sábado, 21 de dezembro de 2013

Alianças na Noite, Parte II

Alianças na Noite, Parte II

Acabada a confusão, Jace segue em passo rápido rumo à praça, sem se dar ao trabalho de esperar por ela. Agora que a descarga de adrenalina passou, o cansaço volta aos seus membros e ele só quer voltar a casa e descansar. "A boa acção do mês foi feita. Quero a minha cama."
 - Hey! Espera! General!
A terceira palavra faz Jace parar e olhar para trás. A rapariga segue atrás dele, quase a correr, tentando apanhá-lo. Ele espera alguns momentos enquanto ela chega próximo dele, virando-se novamente na direcção da praça quando ela chega ao seu lado, seguindo o caminho dele.
 - Mas tu podes esperar, se faz favor?
 - Que queres?
 - Falar contigo.
 - Porquê?
 - Quero agradecer-te.
 - Não o fiz por ti, fi-lo pela cidade que quero ver existir.
 - És um bocado frio, não és?
Jace não responde.
 - Vais para onde?
 - Casa.
Jace faz sinal a um táxi que circula do outro lado da rua, que rapidamente inverte a marcha e pára junto a eles. Jace entra no banco traseiro, indicando o destino e colocando o cinto de segurança. O taxista não arranca de imediato, permitindo que ela abra a porta e entre para o lado dele, o taxista arrancando de seguida rumo ao destino indicado.
 - Não me vou ver livre de ti, pois não?
 - Não enquanto não me ouvires.
 - Fala.
 - Em privado. Falamos em privado.
 - Que raios me queres?
 - Já te disse, falamos em privado, há ouvidos a mais no carro.
 - Então espera. Não devemos demorar muito mais. Começo a pensar que nao te devia ter ajudado.
 - Já vais perceber que fizeste bem em fazê-lo. És sempre tão caustico e impaciente?
 - Não. Estou exausto. Só quero descansar.
 - Óptimo. Já falamos.
Jace não responde. Os poucos minutos até ao termino da viagem passam em silêncio. Quando chegam ao destino, Jace paga a viagem com uma nota e sai sem esperar o troco.
 - Mexe-te. Quero cair na cama, acender um charro e apagar até à noite.
 - Não devias fumar disso.
 - Não devia salvar miúdas fala-barato, mas agora é tarde demais. Anda lá, vá.
Sobem até casa de Jace, e este segue directo para o quarto, com ela imediatamente atrás. Assim que entra na divisão dirige-se à cama e atira-se para cima desta, puxa de um cinzeiro da mesa de cabeceira para cima do peito, tira a cigarreira da gaveta e acende um charro.
 - Fecha a porta, puxa a cadeira e senta-te. Presumo que não fumes.
 - Só tabaco.
Ela fecha a porta, trancando-a por dentro e senta-se ao lado dele na cama.
 - Vivo sozinho, era desnecessário trancares a porta.
 - Não sabia.
 - Bem, quais são as tuas intenções?
 - Agradecer-te.
 - Demasiado cansado para apreciar isso. Demasiado cansado para foder.
 - Foder? Deves ter-te em alta consideração...
 - Porque raios vieste atrás de mim, então?
 - Para te agradecer.
 - Como?
 - Ouvi-te a falar com os meus assaltantes. És o General Fantasma.
 - Onde ouviste isso?
 - Tenho ouvidos. Fala-se por aí. Como te chamas?
 - Jace.
 - Vânia.
 - Muito gosto, Vânia.
 - General Fantasma...
 - Que tem?
 - Nunca pensei que fosse alguém assim.
 - Assim como?
 - Tão jovem.
 - É. Ninguém pensa isso.
 - Bem, é indiferente. Estou em dívida para contigo, quero retribuir. Sou advogada, presumo que precises de uma.
 - Para quê? Não pretendo ser apanhado.
 - Ainda bem que não, mas se tal acontecer, quero defender-te. Mas há mais que isso.
 - Que mais?
 - Tenho ouvidos e olhos pela cidade. Foi assim que ouvi falar de ti.
 - E...?
 - E posso ajudar. Tenho contactos em todas as esquadras da capital.
 - Isso pode ser útil. Quais são os níveis de acesso desses contactos?
 - Altos. Pessoal próximo do topo. Tens alguém infiltrado?
 - Não. Mas já perdi agentes por isso. E é um risco que não posso correr.
 - Interessante. Parece que eu posso ser útil afinal.
 - Queres parte dos lucros não é?
 - Não preciso do teu dinheiro, Jace. A minha família é riquíssima. Tenho tudo o que alguma vez precisarei a esse nível.
 - E porque arriscarias a pele ao envolver-te comigo?
 - Porque é que tu te arriscaste por mim há pouco?
 - Não me arrisquei. Tinha tudo sob controlo.
 - Bem, eu tenho tudo sob controlo. És o General Fantasma. Não te envolves directamente, ou alguém saberia quem tu és. Eu posso ser a Princesa Fantasma.
 - E se eu recusar?
 - Bem, um dos meus contactos pode vir a descobrir que eu te consigo identificar, não é?
Vânia sorri, um misto de inocência e perversão no rosto.
 - Hum... és implacável.
 - Tal como tu, General. Diz-me, que pretendes fazer desta cidade?
 - Controlo. Quero segurança nas ruas. Quero que cenas como a de há pouco sejam simplesmente uma recordação distante.
 - Altruísta. E como vais conseguir isso?
 - O que causa a grande parte da criminalidade de rua?
 - Dinheiro?
 - Exacto.
 - E então?
 - Há duas formas de o conseguir fazer. Garantir oportunidades a quem precisa delas e as merece, e fazer com que temam as consequências de actos que eu desprezo. A lei e a polícia não são suficientes aqui. É preciso medo. É preciso fazê-los temer pelas consequências. A polícia de nada tem servido, porque eles sabem que a polícia tem rédea curta. Eu não tenho.
 - Mas tu não podes estar em todo o lado ao mesmo tempo, Jace.
 - É por isso que o meu exército existe. Não somos muitos. Mas partilhamos os mesmos ideais. Onde eu cresci, os miúdos podem brincar na rua. As pessoas não receiam sair de casa durante a noite. Quero isso aqui.
 - És louco, sonhador e altruísta. Combinação estranha mas que me atrai. Gostava de poder juntar-me a ti.
 - Estou demasiado cansado para te dar uma resposta.
 - Vamos dormir. Amanhã falamos sobre isso.
 - O sofá é sofá-cama.
 - Chega mas é para lá. Não gosto de sofás, e a tua cama chega bem para nós dois.
 - Como quiseres...
Jace despe-se, ficando de boxers, e Vânia segue o exemplo, tirando tudo menos as cuecas e o soutien.
 - Nada de ideias esquisitas, Jace.
 - Já te disse que estou demasiado cansado para foder.
Um sorriso no rosto de ambos. Deitam-se, e Vânia acaba por abraçá-lo. Adormecem assim, encostados. Amanhã podem definir planos em conjunto. Agora é tempo de descanso.

Familia

Antes de vos permitir ler mais um pequeno excerto, tenho algo a dizer. Quero desejar a todos os meus leitores, amigos e familiares umas boas festas, com votos de que tenham tudo o que merecem de bom nesta quadra. Agradeço a todos os meus leitores pelo tempo dispensado aos meus testamentos.
Votos de boas festas.
J. Carvalho

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Jace encontra-se no miradouro, observando a avenida movimentada naquele final de tarde. Veio encontrar Diablo, a pedido deste. O tom de Diablo parecia urgente ao telefone. A conversa resumiu-se a um cumprimento e a um pedido de que Jace o encontrasse ali. Jace chegou há momentos. Envia uma mensagem a Diablo a avisar da chegada, acende um cigarro e espera a resposta.
Precisa de um café. Mais uma directa, o corpo exausto, o cérebro já quase habituado, sempre quase habituado, nunca sendo realmente confortável, mas ainda assim, a prática excessiva deste hábito é necessária, devido às suas actividades, à programação sistemática daquele projecto... Dormir é sempre relegado para ultimo plano e as olheiras de Jace, aliadas à sua pele já por si pálida fazem-no parecer quase cadavérico nos ultimos meses.
Diablo chega minutos depois, capacete enfiado no braço, jeans rasgadas nos joelhos, t-shirt e óculos de sol. Apertam a mão.
 - Seja o que for que queres falar, podemos fazê-lo sentados a tomar café?
 - 'Tás com cara de zombie, puto. Dormiste?
 - Quando?
 - Acho que essa resposta diz tudo. Anda lá tomar café.
Atravessam a rua, entram no café mais próximo. Diablo pede uma cerveja, Jace um café duplo.
 - Que se passa Diablo?
 - Acho que a questão é mais o que se passa contigo. 'Tás com ar de zombie, e não pareces muito bem. Queres falar, desabafar?
 - Estou optimo. É só cansaço. Que precisas?
 - Preciso que uses esse teu cérebro para mim.
 - Como assim?
 - Preciso que me ajudes a fazer contas e a preparar um projecto.
 - Qual é o projecto?
 - Preciso de montar um bar para mim.
 - Chateaste-te com o Rui, finalmente?
 - 'Tou farto de não ver os meus esforços recompensados, de trabalhar sem direito a descontos, de ser explorado.
 - Diablo, tu és a alma do sitio. Sem ti aquilo fecha.
 - Ele encontra alguém de certeza.
 - Tens algum sitio em vista?
 - Tenho. É perto daqui. Queres vir?
 - Vamos já. Tens alguma ideia do valor?
 - Não. 'Tou a pedir-te que me ajudes desde o zero basicamente.
 - Quanto dinheiro tens?
 - 2000.
 - Não chega para arrancar.
 - Eu sei. Mas 'tou a pensar pedir um empréstimo. Daí pedir-te ajuda com as contas.
 - Diablo, eu não sou grande coisa em gestão, nunca tentei fazê-lo.
 - Jace... eu sei o que tu realmente fazes, lembras-te?
 - Que tem isso a ver com não saber gestão?
 - Tu fazes gestão todos os dias. Olha lá, aquela miúda que tu encontraste, com quem tens passado algum tempo...
 - Que tem?
 - Jace, tu não és do tipo de ter uma namorada. Que se passa?
 - Tornou-se numa aliada valiosa, aquela. Chama-me Mano.
