estar nas aulas. Mas tal conversa teria que ficar adiada para o seu regresso.