domingo, 16 de março de 2014

Suspensão

John encontrou Ema na sala de professores, ocupada a preparar aulas, sozinha. Ema gostava do sossego da sala de professores durante o primeiro tempo. Os colegas que não tinham aula a essa hora chegavam mais tarde, os restantes encontravam-se nas respectivas salas com as suas turmas, permitindo-lhe quase duas horas de sossego para preparar aulas ou tratar de assuntos referentes à direcção da turma a si entregue.
Estranhou ouvir bater na porta, mas respondeu.
 - Entre.
John abriu a porta, percorrendo a sala com o olhar.
 - Entra, John. Precisas de algo, querido? Não devias estar na aula?
John entrou, fechando a porta atrás de si.
 - O Diogo voltou.
 - Onde está ele?
 - No café. Pedi-lhe para esperar enquanto eu vinha avisá-la. Ele queria ir à aula. Fui eu que disse que era melhor falar consigo primeiro.
 - Fizeste muito bem. Eu quero falar com ele antes de ele entrar no recinto. São quase 9 horas. Dá-me um momento enquanto arrumo esta confusão. Esperas por mim junto ao portão da escola, por favor?
 - Com certeza.
John saiu, seguindo para o portão da escola. Ema arrumou o material na pasta, guardando-a no seu cacifo. Apanhou o porta moedas, o isqueiro e o maço de tabaco e apressou-se a ir ter com John. Precisava perceber o que se passara com Diogo.
Ema estava a arriscar a posição dela, o seu emprego e a sua estabilidade ao proteger aqueles dois. Aos 38 anos, Ema tivera um punhado de grandes alunos. Recordaria cada um deles até ao final dos seus dias. Mas havia algo naqueles dois que fazia com que ela estivesse disposta a arriscar-se por eles. Menos de seis meses, e eles haviam conquistado o coração dela. Ema sabia que não haviam sido eles a começar a situação. Falara com todos excepto Jace. Ninguém ousou mentir-lhe. Temiam Jace. O director estava furioso, exigia suspensão igual para todos. Isso incluía Jace. Tratava-se de passar uma mensagem. Violência não seria tolerada dentro do recinto. E agora Ema teria que ser o corvo da tempestade, teria que dizer a um dos seus meninos prodígio que iria ser suspenso por ter defendido quem amava.
Saiu do portão da escola, acendendo um cigarro. Fez sinal a John para indicar o caminho, e seguiu-o sem dizer uma palavra.
Apagou o cigarro, inspirou fundo e atravessou a porta do café. Dentro, o ambiente era escuro, parcamente iluminado, o contraste com o ambiente exterior cegando-a momentaneamente até os seus olhos se adaptarem à penumbra.
 - Bom dia. Posso servir-lhe algo?
A voz doce da dona Céu, acolhedora e simpática, surpreendeu Ema.
 - Bom dia. Procuro um rapaz...
Céu cortou-lhe a frase a meio.
 - O Jace está lá em cima, sala do fundo. O John sabe disso. Presumo que você seja a directora de turma. Ema, certo? Você parece ter visto um fantasma, Ema. Está pálida, como quem não tem orgulho do que vai fazer. Sim, eu sei. Não vale a pena dizer-me que eu não devia saber disso só de olhar para si. Demasiados anos a dar de beber a almas atormentadas. Suba. Vou fazer-lhe um chá. Lembre-se, estes dois são importantes. Você pode ajudá-los. Faça-o.
 - Como...
 - Shiu... vá lá falar com o Jace. Já lhe levo o chá. John, podes ajudar-me a mudar o barril de imperial por favor?
John acenou afirmativamente, e Ema subiu as escadas. Atravessou a primeira sala e encontrou Jace na seguinte, encostado à parede, fumando um cigarro de olhos fechados.
 - Bom dia, Ema.
 - Bom dia, Diogo. Como te sentes?
Jace puxou mais um bafo, sustendo o fumo nos pulmões um longo momento, libertando-o em vários anéis de fumo.
 - Confuso.
 - Confuso?