 - Mano? Ganhaste uma irmã mais nova foi?
 - Mais velha. Advogada. Eu precisava de uma.
 - Como raios é que tu te aliaste a uma advogada?
 - Salvei-a de ser assaltada.
 - Armado em cavaleiro andante, Jace?
 - Sabes bem que eu não quero que a minha cidade seja insegura.
 - O que fizeste afinal?
 - Deixei uma mensagem escrita na pele do menino.
 - Começas a ter... fama.
 - Como assim?
 - As pessoas falam de alguém que está a tomar as rédeas. Já irritaste muita gente graúda. Alguns querem a tua cabeça. Outros querem falar de negócios.
 - Eu escolho com quem negoceio. E se querem a minha cabeça, terão que me encontrar primeiro.
 - Até quando consegues esconder-te?
 - Veremos. Tenho um trunfo na manga, quase pronto a ser jogado.
 - Que truque?
 - Verás quando for terminado.
 - És um cortes.
 - Sou? - Jace finalmente sorri, um frágil e momentâneo sorriso. - Estou a espera que sejas sincero, Diablo...
 - Que queres dizer com isso?
 - Podias ter-me pedido ajuda com contas ao telefone.
Diablo fica calado durante alguns minutos. Sente-se dividido, preso entre a lealdade a Jace e a preocupação com este. Jace descobriu rapidamente que havia um motivo oculto para este encontro. Diablo está genuinamente preocupado, e não é o único. Apesar de saber que Jace se tem encontrado com Vânia, apercebeu-se pela conversa que esta não é um envolvimento romântico. Manos. Almas gémeas. Diablo tem noção de que Vânia tem algumas ligações ocultas, e pela conversa de Jace, eles aliaram esforços. Não é esse o motivo da preocupação de Diablo. Jace sabe cuidar de si e escolher quem o rodeia. Mas Diablo suspeita que Jace está a sofrer em silêncio. Jace tem pouquíssimos amigos, e Diablo é o mais antigo deles. Diablo é também o único a conhecer a verdadeira razão porque Jace deixou o sul e veio para a capital, e teme que este esteja a beira de um novo esgotamento. Se tal acontecer, Jace será apanhado, a sua rede desmantelada, e a liberdade de Jace desaparecerá. A preocupação levou Diablo a contactar David. Ao fazê-lo, descobriu que Jace não dava noticias há quase dois meses. David pediu-lhe para tentar descobrir qualquer coisa. Fosse o que fosse. Se Jace estava mal, David queria saber, ajudar. Mas não o podia fazer sem saber ao certo o que se passava com o seu filho. Diablo tentou tranquilizá-lo, dizendo que Jace deveria estar simplesmente cansado com demasiado trabalho, e ambos sabiam bem o quão obsessivo e perfeccionista Jace se podia tornar. Ainda assim, prometeu a David que falaria com ele. Mas agora, frente a frente com Jace, Diablo não sabe como começar a conversa que precisa ter com Jace.
 - Jace, estamos preocupados contigo.
 - Estamos? Quem?
 - Eu.
 - E mais quem?
Diablo não consegue responder.
 - Falaste com o meu pai, não foi?
 - Falei.
 - Foda-se Diablo! Eu estou bem, não têm nada que se preocupar.
 - Jace, 'tás com cara de quem não dorme há dias, ninguém sabe nada do que se passa contigo. Foda-se, nem em mim confias para desabafar já. Nós gostamos de ti, Jace. Preocupamo-nos contigo.
 - Eu também gosto de vocês. Mas que raio queres que eu lhe diga? Estou prestes a concluir o projecto. Estou pouco a pouco a tomar as rédeas desta cidade. O meu isolamento é uma necessidade, Diablo.
 - Necessidade porquê? És teimoso que nem uma mula. Achas mesmo que o teu pai vai pensar menos de ti?
 - Há muito que o desiludi. Há muito que não mereço a confiança dele, ou a preocupação, ou o amor. Eu sou um falhado aos olhos dele, uma decepção. Ele deu-me tudo para ser um profissional de topo e para ser o orgulho da família, e eu peguei nisso e atirei tudo fora.
 - Merda Jace. Tu conseguiste mais na tua idade que muitos conseguirão numa vida.
 - A que preço? Não consigo olhar o resto da família nos olhos. Não mereço a vossa preocupação, o vosso amor, ou a vossa confiança.
 - Jace... somos a tua família. Queremos ajudar-te. Podemos ajudar-te se nos deixares.
Jace levanta-se, vira as costas a Diablo.
 - É melhor assim. Estou a proteger-vos do que me tornei.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Alianças na noite

Jace está exausto. Demasiado exausto para ir enfiar-se num clube nocturno até as 4 da manhã, mas sabe que precisa de o fazer. Não é simplesmente uma opção não o fazer. Passou as duas noites anteriores colado ao teclado, escrevendo e testando pedaços de código, tentando forçar as ideias na sua mente a serem traduzidas pelos seus dedos para uma linguagem que o seu processador compreenda. Ele precisa disto, há muito tempo que ele precisa deste projecto terminado. Adiara-o tempo suficiente, por preguiça, por magoa de remexer em algo que fora iniciado ao lado dele... Mas o tempo de preguiça e mágoa há muito que se esgotara. Cada noite que passava, cada operação que supervisionava tornavam-no mais vulnerável. A continuar daquela forma, por muito cuidado que tivesse, as coisas irremediavelmente terminariam mal. Jace precisa deste projecto concluído. Precisa dele para que o resto possa ser tratado enquanto ele se mantém nas sombras, longe de olhares e suspeitas.
Esta noite fora calma, apesar de tudo. Tinha combinado uma entrega para a meia noite, nas docas. Jace odeia trabalhar nas docas. A zona fá-lo sentir-se inquieto. Sente-se vigiado mesmo sabendo que não o está a ser. A entrega foi realizada à hora marcada. Jace observava, escondido entre as sombras de um par de contentores industriais, enquanto os rapazes por si contratados recebiam o produto, o colocavam numa carrinha de caixa fechada, e arrancavam seguindo o percurso por Jace traçado. Tudo correra conforme o planeado, mas nos confins da mente de Jace perdurava a sensação de que ainda não estava tudo bem. Só ao receber uma mensagem no telemóvel, a indicar que o pacote havia sido recebido, Jace descansou. Estava feito. Mais uma vez ele conseguira iludir toda a gente, conseguira mexer os cordéis de diversas marionetes, numa dança afinada pelo toque do seu intelecto.
Está exausto. A única coisa que quer agora é voltar para casa. É quase uma da manhã. Quer dormir. Esquecer. Deixar o cérebro descansar, deixar que este repouse, longe de operações sombrias de movimentos de substancias, longe das linhas de código que começam a finalmente oferecer resultados, longe de tudo.
Acaba por soltar um longo suspiro, abandonar o seu posto de vigia e apanhar um táxi. O destino é o mesmo clube nocturno de sempre, o sitio onde de há um ano para cá tem sistematicamente escolhido para passar todas as noites de sexta e sábado. Escolhera aquele sitio não só por o seu estilo de vestuário normal, bizarro para a comum percepção, ali era não só tolerado, mas encorajado. A música ajudava. A companhia também não o fazia odiar o sitio, mas no fundo toda essa regularidade tinha como único objectivo o de criar um álibi. Quer ser visto ali. Quer que o máximo de pessoas recordem tê-lo visto, no caso de alguma vez precisar. Sabe bem que os testemunhos de horas exactas numa noite de copos são impossíveis. Conta com tal. Toda a gente conseguiria dizer que ele ali estivera. Mas quantos seriam capazes de indicar a hora a que havia chegado? Provavelmente só o barman, Diablo, e este e Jace tinham uma relação demasiado próxima, eram demasiado chegados para que Diablo alguma vez o traísse. "Não. Não preciso de me preocupar com Diablo. Ele sabe bem o quão mais útil sou como aliado que como oponente."
Chega ao clube passam uns minutos da uma hora. Já se encontra quase cheio. Dirige-se ao balcão, pede dois Red-Bull, entrega a nota para pagar a Diablo e sorri com um aceno de boa noite. Não falam ali, quase nunca trocam mais que umas palavras, um pedido normal, cliente e barman apenas.
Procurou a sua mesa de canto habitual. Felizmente desocupada, posicionada a um canto, longe da vista de olhares indiscretos, a escuridão escondendo boa parte do seu corpo, tornando os seus gestos imperceptíveis. Abriu a primeira lata, esvaziando-a sem parar sequer para respirar. Abriu a segunda e tentou distrair-se, encontrar fosse o que fosse que lhe prendesse a atenção, que obrigasse os seus olhos a manterem-se abertos até que a bebida energética tivesse tempo para ser absorvida, reactivando os seus sentidos durante o tempo exacto para lhe permitir passar ali a noite e voltar a casa, para o tão desejado e merecido descanso.
As caras que vê são semi-conhecidas, uma boa parte dos presentes sendo clientes habituais. Deixa-se percorrer com os olhos a pista de dança, observar potenciais companhias que lhe permitissem esquecer o vazio... "Não. Estou demasiado cansado para isso." Desiste da ideia. Levanta-se e vai encostar-se num dos pilares grossos que se erguem do chão ao tecto, rodeando a pista de dança. Fica quase meia hora parado ali, bebendo ocasionalmente da sua lata, acenando com a cabeça a um qualquer conhecido por vezes, sempre tentando manter-se alerta, sempre focado em parecer o mais a vontade possível, o mais simpático possível. Parecer distante nunca seria um problema em Jace. Isso ele fazia naturalmente. Era a parte de fingir algum grau de empatia com os restantes ocupantes que exigia um esforço da parte dele.
Larga o pilar e volta ao balcão.
 - Diablo, faz-me um café duplo se faz favor.
 - A sair.
A espera de uns momentos vale a pena ao receber a sua frente uma chávena grande, cheia até ao topo de café. Não é de longe nem de perto o melhor café que Jace alguma vez bebeu, mas o mero facto de estar a ingerir uma dose industrial de cafeína dá algum conforto à mente de Jace, e os efeitos das duas bebidas energéticas começam a sentir-se. Quer fumar, mas sabe que não pode tocar no seu precioso veneno, sob pena de que o efeito da cafeína não seja suficiente para afastar o sono e a moca da erva. Não pode correr o risco.
 - Diablo, dá-me um maço de Davidoff.
