domingo, 2 de março de 2014

Problemas

Ao lado de John, Jace não sentia dor ou vazio. Sentia felicidade. Sentia-se especial e gostava de tentar demonstrar que John também era especial para si. Jace não sabia até aí o que era ser feliz, o quão bom, quão sublime é amar e ser amado. Porque mais do que a paixão que havia dentro de si, o que mais existia era amor. Empatia, familiaridade, afinidade... Mas sobretudo amor. E para ambos, o amor que sentiam e partilhavam era novo e excitante e perfeito no facto de eles serem tudo um para o outro.
Mas toda a perfeição e felicidade eventualmente atrairia atenção externa, e depois da atenção a descriminação depressa se generalizou. Já nem importava quem testemunhara aquele beijo, a verdade é que na segunda-feira seguinte já toda a escola sabia dele. Não tardaram a notar os comentários quando passavam. Jace e John passaram a odiar ainda mais segundas-feiras.
Durante toda a manhã ouviram outros a chamar-lhes paneleiros, rabetas, panilas, entre um chorrilho de outros insultos murmurados. Era impossível não notar. Falavam sempre baixo, mas garantindo que a eles seria perceptivel.
Coincidência, destino ou mero azar, David pedira a Jace que lhe fosse colocar um envelope no correio antes das 13:00. Devido ao pedido, assim que saíram da aula da directora de turma as 12:45, John foi almoçar, enquanto Jace corria para apanhar os correios ainda abertos antes da pausa para almoço. Jace fez o percurso remoendo a raiva, imprimindo-a no passo rápido e pesado.
Conseguiu chegar aos correios nuns dez minutos e enviar o envelope a tempo.
Voltou o mais rápido que pôde, esperando apanhar John ainda a almoçar na cantina. Além disso, a raiva dera-lhe fome.
Entrou na escola, seguiu para a cantina. Ou pretendia seguir, não fosse a pequena multidão que se juntara no pátio. Viu John no centro. Viu John levar um soco.
A próxima memória de Jace era o olhar aterrorizado de John ao olhar para si. Havia um peso familiar nas suas mãos. Desmaiou, o seu ultimo reflexo o de agarrar com a vida o peso em suas mãos.
(...)
Acordou na cama. Olhou o relógio na mesa de cabeceira, os dígitos vermelhos sobressaindo no escuro. 3:00 da manhã. Voltou a fechar os olhos. Não interessava, podia dormir mais um pouco.
(...)
Acordou com o despertador. Horas de banho, pequeno-almoço à pressa e correr para o autocarro. Rotina matinal em piloto-automático. O despertar efectivo de Jace viria mais tarde, não precisava de estar muito consciente para a rotina. Beijinho de bom dia à avó. Leite com café e torradas. Sair a correr de casa com a mochila. Apanhar autocarro. Colocar phones e ligar musica. Dormitar encostado à janela do autocarro. Descer. Caminhar em direcção do café. Sentar. Esperar. Mexer. Beber. Bom dia, John, bom dia, Dona Céu.
 - Bom dia, John. Bom dia, dona Céu. O que vamos ter, John?
 - História.
 - História? Isso é às segundas e quintas.
 - É quinta.
 - Não! É terça.
 - Jace, qual é a tua ultima memória?
 - Acordar? De manhã?
 - E antes disso?
Lembrava-se de segunda-feira. De ver John levar o soco. Do olhar aterrorizado dele. Do peso. De perder os sentidos e ter acordado de madrugada. Nada mais. O choque era evidente na sua expressão.
 - Lembro-me de te ver levar um soco. De te ver a olhar para mim como se tivesses medo de mim. De perder os sentidos logo após. Devo ter desmaiado.
 - Não te lembras de mais nada?
 - Não. Que aconteceu?