Jace suspirou.
 - Acordei de manhã a pensar que era terça-feira. Chego aqui e descubro que é quinta, que passei dois dias e meio inconsciente, que me envolvi numa luta que não recordo por mais que tente, que pela primeira vez usei o que sei fora do dojo, para defender alguém que me é querido, e que, devido a tal, vou ser suspenso, ou expulso, quando não fui eu ou o John a começar seja o que for. Não acha suficiente para me sentir confuso?
Ema demorou uns momentos a responder. Não podia imaginar o que se estava a passar dentro da cabeça de Jace naquele momento.
 - Diogo...
 - Fora das aulas, chame-me Jace, Ema. Deixemos de formalidades.
 - Muito bem. Jace, o que te lembras daquela tarde?
 - Fui aos correios a correr depois da sua aula. O John foi almoçar sozinho. Quando entrei na escola de novo vi um grupo em volta de John. A única coisa que me lembro é ver John levar um soco. Tenho um flash do John a olhar para mim apavorado. Mais nada.
 - Jace... aquilo que tu fizeste...
 - Foda-se, Ema. Aquilo que eu fiz, segundo o John me contou, foi defender quem gosto. Aquilo que aconteceu foram os últimos 5 anos de dor e humilhação a virem acima. Eu sobrevivi a isso. E eu não vou deixar que o John passe pelo mesmo. E se não posso racionalizar com eles, talvez esteja na hora de lhes mostrar que não são tão fortes quanto pensam. Cansei de engolir em seco, Ema. Cansei de me restringir e deixar os idiotas fazerem o que querem. Eu sou melhor que eles em tudo, e estou farto de ser apontado por isso. Eu aguento muito. Mas não aguento ficar parado enquanto os que me são importantes são magoados quando eu tenho a capacidade de os defender.
 - Eu não te culpo pelo que fizeste, Jace. Pelo contrário. Eu falei com o teu pai. Ele contou-me dos treinos, e contou-me aquilo por que tu passaste. Tu, tal como o resto, estás suspenso até amanhã. Para mim, e para o director, é irrelevante se passaste metade da tua suspensão inconsciente. Eu lamento, mas não consegui evitar que apanhasses suspensão. Mas há outra questão, Jace. Não podes vir novamente com armas para a escola.
 - Isso implica que eu não posso vir à escola. O meu corpo tornou-se uma arma, Ema.
 - Menos, Jace, menos. Nada de correntes escondidas, só isso. Tens uma sorte enorme em legalmente não existir nada que preveja a ilegalidade das tuas correntes. Felizmente, nenhuma lei te impede de as carregar contigo. Faz isto por mim, Jace. E por ti.
 - Sem promessas. Posso pensar em deixar de trazer as correntes, mas já disse. Eu sou uma arma.
 - Jace, esquece. Cumpre isto. Não tragas as tuas correntes, só isso. Não sou eu a dizê-lo, é ordem do director.
 - Eu compreendo.
 - Não podes ir ás aulas até segunda-feira.
 - Mas hoje é dia de clube de informática.
 - Também não podes ir hoje. Vai para casa. Descansa. Voltas segunda-feira, fresco e de baterias carregadas.
 - Só tenho autocarro às 6 da tarde. Normalmente nas quintas o meu pai vem buscar-me depois do clube.
 - Queres que te deixe em casa? Não moras assim tão longe, consigo deixar-te e voltar a tempo da aula.
 - Bem, talvez seja melhor.
 - Sendo assim, anda, senão chego atrasada e esta semana já está um caos suficientemente grande sem eu ter que justificar uma falta minha.
 - É só pagar o pequeno almoço e despedir-me da dona Céu e do John.
 - Sem problema. Jace...
 - Sim?
 - Bom trabalho.
Jace pagou, deu um beijo rápido a John e outro à dona Céu e saiu com Ema. Tinha um fim de semana prolongado pela frente. Arranjaria certamente algo com que se entreter.


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