Paga e acende um cigarro, saboreando o fumo sem o inalar para os pulmões. Volta para a mesa do canto. Pensa em dançar, mas as dores nas suas pernas depressa o dissuadem da ideia. "Merda. Não consigo dançar, não posso fumar, não posso beber..."
Acaba por se deixar embalar, abanando a cabeça ao som da música, deixando os minutos e as horas fundirem-se. Podia jurar que começara a sonhar. O tempo, ao fim de tanto tempo sem dormir, começava a parecer-lhe estranho. Não sentia este a passar, mas o tempo corria por si. Olha finalmente para o telemóvel. 3:40. Óptimo. Passara ali tempo mais que suficiente para evitar qualquer suspeita. Horas de seguir viagem, rumo a casa. Rumo à cama e ao sono. "Merda de semana..."
Sai do clube e percorre um grupo de ruelas e becos que o deveriam levar à Praça do Comercio, e a um táxi para casa. É um percurso que ele faz todas as vezes que sai e volta para casa sozinho. Em noites em que tem a paciência para arranjar companhia limita-se a chamar um táxi para a porta do clube, mas estando sozinho, não vê qualquer propósito em tal. Não há a promessa da satisfação dos seus desejos carnais, e como tal ele tem todo o tempo do mundo. A parte complicada já passara, e agora nada o impedia de ir descansar, excepto talvez a sua própria vontade.
Ou o par de homens de mau aspecto a ameaçarem uma rapariga no meio do seu caminho. Está ainda a uns vinte metros do trio semi-oculto pela escuridão. Dois homens a ameaçarem uma rapariga indefesa. Tão cansado... mas esta não é a cidade que ele quer para si. Não, na sua cidade uma miúda indefesa pode bem passear as 4 da manhã pelas ruas desertas sem ter que temer dois idiotas. E apesar de esta estar ainda longe de ser a cidade que pretende, Jace não vai permitir aqueles dois mancharem a imagem da sua cidade perfeita, não a sua frente, não arrastando uma rapariga inocente. Aproxima-se deles silenciosamente, sem despertar a atenção deles até estar a pouco mais de dois metros de distância das costas dos dois indivíduos. O tempo não é muito para observar o trio, apesar de a adrenalina ter acordado todas as terminações nervosas do seu corpo de uma forma que cafeína nenhuma alguma vez conseguiria.
Já vira aquela miúda antes. Uma das raparigas do clube. Lembra-se vagamente de ter sido apresentado a ela semanas antes, de saber o seu nome. Algo começado com um V. Não sabia mais nada. A face dela estava lívida, o medo tomara conta dela. Encostada a uma parede, os dois homens cortando-lhe a possibilidade de correr. Jace nem se preocupa em analisar os rufias. Não interessa. Precisa agir antes que algo de mal aconteça. Está próximo que chegue, a menos de dois metros das costas de ambos. Precisa de virar a atenção deles para si, dar à miuda a oportunidade de fugir enquanto ele os retem.
 - Hey! A morcega está sob a minha protecção. Pirem-se.
Obviamente que ele não espera ser obedecido, não sem alguma persuasão envolvida, provavelmente sob a forma de algum tipo de violência. Os dois assaltantes viram-se para ele, apanhados de surpresa. Por momentos temem ter sido encurralados por um grupo que lhes pudesse causar problemas, mas ao depararem-se de frente com uma única pessoa, a figura magra de Jace a sua frente, descontraíram. Que mal poderia aquele ser esguio fazer-lhes? Um deles solta uma gargalhada, aponta a faca na direcção de Jace, demasiado longe para ser mais que um gesto de ameaça, uma tentativa de intimidação, que Jace percebe bem pelo que é, sem um perigo imediato envolvido.
 - E quem te protege a ti, miúdo?
A voz grave tem um tom meio sádico mal disfarçado. Jace olha ambos, tirando-lhes as medidas dos pés à cabeça. Um deles, o que o interpelara, deve estar perto dos trinta anos, branco, os dentes da frente podres, tornando o seu sorriso bastante desagradável à vista. O outro deve ser da idade de Jace, talvez um ano mais velho. 21 anos no máximo dos máximos. Negro, face redonda, olhos grandes, castanhos que fitam Jace com uma curiosidade enorme, aliada a uma certa surpresa.
 - Proteger-me de quem? Não vejo nenhuma ameaça.
 - 'Tás a gozar comigo, lingrinhas? Acho que te vou desfazer as trombas, e depois volto a tratar da tua morcega. Não te preocupes, eu deixo-te consciente para assistires.
O meio sorriso do homem passou a um esgar enegrecido, de visível satisfação, saboreando a promessa de violência gratuita, esperando efeitos que não apareceram na figura a sua frente.
Jace vira-se para o mais novo dos dois, esticando o braço esquerdo, apontando para ele com o indicador.
 - Tu! Tu viste-me há três semanas atrás, na vossa rua. Recordas-te?
O ar pensativo do rapaz negro torna-se obvio na sua face. Sim, ele recordava-se. E a recordação era viva o suficiente para o deixar desconfortável.
 - Man, esquece isto. A miúda não vale a pena, não quando para lhe chegar aos bolsos é preciso passar por ele.
 - 'Tás a brincar? É só um puto.
 - Man, ele desfez as trombas de quatro gajos na rua onde eu costumo estar a noite, bem a minha frente. Só porque um deles apalpou a miúda com quem ele estava a sair de um bar.
 - Ele pode desfazer a cara de quantos bêbados queira, a mim não me mete medo. Anda cá rapaz. Mostra-me o que vales vá.
O sorriso de Jace foi a única resposta que este lhe resolveu dar, condizendo com o sorriso do homem que a sua frente empunhava uma faca na sua direcção. Jace está finalmente acordado. Completamente acordado, como se tivesse agora acordado de uma rejuvenescedora sesta. Rufias nas ruas da sua cidade não seriam tolerados, e Jace sabe bem que não pode dizer nada que convença o homem a sua frente a desistir da ideia de o esmagar, mas resolve atirar mais umas achas para a fogueira. As palavras do seu mestre repetidas na sua mente: "As emoções do teu oponente são uma arma tão poderosa quanto a kusarigamma que manejas. Aprende a usa-las e ganharás qualquer luta."
 - Verme! Cala o bico, guarda a faquinha de esfolar coelhos e acata as ordens do teu General. Essa miúda está sob a minha protecção. Os morcegos estão sob a minha protecção. Guarda a faca, dá meia volta e vai embora, ou tiro-a eu das tuas mãos e faço-te arrepender pela tua insolência.
 - A quem 'tás tu a chamar verme?!
Funcionara. Conseguira uma semente de fúria. Apenas umas gotas e esta vai desabrochar, cegar o seu oponente. Jace sabe perfeitamente que num combate justo, ele perde no momento em que apanhar um soco em cheio do seu oponente. Mas Jace está neste momento no meio do tapete no dojo, a fazer a sua saudação inicial. O próximo insulto é a sua venia de inicio, e depois será o fim.
 - Sabes, verme? Estava a pensar puxar a minha kusarigama, arrancar-te a faca, e apagar-te da consciencia com a outra ponta dela. Mas... não. Vermes como tu não merecem a honra de sentir a minha arma. Anda. Apetece-me sujar as mãos.
Não há resposta verbal. O homem investe contra Jace, faca estendida a frente, com a intenção de empalar aquele fala-barato daquele miúdo ranhoso, de lhe fazer provar o seu próprio sangue. Não espera o ar neutro deste, não espera ver a lamina da sua faca ser evitada por milímetros, o ombro de Jace a desviar-se do golpe mal apontado pela sua visão toldada de raiva. Menos ainda espera encontrar no caminho do seu pé a biqueira de aço da bota de Jace, imóvel, cravada ao chão, sentir os dedos do seu pé esmagarem-se no aço, o brusco impulso virado dele virado contra si mesmo, a faca a ser largada quando as suas mãos, por reflexo travam a sua queda caindo no alcatrão velho, a pele grossa delas rasgadas pelo toque aspero do pavimento da rua. Desorientado, levanta-se, grunhindo de dor e frustração. Quer esmagar aquele pirralho, e vai fazê-lo com as suas próprias mãos, se assim tem que ser.
Torna a correr na direcção do fedelho, mãos abertas pronto a agarra-lo e acabar com a brincadeira de se esquivar de uma vez. Uma mão naquela blusa e um soco no nariz. É quanto basta. Ele sabe que sim. O fedelho não tem cara para levar um murro de um homem a sério. Anos de ginásio e de brigas de rua provaram isso inúmeras vezes com fedelhos da laia dele, que pensam que sabem tudo porque veem filmes de artes marciais.
Jace observa o inicio da corrida. O tempo pára enquanto a sua cabeça mede as distancias. Entre o impulso e os três passos que Jace dera para trás, havia agora quase cinco metros entre ambos. As mãos de Jace mexem-se para a sua cintura, pousando nesta quase um segundo, Jace estende o braço direito num arco ao lado do corpo.
O rufia sente algo a bater-lhe na perna, qualquer coisa a enrolar-se em volta dos seus tornozelos, e desta vez o reflexo não foi rápido o suficiente para evitar que a sua cara fosse raspar no alcatrão. Atordoado durante momentos...
Momentos bastantes para que a próxima coisa que sente é uma sola de borracha na nuca, o pé de Jace pousado sobre o seu pescoço, forçando a sua cara a esborrachar-se no pavimento com a pressão. É a voz calma e neutra, mais que estar no chão indefeso, preso, à mercê de um miúdo, que mais o irrita.
 - O teu amigo avisou-te. Não deves ter reparado, mas ele não mexeu um músculo para te ajudar. Ele é um rapaz esperto. Hei-de encontra-lo um dia destes. Gosto de pessoas que pensam. Bestas como tu, meu amigo, não me servem para nada. Já agora, imagino que para ti não faça muita diferença, mas, eu gosto de explicar.
Jace sorri, aplicando um pouco mais de pressão no pé.
 - Eu disse-te, correctamente, que não eras merecedor da minha kusarigamma. E foi verdade. Essa está enrolada ao meu braço direito, como sempre esteve. O meu querido cinto, como muitos ironicamente lhe chamam, é uma mangarikusari. É uma arma de arremesso. Serve, como deves ter percebido, para imobilizar bestas acéfalas que resolvem correr na direcção do seu General, em vez de se ajoelharem e pedirem perdão por se terem atrevido a tocar num dos seus protegidos. Eu devia acabar com a tua raça, sabes? Mereces isso só por ter causado o transtorno que causaste a uma rapariga. Mas não o vou fazer. Sabes porquê?
