quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Infância, Parte III

Era meio de Novembro. Diogo estava na escola, no seu quarto ano. Tinha 7 anos. A sala estava gelada, nenhum tipo de aquecimento artificial conseguia compensar o vento gelado que fazia as velhas janelas rangerem constantemente.
Passavam alguns minutos das 10 quando David bateu na porta entreaberta para chamar a atenção de Isabel, pedindo para falar com ela em privado.
Diogo observava em silêncio, a ansiedade a tomar conta de si pela primeira vez na sua jovem vida. Algo estava errado. Ele nunca tinha visto o seu pai vir à escola durante o horário de aulas. Teria feito algo de errado? Pensa que não, mas ainda assim receia. Momentos depois, Isabel e David reentraram na grande e gelada sala de aula, e Diogo notou uma lágrima no canto do olho de David, este finalmente terminando a ansiedade do jovem.
 - A tua bisavó morreu.
Diogo não disse nada. Não chorou. Não perguntou quando, pois sabia aproximadamente quando. Disse-lhe bom dia e deu-lhe um beijo antes de sair para a escola, como fazia todos os dias.
 - Adeus, pequeno génio. Boa sorte.
Aconteceu depois disso, e a hora exacta em nada importava a Diogo. Dentro dele sentia um vazio a apoderar-se de si. A sua bisavó havia-se despedido dele, o seu adeus final. Ela sabia que era o fim, e pegou num desses vitais e preciosos momentos finais para se despedir dele e dar-lhe um beijo de adeus.
Durante os dois dias seguintes passou o tempo na casa mortuária, olhos vazios presos no caixão, ouvindo o incessante e irritante som de risos e conversa. David, tal como Diogo, manteve silêncio durante todo o tempo. A avó de Diogo chorava sem ruído, a pouca distancia dele, observando a face do cadáver da sua mãe.
Dentro de Diogo o vazio crescia, preenchendo-o por completo até nada existir dentro de si excepto o vazio e uma pequena frase, repetida como um mantra.
"Ela está livre."
O vazio não desapareceu depois do funeral. Ele tentou ignorá-lo, escondê-lo, preenchê-lo com livros e musica, que não faltavam em casa.
Passara a adorar os manuais de química. Lia-os e relia-os, tentando compreender os processos, sonhando consigo, de bata de laboratório, misturando líquidos coloridos, aprendendo a curar o vazio.
Se ele antes era distante, dali em diante tornou-se um completo alienígena, completamente desligado de todos, de tudo. Os resultados escolares continuavam excelentes, mas tudo o resto excepto os treinos eram ignorados.
Continuava a passar tempo com Isabel depois das aulas, pedindo trabalho extra, exercícios o mais complexos possíveis. Queria desafiar-se, aprender, ocupar a sua jovem mente. Queria fugir à sensação de vazio que dele se apoderara, mas sem sucesso.
Foi no ano lectivo seguinte que as coisas passaram a ser mais complicadas, não a nível de estudos, mas a nível social. No quinto ano rapidamente ficou conhecido entre os professores. Aborrecia-se rapidamente, não tinha paciência para as constantes repetições de matéria. Começou a pedir trabalho extra para se distrair enquanto aguardava o toque de saída. Os professores, começando pelo de português, rapidamente começaram a fornecer-lhe matéria extra. Só o seu professor de ciências se recusava a fazer-lhe essa vontade. Não que o tratasse mal, apenas se recusava a dar-lhe extras. Chegou a tentar dissuadir o resto dessa prática, avisando-os de que Diogo não iria parar ou ficar satisfeito, e Diogo era jovem demais para perceber que a sua mente tinha limites.
Diogo passava os intervalos na biblioteca da escola, entre livros e internet, uma descoberta que para ele foi maravilhosa. Tanto conhecimento apenas à distância de um mero clique num rato.
A hora de almoço era o seu pesadelo. A biblioteca fechava e ele era obrigado a passar o tempo aborrecido, à mercê dos seus colegas. Sendo muito mais jovem que os restantes, Diogo era visto e tratado como um alvo fácil, um miudito que era fácil de gozar para umas gargalhadas. Diogo não tinha, no entanto, a noção de quando recuar. Enfrentava as provocações, chegando a envolver-se em cenas de pancadaria devido a tal. O tempo entre o seu quinto ano e o nono foi uma distenção da mesma realidade: estudos extracurriculares, treinos de ninjutsu, tentar sobreviver ao tempo fora das aulas. David tentava, em vão, ajudar, oferecer apoio, dar-lhe incentivo a continuar, tentando fazer Diogo perceber que as coisas iriam mudar, mas Diogo não tinha qualquer tipo de esperança nisso. Diogo era obviamente infeliz, e David não sabia o que fazer para o ajudar.
Foi no inicio do seu 8º ano, ainda com 12 anos, que Diogo eventualmente sucumbiu. O abuso do seu cérebro, a constante infelicidade e o vazio que sentia, aliados à constante pressão dos outros miúdos fizeram com que este se fosse abaixo. Teve um esgotamento nervoso. Passou a frequentar uma psicóloga todas as semanas. O tempo na psicóloga era passado em silêncio sempre que podia. Diogo odiava aquela hora, e recusava-se a colaborar.
As perguntas eram repetidas, pouco variando.
 - Sofres abusos em casa?
 - Não.
 - E na escola?
 - Às vezes.
 - Porque é que os outros miúdos se metem contigo?
 - Sou diferente.
 - Que fazes quando isso acontece?
 - Respondo.
 - Porquê?
 - Não sou covarde.
 - E costumas envolver-te em lutas?
 - Às vezes.
 - Costumas sair magoado?
 - Às vezes.
 - Porquê às vezes?
 - Depende de quem se junta para defender o meu adversário.
 - Quem se junta a ti?
 - Ninguém.
 - Tens amigos?
 - Não.
 - Porque não?
 - Os míudos da escola são demasiado infântis.
 - Preferes falar com pessoas mais velhas?
 - Sim.
 - Gostas de falar comigo?
 - Não.
 - Porque não?
 - Passa o tempo a fazer perguntas inúteis quando é óbvio que não tem as respostas que eu preciso. Este tempo é um desperdício da minha atenção e do dinheiro do meu pai.
Todas as sessões de terapia a que foi eram mais do mesmo. Depois havia também a psiquiatra. Tinha que tomar doses diárias deste e daquele medicamento, a esta ou àquela hora. Quando perguntava durante quanto tempo, recebia como resposta:
 - Veremos quando houver melhorias.
Pensou perguntar que melhorias esperavam, mas nunca o fez. Os comprimidos eram apenas drogas legais. Faziam-no sentir-se lento, estúpido. Faziam-no sentir-se quimicamente feliz, o que o tornava ainda mais miserável. Ninguém deveria ser tão infeliz ao ponto de ser condenado a felicidade quimicamente induzida.

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