 - Desmaiaste. Estiveste no hospital. Foste para casa na segunda à noite. Estiveste inconsciente terça e quarta.
 - O QUÊ?!
 - Lembras-te da luta?
 - Que luta?
 - Não te lembras?!
 - Não me lembro de nada, só do que te disse. Que luta estás tu a falar?
Foram interrompidos pela dona Céu.
 - Vão lá para cima, estão mais sossegados. Tostas de frango e dois galões?
 - Sim, acho que ficamos por aqui, não vamos à aula. Anda Jace.
Subiram para a sala do fundo.
 - John, conta-me tudo o que sabes. Desde que eu saí de perto de ti em matemática.
Havia uma sombra no rosto de John. Acendeu um cigarro, revendo mentalmente a sequência de eventos. Fumou metade dele antes de começar a falar.
 - Tu saíste depois da aula. Eu fui almoçar.
Parou. Inspirou fundo.
 - Vinha a atravessar o pátio para vir para aqui. Pensei que te devia encontrar pelo caminho. Bloquearam-me o caminho, começaram a empurrar-me, chamaram-me nomes, a mim e a ti. Um deles deu-me um soco e eu caí. Foi quando tu apareceste. Meteste-te à minha frente, entre mim e eles. Tinhas as mãos na cintura. Não disseste nada.
 - Não me lembro de nada disso.
 - Tentaram provocar-te, mas sem resposta tua. Um deles tentou dar-te um murro. Só aí tu reagiste. Foste bastante rápido. Só depois me apercebi do que tinhas tirado da cintura. Atiraste uma corrente ao braço dele, ela prendeu e tu puxaste, deixando-lhe um pé à frente. Ele desequilibrou-se, tropeçou e caiu de cara no chão. Dois dos amigos dele foram na tua direcção. Atiraste a corrente à cabeça de um, apanhaste-o na têmpora. Acho que ele desmaiou. Deste uma pegada no estômago do outro, seguida de uma pancada com a outra ponta da corrente na testa dele. Toda a gente ficou abismada, sem reacção. Estávamos todos assustados depois de te ver em acção. Parecia que não estavas ali. Eu tentei agarrar-te e tu viraste-te a mim como se fosses eliminar-me também. Olhaste para mim, e depois desmaiaste.
 - Lembro-me só de olhar para ti, e de sentir as forças a desaparecerem do meu corpo.
 - A cena gerou demasiada confusão, os professores aperceberam-se. Eu, tu e eles os três fomos para o centro de saúde. Tu ficaste. Fomos examinados. Ninguém tinha nada partido, mas um deles tem vários arranhões na cara de ter caído.
 - Que aconteceu depois?
 - A Ema falou conosco, todos juntos e depois um a um. Quer falar contigo também.
 - Quão dura foi contigo?
 - Eu safei-me. Eles os três ficaram esta semana de suspensão.
 - Alguém se meteu contigo depois disso?
 - Não. O pessoal ficou chocado.
 - Chocado com quê?
 - Jace, tu desfizeste três tipos do ultimo ano, com um ar de quem nem percebeu o que aconteceu, e desmaiaste em seguida. Como se estivesses noutro mundo. Onde raios aprendeste aquilo?
 - O quê?
 - Aquilo que fizeste com a corrente-
 - Ah! Ninjutsu. Pratico aos fins de semana desde pouco depois de ter entrado para a escola.
 - Não me tinhas dito nada.
 - Não digo muita coisa.
 - Nota-se, senhor caixinha de surpresas.
 - A Ema vai querer falar comigo. Vou levar suspensão de certeza. Estou a espera de uma bela reacção na escola também.
 - Não me parece que te digam seja o que for. Fica aí, come. Eu vou falar com a Ema, dizer que estás aqui e ver o que ela quer fazer.
John saiu, e a dona Céu entregou-lhe momentos depois duas tostas de frango e um enorme galão, bem escuro, tal como ele gostava. Sentia fome, por qualquer motivo.
 - Bom apetite. Três dias sem comer devem dar fome.

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