Jace pausa, aguardando resposta, chegando a aliviar um pouco a pressão. Torna a calcar com mais força o pescoço do homem.
 - Fiz uma pergunta, verme.
 - Não sei.
Jace abusa da pressão de seguida, o homem forçado a inalar com o nariz esborrachado no alcatrão, arrastando poeira para o nariz. Jace alivia um pouco a força com que o segura, no entanto, este pequeno espectáculo foi o suficiente para passar a sua mensagem.
 - Repete depois de mim: Não sei, meu General.
Jace limita-se a mexer minimamente o pé quando a resposta prontamente lhe é apresentada.
 - Não sei, meu General.
 - Começas a aprender. Vais mostrar uma mensagem. Tu, morcega.
A rapariga está em choque, observando e obedecendo em piloto automático, a sua atenção presa nele desde que o vira a esgueirar-se por trás dos seus assaltantes momentos atrás.
 - Trás-me a faca que este desajeitado deixou cair, por favor.
Ela demora uns momentos a processar o pedido, mas acaba por aceder, entregando a faca na mão de Jace.
Jace rasga a camisa do homem com a faca. E de seguida começa a rasgar as costas deste, em golpes rasos, precisos. "Obedecerei ao General" ficou gravado em letras grandes, ocupando as costas do homem por completo, os golpes fundos o suficiente para garantir que deixariam cicatriz visível e palpável, mas efectuados de forma a garantir que não causava danos de maior além daquilo que pretendia escarificar.
Acabada a mensagem, Jace vira-se para o rapaz negro, também ele em choque.
 - Trata deste idiota. Vê se escolhes melhor as companhias. Terça-feira, está à porta do bar as 4 da tarde.
 - Que bar?
 - Que bar? Onde estás sempre, no bairro alto, na vossa rua. Vou falar contigo. Tenho uma proposta para ti. Interessado em ouvir-me?
 - Sim, estou.
 - Sim, estou...?
O tom de Jace fora suficiente para passar a mensagem.
 - Sim, estou, meu General.
Jace sorri ao ouvir estas palavras.
 - Como te chamas?
 - Caio.
 - Limpa o lixo por favor Caio. Voltamos a encontrar-nos em breve, agora tenho que garantir que levo esta miúda a casa.
Jace finalmente liberta o homem. A vontade deste encontra-se quebrada. Não tem qualquer intenção de dar sinal até que aquela figura estranha desapareça dos seus arredores.
 - Caio.
 - Sim, General?
 - Eu estava a falar a sério. Os morcegos estão sob a minha protecção. Tu também. Espalha a palavra.
 - Com certeza General.
Algo naquela figura inspirava não só um certo medo, como um certo grau de respeito. Tratara a miúda e Caio de forma cortês, no entanto não hesitara em desfazer a oposição. Caio já o vira antes. Estava curioso com a suposta proposta.
Jace acompanhado da rapariga saem do beco, seguindo o caminho que Jace pretendera seguir antes da interrupção.
Caio tirou a carteira do bolso do seu colega daquela noite, tirou o dinheiro, e seguiu na direcção contrária.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Infância, Parte II

Apesar do estranho sentimento dentro de si, o pequeno Diogo prosseguia o seu simples dia-a-dia, a rotina dos dias de escola, agora um pouco menos entediante, a companhia de Isabel, e depois de sair, sempre horas depois da hora a que os seus colegas se retiravam, depois de feitos os trabalhos de casa e de ouvir mais algumas historias de Isabel, voltava a casa, aos avós e ao pai. A rotina permitia ao pequeno não se aperceber muito das sensações que dentro de si se desenvolviam e criavam raízes. Ouvia musica. Desde que chegava a casa até à hora estipulada para dormir, a musica era uma constante à volta de Diogo. Apaixonou-se pela música graças à constante entrada de mais álbuns na colecção do pai, coisa que David fazia precisamente por ver o entusiasmo com que Diogo descobria cada novo album que aparecia.
Após ter sido forçado a passar o Natal longe do filho, David recusou-se a abdicar do aniversário deste. Não organizou uma festa propriamente dita, não no sentido normal dos colegas de escola de Diogo, mas organizou um jantar especial, com um bolo de aniversario e a sobremesa preferida de Diogo, a mousse de chocolate caseira com que este tanto se deliciava. Apanhou Diogo e Isabel na escola, convidando-a no momento para o jantar de aniversario do pequeno. Quando questionado sobre tal, David limitou-se a responder a Isabel:
 - Convidei os amigos do Diogo para o seu jantar de anos.
A simples frase resumia tudo. Fora da família, Isabel era a única pessoa com quem Diogo falava abertamente.
Depois do jantar, das sobremesas e bolo, dos parabéns típicos, desafinadamente cantados por David, os seus pais e Isabel, Diogo pode finalmente abrir as suas prendas. Livros, sem duvida escolhidos por David, oferecidos pelos seus avós. Isabel, apanhada de surpresa para o jantar, mas não para o aniversario, ofereceu a Diogo uma caneta de tinta permanente, escolhida de propósito com uma pequena mensagem em inglês que apenas anos mais tarde Diogo viria a perceber. David comprara-lhe algo que fez por completo as delicias de Diogo. Um walkman, leitor de cassetes portátil, bem como uma dezena de cassetes virgens para o pequeno poder colocar nelas as suas musicas preferidas. Deparado com a prenda, depois de um estrangulador abraço ao pai e beijos de agradecimento aos restantes, Diogo desapareceu, radiante, para a frente da aparelhagem da biblioteca, deixando David e Isabel sozinhos para poderem conversar.
 - O teu miúdo preocupa-me, David.
 - Porque motivo?
 - Há qualquer coisa nele que me deixa inquieta. Aborrece-se demasiado depressa, tem demasiada energia contida para a vida sedentária que faz. Não posso simplesmente mantê-lo a fazer exercícios extra a toda a hora. Já vai meses a frente do restante da turma, mesmo sendo o mais novo de todos.
 - Isso é mau?
 - Tentámos avançá-lo para o estimular, mas... ele continua a ter dificuldades de concentração. Não é de mais exercícios ou mais matéria escolar que ele precisa, disso ele tem lá em cima que chegue.
 - O que acha que podemos fazer?
 - Já devia ter falado contigo sobre isto. Lembras-te do piano, certo?
 - Claro.
 - Bem, porque não tentar algo semelhante com ele? Ele já passa demasiado tempo trancado na tua biblioteca.
 - Mas lá está. Música? Ele já passa demasiado tempo parado.
 - Contigo a música funcionou porque tu precisavas aprender a parar. Ele... ele precisa de libertar aquela energia que está a conter. Diogo precisa de algo mais físico. Ele procura por si mesmo a parte intelectual.
 - Ele odeia desportos.
 - Não concordo. Pelo que tenho notado, o que o mantém afastado dos desportos é a componente de equipa. Ele não sente empatia pelos colegas, e por isso evita esse tipo de desportos.
 - E algo em que ele pudesse ficar dependente de si mesmo?
 - Em que estás a pensar?
 - Artes marciais. Conheço um dojo, propriedade de um dos meus clientes, que dá lições de diversas artes marciais a turmas jovens.
 - Acho que é uma optima ideia. Alia-se a componente física à auto-disciplina. Achas que consegues que ele assista a uma demonstração?
 - Talvez se consiga organizar, é uma questão de falar com a pessoa.
 - Faz isso. Vê se ele se interessa por alguma das modalidades. Se for ele a escolher, há mais probabilidades de ele se dedicar desde inicio.
 - Vou falar e marcar isso para o fim de semana.
 - Mas, David, não o forces. Deixa ser ele a escolher o que quer, se quiser algo, claro. Podemos sempre mostrar-lhe mais coisas se necessário.
David conseguiu marcar a visita de apresentação a Diogo para esse fim de semana. No entanto, apenas seria possível assistir a uma aula das da faixa etária de Diogo. Havia turmas novas a serem formadas para os fins de semana para diversas modalidades, na faixa etária dele. David questionou a que seria possível assistir durante sábado a tarde, mesmo que fosse praticado por alunos mais velhos que Diogo. Recebeu uma lista de varias modalidades que estariam a ser praticadas nesse horário. Marcou a visita para esse sábado. Explicou que iria levar o seu filho a ver diversas modalidades, e deixar que este escolhesse alguma que lhe interessasse.
David guardou segredo sobre a visita até ao momento da mesma, tendo levado Diogo consigo sob pretexto de lhe mostrar algo novo, ao que o pequeno radiantemente se prontificou a acompanha-lo.
Foram recebidos por uma jovem loira, que se prontificou a mostrar-lhe as aulas em curso, para que Diogo pudesse talvez escolher uma. Mas Diogo estava distraído a observar um homem alto, magro, vestido de preto num estranho traje que Diogo nunca havia visto antes. Até a sua cara estava tapada por uma mascara de pano. O homem viu o olhar intenso de Diogo e resolveu aproximar-se do miúdo, que estava como que hipnotizado a olhar os seus movimentos.
 - Olá pequenote. Gostas do fato?
Diogo acena afirmativamente.
 - Que vieste fazer, pequenote?
 - O meu pai disse que me ia mostrar uma coisa gira.
 - E queres ver coisas giras é?
 - Quero.
 - Anda então. Vou-te mostrar umas coisas sobre este fato.
Delirante com a ideia de aprender algo novo, e estranhamente curioso com o homem do fato esquisito, Diogo fez um rápido sinal a David e seguiu o homem a correr, corredor abaixo, desaparecendo da vista do pai em segundos, ao virar a curva. David sorri para a mulher loira:
 - Parece que ele encontrou algo interessante. Posso?
 - Esteja a vontade. Se precisarem de ajuda, estarei na recepção.
 - Obrigado pela sua disponibilidade.
David seguiu o corredor por onde vira Diogo desaparecer, virando a curva a esquerda, onde a porta do fundo se encontrava aberta. Seguiu até lá, deparando-se com Diogo sentado no chão, a olhar para um par de indivíduos a praticar algo que David desconhecia. Um dos praticantes era o homem alto com quem Diogo falara, o outro David ainda não tinha visto. Mas o que realmente espantou David foi o olhar atento, maravilhado com que Diogo seguia os movimentos obviamente bem treinados dos praticantes.
Um deles, de cara tapada ainda, empunhava um longo bastão de madeira, usando-o para criar distancia e bloquear os golpes do outro. De cara destapada, o homem que chamara Diogo empunhava uma longa corrente com pesos nas pontas. Pela estimativa de David a corrente deveria ter uns três metros.
Diogo observava o homem de cara descoberta, vibrando com cada movimento deste, enquanto este fazia dançar a corrente em arcos largos ao lado do seu corpo, fazendo um ruído seco ao ser deflectida pelo bastão do outro combatente, numa investida furiosa e bela, quase como um bailarino cujo par é aquela estranha corrente, o homem faz o seu oponente recuar e defender-se, passando de um ataque a outro, a corrente parecendo responder ao seu pensamento em vez de aos subtis movimentos do seu ágil manuseador. Encurralou o seu adversário a um dos cantos do tapete, forçando este a recorrer a rodar continuamente o bastão a sua frente numa tentativa de afastar o ataque da corrente que parecia dançar. Um sorriso de vitória atravessa o rosto do homem da corrente, ainda antes de qualquer movimento da parte deste. Dois golpes de pulso e ambas as pontas da corrente saem disparadas, contrariando o sentido de rotação do bastão, enroscando-se neste, um mero momento antes de novo golpe de pulsos arrancar o mesmo das mãos do seu adversário, arrastado pelas correntes, depositado inofensivamente aos pés do empunhador da corrente.
Os combatentes fazem uma vénia, a figura mascarada tirando a máscara para revelar uma flamejante cabeleira ruiva, um rosto de mulher marcado por algumas sardas sob a pele branca, varias gotas de suor caindo pelo seu rosto.
O homem da corrente dirige-se para o pé de Diogo, senta-se ao lado dele e inicia conversa, David ficando a espera de ver a resposta do pequeno aquela demonstração, sem interferir.
 - E então? Gostaste?
 - Adoro. Como se chama o que estavam a fazer?
 - Ninjutsu.
 - E a corrente? Tem nome?
 - Sim, tem. Chama-se kusari. Podes por outras peças as pontas, além dos pesos que eu tenho. Sabes, o meu mestre usava duas laminas ali.
 - Foi tão giro, parecia que estavas a dançar. Ensinas-me? Eu quero dançar com a corrente tal como tu.
 - Sabes, vais ter que praticar muito, e que aprender com muito cuidado tudo o que te ensinar. Queres fazer isso?
 - Quero. Ensina-me a dançar com a corrente.
 - Como te chamas?
 - Sou o Diogo.
 - Bem, Diogo, o teu papá está a olhar para nós, e se lhe fôssemos perguntar se podes aprender ninjutsu. Consegues perguntar-lhe?
 - Podes repetir o nome, por favor?
 - Ninjutsu.
 - E a corrente?
 - Kusari.
 - Como te chamas?
 - Sou o Félix. Mestre Félix. Sou eu que ensina ninjutsu aqui.
 - Pai, quero ser aluno do Mestre Félix. Quero aprender a fazer ninjutsu com ele, quero que ele me ensine a dançar com a kusari tal como ele faz. Pode ser pai?
Não havia muito a dizer. Fora mais fácil do que David previra. Diogo havia ficado maravilhado com a estranha arte, o brilho nos seus olhos logo ao começar a associar os novos nomes dizia tudo. Acenou afirmativamente a Diogo. Teve uma breve conversa com Félix. Estava preocupado quanto a deixar um miúdo praticar com armas reais. Félix tranquilizou-o, explicando-lhe os passos do treino a longo termo. Só quando Diogo estivesse pronto é que poderia usar armas. O processo de aprendizagem começava primeiro por modelar-lhe os movimentos, limar falhas nos mesmos, e ensina-lo principalmente a prever golpes, e só depois de tudo isto estar solidamente consolidado passariam a treino com armas. E mesmo durante o mesmo, não eram usadas laminas reais, e as armas não cortantes eram revestidas de uma camada de esponja para evitar lesões. Félix explicou a David que apesar de serem perfeitamente compreensíveis os seus receios, Félix há mais de 10 anos que ensinava esta arte, e nunca havia tido ferimentos graves com os seus alunos. E não seria a primeira ou a ultima vez que Félix ensinaria alguém da idade de Diogo.
David tentou não se preocupar demasiado, analisando as vantagens da situação em vez de ficar simplesmente a imaginar cenários menos agradáveis, mas ainda assim, só depois de os treinos começarem, e depois de mais de 15 aulas de duas horas assistidas é que David finalmente baixou a guarda, deixando o seu precioso miúdo nas mãos do seu novo mestre, para aprender a dançar com as correntes.
Foi a forma arranjada por David e por Isabel de aproveitar a energia de Diogo, e de que lhe fosse ensinada uma auto-disciplina que este não encontraria de nenhuma outra forma. Falar japonês foi simplesmente algo que aconteceram sem que eles o tivessem de qualquer forma previsto. O importante era que Diogo estava, entre as artes marciais, a escola, e os seus próprios tempos livres, aparentemente completamente preenchido. Andava feliz, se bem que um pouco cansado. Continuava a estudar afincadamente, fazendo os deveres com Isabel depois das aulas, como até aí, correndo de seguida para casa para praticar os movimentos aprendidos e treinados no dojo, enquanto ouvia musica no seu walkman. A felicidade de Diogo duraria durante meses, perdurando até ao ano escolar seguinte, apesar das saudades sentidas de Isabel durante as suas primeiras férias de verão, a sua professora e amiga ausente em mais uma das suas viagens pelo mundo. Diogo esperava ansiosamente pelo regresso dela, bem como por todas as novas historias que Isabel traria para contar. Enquanto isso, praticava e estudava, fazendo orgulhosos o seu pai, e os seus dois mestres, Félix e Isabel, professores e amigos que Diogo guardaria no coração para o resto da sua vida.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Adolescência, Parte I

Fartara-se de ser humilhado e ostracizado pelo que tinha de melhor. Depois de 5 anos a ser colocado de lado, provocado e arrastado para brigas, fartara-se. O novo ano escolar que se avizinhava implicaria a mudança de escola, a sua entrada no secundário. Diogo olhava para si e não sabia o que via. Via algo ao espelho que não podia ser ele, porque ele não se sentia assim.
 - Pai, quero pedir-te um favor.
David estava sentado na biblioteca, em frente da lareira apagada, ventoinha ligada formando uma fresca brisa na sua direcção.
 - Que favor?
 - É algo estúpido.
 - Conta.
David sorri. Por algo estúpido, Diogo provavelmente estaria com vontade de fazer algo normal para a sua idade.
 - Preciso de comprar roupa.
 - Sim, realmente precisas de roupas novas. Não sei se é do treino ou da tua própria natureza, mas este verão deste um salto em altura bastante acentuado.
 - Mas...
 - Sim?
 - Quero ser eu a escolher.
David levanta o sobreolho a esta frase. Era, portanto, este o pedido estranho. Desde pequeno que Diogo usava roupas escolhidas por David, não por imposição deste, mas porque nunca mostrara qualquer interesse no que vestia até aí. David desistira de o questionar sobre opiniões, dado que a resposta era sempre a mesma, um mero encolher de ombros de indiferença.
 - Cá por mim... tens toda a liberdade de escolhas. Quando pretendes fazer isso?
 - Depende. Que tens para fazer à tarde?
 - Não tinha intenções de sair daqui, está um calor infernal lá fora. Preciso de terminar as esquemáticas de dois circuitos.
 - Bem, se formos agora, podemos estar a fazer isso juntos lá para as 19:00, eu faço-te uma delas.
 - Vais fazê-lo como? Tudo o que tens é a peça física, construi-as como prototipo, ainda não me apeteceu fazer os esquemas.
 - Aposto que consigo perceber o que fizeste e o que pretendes. Fazer engenharia reversiva ao teu trabalho é fácil.
David sabia bem o que Diogo podia fazer. Afinal, ajudava-o e incentivava-o todos os dias. Mesmo fora em viagem, David normalmente telefonava com um qualquer desafio novo diariamente, pequena tradição entre ambos de já há muito tempo, uma forma de David estimular o jovem Diogo a pesquisar informação direccionada a uma área.
 - Vai vestir algo decente em vez de andares de calções e descalço e vamos. Bem que bebia qualquer coisa fresca.
 - O problema é esse. Não tenho nada que me sirva. Tens algo audível no carro?
 - Define audível.
 - Apetece-me Mudvayne.
 - Não tenho no carro.
 - Eu trago. Dá-me 10 minutos.
David levanta-se e vai tirar o carro da garagem. Acaba de colocar o carro na rua quando Diogo lhe chega ao pé com um CD, já com outra roupa. Uns jeans azuis claros, tenis e camisa brancos.
 - Mudvayne, The Beggining of All Things to End.
 - É berros?
 - É nu-metal, segundo percebi é o que chamam a esta corrente.
 - Deve ser berros. Ao menos o vocalista dos Dream Theater não berra.
 - Não me mostraste metal? Gostei. Aguenta os estilos que eu ouço. Não é tudo rock e progressivo, pai.
 - Mete lá os berros, pronto.
Grande parte do conhecimento musical de Diogo foi obtido através de David. O amor de David pela música era antigo e com alguma mágoa recordados os seus inícios. David fora colocado em miúdo em aulas de piano, de forma a ajudá-lo a concentrar-se, mesmo motivo porque havia ele proprio sugerido a Diogo escolher um hobbie. No fundo, o treino marcial de Diogo e as aulas de piano de David tinham exactamente o mesmo propósito. Isabel era uma grande mulher e uma grande mestra na arte de ensinar e guiar pequenos prodígios. David eventualmente largou o piano em prol dos estudos, mas sentiu até ao momento a saudade das melodias. E desde aí que tem coleccionado a música que o faz deixar-se cair nos braços daquele amor à arte, por si abandonado em prol da escolha de uma carreira. Agora, tem o tempo para praticar, mas 20 anos parado entorpeceram os seus dedos, e não sente já a vontade de pisar um palco. Perdido o desejo de deslumbrar, de que lhe valia tocar se não havia já a paixão que outrora o consumia?
Mas em Diogo esta vivia. E David alimentava-a. Mostrara a Diogo uma variedade imensa de estilos e peças, desde os clássicos até à música contemporânea. Mas sempre fora o metal e o rock a eleição de Diogo. Logo desde miúdo, de entre tudo o que dispunha, o que normalmente pegava eram trabalhos com ênfase nos graves, o metal em particular sendo o estilo mais escolhido, aliado ao ocasional jazz e ao sempre presente Beethoven. Tentara uma vez, há poucas semanas atrás, ter essa conversa com Diogo, interrogar o mesmo sobre o porquê desta tendência. Diogo respondera com uma única frase.
 - O barulho ajuda a silenciar a minha cabeça.
David tentou explorar a frase, mas não obteve mais resposta da parte de Diogo.
Fizeram a viagem em silencio, ouvindo o álbum que Diogo trouxera, este trauteando a musica de olhos fechados, encostado no banco. Ao ouvir as letras, David vai tentando deduzir o que se passa na cabeça de Diogo, mas não insiste no assunto. David sempre fez questão de que Diogo soubesse que podia falar com ele sobre tudo, mas cada vez menos Diogo era dado a falar.
Só ao estacionarem no destino, um centro comercial ainda afastado da quinta, é que Diogo finalmente profere algumas palavras.
 - Até onde posso gastar?
 - Eu aviso-te quando começares a abusar.
Demasiado curioso com o que Diogo está a preparar, David resolve dar-lhe liberdade. Segue Diogo por três lojas sem que este revele qualquer interesse no que vê, antes de desistir de o pressionar com a sua presença.
 - Estou na zona da restauração a beber qualquer coisa que está um calor abrasador. Perdes-te?
 - Deves estar a brincar.
 - Pega o cartão, mas não abuses.
 - Já vou ter contigo. Obrigado pela confiança.
 - Desaparece antes que me arrependa.
O sorriso cúmplice, réplica quase exacta um do outro, atravessa o rosto de ambos.
David encontra-se preocupado. De certa forma, David revê me Diogo certas partes de si, e isso deixa-o apreensivo. Entrar para o secundário aos 14 anos não pode ser uma experiência fácil. Passar os últimos anos, sendo no minimo dois anos mais novo que os seus colegas de turma não foi certamente fácil para Diogo, e David tem observado pequenos indícios do que isto fez no desenvolvimento e na personalidade de Diogo. O pedido desse dia foi algo que apanhou David de surpresa, e ele está no mínimo curioso com o resultado da liberdade que acaba de oferecer ao filho. No fundo, ele queria seguir Diogo, ajudar nas escolhas, mas apercebeu-se rapidamente que havia já uma ideia formada na cabeça deste. Resolveu dar-lhe o espaço que este aparentava precisar para a desenvolver.
Encontrou um café, pediu um imperial e ficou sentado a espera, dividido entre a preocupação e a curiosidade. Tinha acabado de esvaziar o terceiro copo de imperial quando Diogo o encontra, vindo carregado de sacos.
 - Dá-me uma mão a levar isto para o carro.
 - Que compraste?
 - Guarda-roupa completo.
 - Decidiste renovar tudo!?
 - Quase nada me serve.
 - E o que serve não corresponde ao que procuras...
 - Era mais isso...
 - Voltamos para casa?
 - Sim, já fiz o que precisava.
Diogo pousa os sacos e abraça David, deixando o gesto preencher a falha nas suas palavras, tentando partilhar o quanto isto havia sido importante para si naquele breve gesto.
 - Obrigado.
David sorri, devolvendo o abraço.
 - Temos que ouvir berros no caminho de volta?
 - Nah. Encontrei um álbum de The Doors.
 - Boa escolha.
Mais uma viagem feita em silêncio. Diogo apanhara algures o hábito de se perder no seu mundo durante as viagens longas, e David respeitava isso. Sempre tentou dar a liberdade necessária a Diogo, deixando que este tomasse as rédeas do seu próprio destino, mas sempre tentando puxar pelo seu desenvolvimento pessoal e intelectual. "Deixa-o cair. Está lá para ajudar a levantá-lo."
Só ao chegarem a casa David pediu para ver o resultado da sessão de compras. De certa forma não ficou chocado, mas foi apanhado de surpresa pela escolha. Diogo comprara roupas simples, não havia escolhido marcas caras ou roupas da moda. Apenas havia uma cor presente: preto. Os estilos variavam, podendo ser combinados entre si, mas todas as peças eram pretas. Perguntou a Diogo o porquê, e a resposta, inesperada e enigmática deixou-o atónito, ficando gravada para sempre na sua cabeça, a voz do seu miúdo, nos seus 14 anos, repetindo dentro da sua cabeça para sempre aquelas palavras, como se as tivesse ouvido há segundos atrás:
 - Preto por luto. Luto pela inocência, pela bondade e pela compaixão, mortas nos nossos dias, e luto pela esperança morta de que um dia as coisas se tornem mais fáceis. Não há espaço para a fraqueza neste mundo, pai.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Infancia, Parte I

Antes de Jace.

Diogo nasceu numa pequena aldeia do sul, onde passou os primeiros 16 anos de vida, vivendo junto dos avós paternos. Menino prodígio desde tenra idade, aprendeu a ler sozinho aos quatro anos, passando os dias na biblioteca do pai, ou explorando os arredores da quinta dos avós.
Sempre bastante independente, preferia estar sozinho. Tentaram fazê-lo frequentar o infantário, mas ele recusava-se a ir à "escola dos bébes", como lhe chamava.
Assim que se apercebeu de que Diogo havia de alguma forma aprendido a ler, o seu pai começou a tentar estimular o seu crescimento intelectual. Começou por lhe oferecer livros para crianças e adolescentes, mas rapidamente desistiu. Estes ficavam de lado, apenas algumas páginas lidas, e Diogo voltava aos volumes científicos e textos filosóficos da biblioteca. David rapidamente mudou de estratégia. Começou a ensinar inglês ao pequeno, recusando-se a comunicar com Diogo em português. A estratégia deu frutos, Diogo rapidamente absorvendo a nova língua, usando-a como linguagem secreta quando comunicava com David, percebendo perfeitamente que ninguém que os rodeava percebia a língua estrangeira em que falavam.
Quando Diogo fez 5 anos, David ofereceu-lhe uma consola de videojogos, trazida de fora do país, de uma das varias viagens de trabalho de David, um gira-discos e alguns albuns. Um deles em particular, Diogo costumava colocar a tocar horas a fio, voltando ao inicio quando o álbum acabavam. "Images and Words" de Dream Theater.
Diogo era uma criança feliz, se bem que solitária. Não tinha amigos, raramente estabelecia contacto com crianças da sua idade, nem demonstrava qualquer interesse em tal. A única criança com quem Diogo interagia sem restrições era o seu primo Filipe, um ano mais novo, e, em todos os aspectos uma criança normal de 4 anos.
O tempo passava tranquilamente, Diogo continuando a devorar livro após livro enquanto ouvia albuns de rock e heavy metal contemporâneos, escolhendo as pérolas da colecção de David, ou alguns dos que este lhe trazia propositadamente de cada vez que saia em trabalho.
Tudo corria dentro da normal anormalidade da quinta, Diogo crescendo física e intelectualmente.
Aos 6 anos, como de esperar, foi matriculado na escola primaria. Pela primeira vez na sua vida, Diogo experimentou uma sensação que jamais o abandonaria. O primeiro ano de educação primaria era suposto ensinar-lhe o básico de matemática e de língua portuguesa. Diogo falava, lia e escrevia duas línguas, tinha conhecimentos de matemática e noções de química, adorava apreciar os textos filosóficos de vários autores, Nietzsche em especial, apesar de a sua jovem mente não ter de todo a experiência ou o conhecimento necessário para os compreender na sua totalidade, ainda assim as palavras lhe ficavam gravadas, ecoando na sua mente mesmo anos depois com a clareza e exactidão de uma gravação. Tentou acompanhar as aulas durante a primeira semana, se bem que morto de tédio. Quando questionado pelos avós sobre o que achava da escola, limitava-se a encolher os ombros, resignado, procurava algo para comer e refugiava-se na biblioteca de David, compensando o tempo perdido na escola com redobrado afinco nas suas leituras. Se Diogo costumava ler um livro por semana, essa semana leu quatro completos.
Foi com um alivio enorme que viu chegar a sexta-feira dessa primeira semana. Passou a tarde a olhar para o seu relógio com dinossauros, contando cada minuto até à hora de sair, sentindo ansiosamente que o tempo se arrastava para prolongar a sua tortura. Cinco minutos antes da hora de saída já ele tinha tudo arrumado na mochila, esperando o toque reclinado na cadeira, braços cruzados em silêncio. Sentiu no seu cabelo uma leve caricia, olhando para cima para ver nos lábios de Isabel um sorriso compreensivo.
O toque de saída, tão ansiado, fê-lo levantar-se de um salto, acenar a Isabel e desaparecer a correr sala fora, rumo a casa, rumo aos braços de David, as saudades a falarem mais forte, a necessidade de falar com a única pessoa que o compreendia fazendo uma lágrima escorrer pelo seu rosto.
 - Tira-me dali. É demasiado estúpido, pai, por favor.
 - Calma Diogo, calma. Que se passa?
 - A escola. É quase igual ao infantário. Ninguém me fala e não vale a pena ouvir quando falam. O que é cabra-cega?
David riu-se com a pergunta. Há algum tempo que temia isto. Diogo costumava dizer que queria preparar-se para a "escola dos crescidos", no entanto era demasiado tarde. Diogo enfrentara sozinho a desilusão, a "escola dos crescidos" não era nada do que esperava.
David resolveu falar com a professora do filho, sua própria professora de ensino primário, há mais de vinte anos atrás. Explicou-lhe a curta conversa com Diogo, falou das suas próprias experiências. Lembrou-lhe o quão penoso havia sido também para ele aquele tempo, aquele tédio. Ambos sorriram, um sorriso feliz de quem recorda e relembra a parte feliz da memoria partilhada, rindo naquele momento juntos de piadas e manias de David que há tanto tempo atrás Isabel havia odiado.
Concordavam num aspecto: Diogo deveria ser poupado ao máximo possível do tédio, deveria ser-lhe possibilitado tirar partido da sua inteligência e do seu insaciável desejo de aprender. Foi entre ambos redigido e assinado um apelo ao ministério, um pedido para passar o pequeno Diogo directamente para o terceiro ano.
O pedido foi analisado e debatido, um debate muito mais prolongado que o necessário para a urgência da situação, mas debate necessário para o excepcional pedido. Acabou por ser aprovado, mas com um entrave do qual Isabel rira à gargalhada ao ler quando recebeu a carta de resposta. Diogo teria que fazer provas de aferição de conhecimento referentes ao primeiro e segundo anos do ensino primário. Os testes foram entregues a Isabel junto com a resposta ao pedido e os critérios de correcção dos mesmos. Isabel marcou os testes para a sexta-feira dessa semana, terceira semana de Outubro. Afinal de contas, ela poderia justificar todo o dia do pequeno como dedicado às provas, e poderia dispensá-lo depois de este as concluir. Foi precisamente isso que disse a Diogo. Que estaria livre assim que terminasse as provas. Diogo iniciou as mesmas as 9:00, terminou as 11:30. Isabel ficou alegremente surpreendida pela celeridade, ainda mais ao fazer a correcção essa tarde, nota máxima em todas as provas. Não se havia enganado. De certa forma os tempos haviam mudado, felizmente. Isabel gostaria de ter feito o mesmo por David, mas naquela altura tal avanço seria inconcebível.
O plano de David e Isabel fora bem sucedido. O intuito era poupar Diogo ao tédio, e potenciar ao máximo o seu desenvolvimento intelectual. Nunca consideraram os efeitos deste avanço no desenvolvimento social de Diogo, mas nem mesmo o pequeno se importava minimamente com a sua obvia falta de amigos da sua idade, ou demonstrava qualquer tipo de interesse em resolver essa lacuna.
Diogo ignorava por completo a existência dos seus colegas tanto quanto possível, tentando cortar ao mínimo qualquer interacção iniciada por estes. No entanto, costumava ficar com Isabel na sala de aulas, falando alegremente, ouvindo a historias das viagens dela, historias de outros povos, outros lugares e outras vistas, historia mitos e lendas de outros sítios, eras e culturas. As vezes acordava de manhã com um sorriso no rosto depois de um sonho em que também ele viajava e via fenómenos da sua imaginação.
Passou alegremente esse tempo na escola, desde que havia sido mudado para o terceiro ano até as férias do Natal. Estudou para as provas, porque Isabel a amiga não era tão amiga assim no que tocava a deveres. Esperava que ele fosse excelente, e Diogo não queria desiludir. Havia um padrão de deveres que Isabel passava dia-sim-dia-sim a Diogo e aos seus colegas, deveres esses que normalmente eram feitos por Diogo depois de os seus colegas saírem da sala, enquanto Isabel corrigia trabalhos e preparava a matéria para o dia seguinte. Por vezes, recebia um exercício para resolver, Isabel usando-o para testar a dificuldade destes, analisando o tempo que Diogo demorava a resolvê-los. Tornaram-se amigos, mestre e aprendiz, companheiros na solidão, palavra que a Isabel muito dizia, e sentimento que Diogo em breve passaria também a conhecer.
As férias de Natal chegaram, trazendo consigo duas coisas: a companhia de Filipe, e a ausência de David, obrigado a sair do país em trabalho, sem hipótese de recusar, sob pena de perder um cliente importantíssimo. David é engenheiro electrotécnico, trabalha por conta própria e trabalho não falta, mas este cliente implicaria a adição de uma importante fonte de trabalho e lucro a ser adicionada à sua carteira de clientes, coisa que David não se podia dar ao luxo de dispensar. Queria aproveitar as férias do filho para uma escapadela com o pequeno, talvez levá-lo a ver a neve, mas o aparecimento inesperado deste cliente atirou por terra os seus planos.
Tentou explicar a situação a Diogo, mas, apesar de um prodígio para a idade, Diogo continuava a ser um miúdo de seis anos, e não aceitou bem o facto de ir passar o natal sem o pai. Queria a sua companhia na biblioteca, queria aquelas tardes preguiçosas em frente da lareira, a sombra da silenciosa presença do pai fumando o seu cigarro, o aroma da aguardente no ar, a possibilidade da companhia daquele que no fundo era o único que Diogo tinha que sentia compreendê-lo. Mesmo não sendo dado a manifestações de afecto, Diogo ressentia as ausências de David, especialmente naquela quadra.
E foi depois da partida de David que Diogo primeiro sentiu a solidão. Rodeado de pessoas, entre os avós, o primo, as ocasionais visitas de familiares e conhecidos, Diogo sentia-se só. Só e vazio. Tentava em vão ignorar a solidão e o vazio, tentando preencher ambos com livros e musica.
Foi numa dessas tardes de inicio de férias, quando voltava da aldeia com algumas coisas que a avó lhe havia pedido que fosse buscar, que ouviu, sem que alguém desse conta, uma conversa entre a sua avó e uma tia da mesma, já nos seus oitenta anos.
 - Tenho receio pelo teu neto, filha.
 - Porquê tia?
 - Meninos assim não se criam. Pergunto-me se chegará a homem, e coitado dele se chegar.
 - Porque diz isso?
 - Porque é demasiado inteligente para poder ser feliz. Pessoas inteligentes nunca são felizes filha. Pensam demais, sofrem demais, e ficam condenadas a ver o sofrimento alheio e a sentir o seu próprio, sem que a sua inteligência possa ajudar. Espero estar enganada, filha, mas o teu neto tem dois destinos: sofrimento, e morte.
 - Não diga essas coisas que me assusta, tia.
A conversa interrompida por Diogo, como se nada tivesse ouvido.
 - As tuas coisas e o troco. Comprei um chocolate para mim.
 - Fizeste bem meu querido. Podes ir brincar se quiseres. Não preciso mais de ti. Obrigada.
Diogo retirou-se, mas as palavras da anciã jamais seriam esquecidas, mesmo tendo sido enterradas nos confins da sua jovem mente poucos minutos depois de serem ouvidas.
O tempo de férias passou antes do regresso de David. O Natal de Diogo, esse ano, passou rapido, solitário e triste. Nem a presença dos avós, dos tios, primos e família alargada, nem o ambiente de festa e confraternização, ou mesmo as prendas conseguiram arrancar a Diogo um sorriso nesse dia. Passou o tempo sossegado e calado, lutando dentro de si mesmo por conter uma lágrima que teimava em surgir no seu olho, impedindo-a de cair. "Homens não choram." O mantra repetido inúmeras vezes, quase resultando de cada vez... quase...
Por varias vezes lhe perguntaram o que se passava com ele, porque parecia triste. A resposta de Diogo era sempre a mesma, uma que seria apresentada à mesma questão durante anos e anos.
 - Nada. Problema meu.
E o seu problema era o mesmo que daí em diante se tornou uma constante. Sentia-se só. Só David realmente compreendia Diogo, e a sua ausência marcava a jovem mente de Diogo. A solidão, o vazio apoderavam-se dele, tornando-se constantes, afectando tudo nele daí em diante.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Reencontro

 - Emily, transfere 50€ para o meu cartão pré-pago e chama-me um táxi, por favor.
 - Mas Mestre, há táxis a porta do prédio.
 - Quero o Manel. Liga-lhe. Pede-lhe a estimativa do valor da viagem.
 - Qual é o destino, Mestre?
 - Bairro Alto.
 - A efectuar a chamada. Transferência já realizada. Aguarde, Mestre.
Jace despe-se, ignorando por completo o ar gelado de dezembro, e entra no duche, deixando a água gelada correr pela sua pele durante largos minutos, imóvel debaixo do chuveiro, o cabelo a escorrer pelo rosto, sem fazer qualquer gesto, ignorando o facto de estar um frio cortante e de nem se ter dado ao trabalho de ligar a agua quente. A sua mente está demasiado ocupada para que ele note sequer a temperatura. Acaba por rapidamente passar champoo no cabelo, lavar o corpo com a espuma que lhe escorre da cabeça pelo tronco magro mas bem torneado.
Desliga a água, procura uma toalha, secando-se rapidamente, em movimentos rapidos e vigorosos, a toalha raspando a sua pele pálida, com força suficiente para deixar a sua pele vincada por varias marcas vermelhas, pelo menos durante alguns minutos.
Abandona a toalha no chão da casa de banho, caminhando nu até ao quarto, onde procura nas gavetas a primeira roupa que encontra. Jeans e camisa pretos. Pega numa escova de cima da cómoda e dirige-se para frente do espelho alto ao canto da divisão. Olha para a imagem por este devolvida, arranca num movimento demasiado brusco a camisa, tira rapidamente as calças. Revolve as gavetas da cómoda até encontrar no fundo de uma um par de calças pretas, largas, e uma blusa de lycra. Há anos que não usava este género de roupa, tendo optado por um estilo um pouco mais formal e menos vistoso durante o tempo em que esteve casado, mas hoje, por qualquer motivo a si alheio, resolve vestir algo que lhe realce o corpo, que o faça sentir bem dentro da sua pele. Está a acabar de se vestir quando ouve a voz da Emily:
 - Mestre, o Manel acaba de tocar a campainha, está a entrada do prédio.
 - Avisa-o que desço em 5 minutos. Paga ao homem por transferência Emily, vou sair apenas com o cartão pré-pago, e 50 não chega para o táxi e para esquecer...
 - Já o havia feito, Mestre.
 - Que faria eu sem ti, Emily?
 - Eu gosto de cuidar de si, Mestre. Tenha cuidado. Vou avisar o Manel para esperar por si.
 - Não. Não quero ter que me preocupar com tal. Eu aviso-te quando quiser voltar, e tu mandas alguem ter comigo pelas coordenadas GPS do meu telefone.
 - Com certeza, Mestre.
Jace acaba de se vestir, abre uma das gavetas pequenas da cómoda e tira duas correntes pretas. Coloca uma na cintura, mete a outra no braço direito, enrolada por baixo da manga larga da blusa. Apanha um elástico preto e prende o cabelo atrás da cabeça. Olha o espelho mais uma vez. As calças largas, a blusa justa no tronco com mangas largas, o cabelo apanhado acabado de lavar, uma mecha deste pendendo sobre o seu olho esquerdo, o resto apanhado junto a cabeça. Gosta do que vê. Sente-se belo. Apanha a carteira, a cigarreira de prata e o isqueiro, enfiando tudo nos bolsos laterais das calças. Pensa levar as botas, mas acaba por pegar nuns all-star pretos, e calça-los.
 - Emily, vou sair. Portas trancadas a minha saída.
 - Mestre... tenha cuidado por favor.
 - Vou só beber uns copos sozinho, Emily.
 - É esse o meu receio...
 - Até mais logo querida.
 - Mestre, o telemóvel. Precisa dele para me avisar.
 - Obrigado.
Ele pega no telemóvel e sai, descendo as escadas a pé, saltando os degraus 3 a 3. Na entrada do prédio, um homem nos seus cinquenta e muitos anos, de cabelo branco como a neve e um sorriso simpático estende-lhe a mão.
 - Para onde é hoje meu caro?
Jace aperta a mão estendida.
 - Bairro Alto. A Emily pagou-te certo, Manel?
 - Não faço ideia, Jace. Mas és tu. Se ela não fez ainda a transferência, irá fazê-la. Confio em ti rapaz, és família.
Jace sorri ao ouvir estas palavras. Entram no carro, lado a lado, e Manel arranca a alta velocidade pelas ruas da cidade.
 - Jace, ouvi uma noticia algo perturbadora.
 - Que noticia?
 - A cidade fala que o Exercito Fantasma foi engaiolado, e que o General finalmente foi parar atrás das grades.
 - É verdade.
 - Mas... tu estás aqui...
 - Claro que estou.
 - Raios miúdo, fiquei preocupado que te tivessem apanhado.
 - Não. Cansei daquela vida, só isso.
 - Bom saber que começas a ganhar juízo. Sabes que nós ainda te somos leais, certo?
 - Claro que sei, meu velho. Fui eu que os entreguei. Cambada de pulhas sem vergonha que morderam a mão que os alimentou.
 - Vais mesmo parar então?
 - Vou.
 - Sempre que precisares de nós...
 - Eu sei...
O resto do caminho foi percorrido em silencio. Alguns minutos depois, o táxi para no largo do Príncipe Real. Jace e Manel despedem-se com um abraço, sem palavras, um silencio em que nada precisa ser dito. Manel volta a entrar no carro e arranca. Jace tira a cigarreira do bolso e acende um charro, seguindo a pé para dentro das ruas do Bairro no seu característico passo ágil e rápido.
Há meses que Jace não saia à noite. Hoje pretende simplesmente beber uma quantidade industrial de vodka antes de pedir a Emily que mande alguém busca-lo. Provavelmente será novamente o velho Manel a vir ter com ele.
Entra num dos poucos bares de rock e metal que ainda sobrevive, cumprimenta o barman, pede um café e uma vodka.
 - Jace, seu desaparecido em combate. Como estás tu?
 - Ainda vivo Diablo, ainda vivo. Aceitas cartão certo?
 - Bebe e cala-te rapaz. Essa é por minha conta.
 - Obrigado. Diz-me uma coisa. A sala do fundo, está ocupada?
 - Acho que está vazia. Ainda é cedo.
 - Eu nem sei que horas são.
 - Onze. Entra e senta-te. 'Tá a vontade. Hey, diz uma coisa. Tens... cigarros?
 - Toma um.
Jace estende-lhe a cigarreira, Diablo tira um dos charros de Jace e devolve-lha com um piscar de olho.
 - Não sei qual é o teu segredo, mas os teus são os melhores que alguma vez provei.
Jace sorri, bebe o café de um trago, sem lhe colocar açúcar, pega na vodka e segue para a sala do fundo, sentando-se na mesa do canto, ficando com plena vista para a aconchegada sala. Tira o elástico, deixando o cabelo cair sobre o rosto e o pescoço, ficando a fumar e a bebericar da vodka ocasionalmente, quase imóvel, perdido em pensamentos. Passa quase vinte minutos em silencio, sozinho, ouvindo o mais recente álbum de Nine Inch Nails a tocar nas colunas. Diablo sempre teve um bom gosto musical, e desde que abriu este sitio conseguiu torna-lo num dos poucos sitios da capital onde ainda se pode ouvir um som alternativo à musica comercial que quase todos os sítios passam para atrair clientes.
Diablo entra na sala onde Jace está sentado, copo de cerveja na mão.
 - Queres algo mais, ou 'tás fixe por agora?
 - Estou bem, não te preocupes. Ouve, vou lá acima levantar dinheiro, já cá volto, ok?
 - Vai lá, mas se é por mim, sabes bem que não te precisas incomodar.
 - Estou a beber para esquecer, meu amigo. É melhor pagar antes de beber.
Diablo solta uma gargalhada, e volta para o balcão na outra sala. Jace levanta-se e sai. Demora alguns minutos apenas a subir a rua até a caixa multibanco, levantando todo o dinheiro que pedira a Emily para lhe colocar naquele cartão, voltando de seguida para o bar.
Volta a entrar, pede nova vodka, sem sequer olhar em volta. A sala da frente enchera entretanto, e Diablo encontra-se ocupado a atender dois grupos ao balcão.
 - Já te levo a bebida, Jace. - Diablo levanta a voz, fazendo-se ouvir acima da musica e do ruído das conversas que inunda a sala.
Jace volta para o seu lugar ao canto da sala do fundo e acende novo charro.
Numa das mesas da sala frontal do bar, alguém ouve aquele nome. Alguém que não ouvia aquele nome há anos. Ela levanta-se, chama a atenção de Diablo depois de este atender os clientes que lhe cercavam o balcão.
 - Disseste Jace, Diablo?
 - Sim, disse. Porquê?
 - Onde é que ele se meteu?
 - Hum... deve 'tar lá atrás. Se bem o conheço, sentado na mesa do canto, como de costume.
 - O que está ele a beber?
 - O mesmo de sempre. Vodka.
 - Optimo. Dá-me duas.
 - Uma é p'ra ele?
 - Sim.
 - Queres a tua com gelo?
 - Sim. Porquê? A dele é especial?
 - O meu rapaz bebe vodka dupla, sem gelo. Sempre o mesmo pedido de há anos para cá.
 - Dá-me duas duplas então. Acho que vou ter uma conversa com o teu rapaz.
Diablo lança um olhar intrigado na direcção dela, mas acaba por lhe entregar dois copos iguais, cheios até ao topo de vodka, recebendo uma nota em troca. Faz o troco e ela pega nos copos, seguindo em direcção a sala do fundo, deixando para trás o grupo de amigos com quem estava.
Ela entra na sala do fundo, fechando a porta de acesso atrás de si. Jace está de cabeça baixa, a fumar enquanto mexe no telemóvel. Ela pousa o copo a frente dele, e ele pega no mesmo sem levantar os olhos do ecrã, bebendo um trago.
 - Já te pago, Diablo, deixa só terminar isto.
 - Já está pago.
A voz feminina, melódica chama-lhe a atenção. Jace esperava que tivesse sido Diablo a ir-lhe levar a bebida.
"Desde quando é que ele contratou uma empregada?!"
Ele finalmente tira os olhos do ecrã do telemóvel. À sua frente está uma mulher jovem, vestindo jeans pretas e uma blusa justa mas aparentemente quente, também preta, contrastando com a sua pele alva. Os olhos grandes, verdes e expressivos chamam-lhe a atenção, bem como os lábios vermelhos, apetecíveis. Os cabelos são longos, negros, ondulados, soltos em volta do seu rosto e pescoço. A face dela é bela, um traço angelical.
 - Olá, Jace...
Aqueles grandes olhos verdes... aquele cabelo, aquela pele...
 - Posso sentar-me?
Jace faz um gesto, apontando para a cadeira a sua frente, uma aceitação do pedido dela, ainda sem dizer uma palavra.
 - Não te lembras, pois não?
Jace apaga o charro, já no final, esmagando-o com demasiada força no fundo do cinzeiro, puxa da cigarreira, tira mais um e acende-o, virando a cigarreira aberta para ela.
 - Fairy?
 - Afinal não te esqueceste.
 - Tenho uma boa memória.
 - Se tens assim tão boa memória, porque te esqueceste de telefonar? Porque te esqueceste de dar noticias ao longo destes anos?
 - Não esqueci. Tive motivos para não o fazer.
 - Ah sim? E quais foram esses motivos?
 - Irrelevante agora.
Ela tira um dos charros da cigarreira e acende-o.
 - Vejo que ainda te tratas bem. Começaste a beber?
Ele acena afirmativamente.
 - Quando?
 - Há cerca de um ano.
 - Porquê?
 - Ajuda a esquecer.
 - Que queres tu esquecer?
 - Tudo.
 - Falar contigo é quase como falar com uma parede.
Jace não responde.
 - Explica-me lá que motivos irrelevantes foram esses para nunca mais me teres dito nada.
 - Estás prestes a fazer anos, não é?
 - Como sabes?
 - Lembro-me da tua festa naquela noite há anos atrás. Foi mais ou menos por esta data.
 - Estou sim.
Ele fuma mais um bafo em silencio, sustendo o fumo quase um minuto nos pulmões, libertando-o numa série de bolas de fumo em seguida.
 - Descobri pouco depois que iria ser pai.
 - Wow... pai?
 - Sim.
 - Foi por isso que desapareceste da vida da noite?
 - Não desapareci da vida da noite, mas deixei de sair como o fazia antes.
 - Porquê?
 - Deveres... tentei ser responsável.
 - E no entanto estás aqui, a beber vodka, coisa que se bem me lembro não fazias. Porquê?
Ele solta um longo suspiro.
 - Raios Jace. Deves-me uma explicação.
 - Não te devo nada, Fairy. Ter saído da tua vida foi o melhor que eu poderia fazer por ti.
 - Isso não era uma decisão tua. Eu deveria ter tido uma palavra no assunto.
 - Fiz o necessário para que pudesse viver comigo mesmo. Nunca o conseguiria se não o tivesse feito.
 - Casaste?
 - Não, mas vivi com ela.
 - Amor?
 - Não sei, Fairy. Amo o meu diabrete. Portanto sim, amor. A ele.
 - E porque estas aqui, sozinho, agora?
 - Separei-me.
 - Há quanto tempo?
 - No inicio do ano.
Silêncio. Jace apaga a ponta já no fim, novamente fazendo um gesto demasiadamente violento para simplesmente apagar o charro, como se se vingasse de uma magoa escondida nesse gesto. Fairy apaga também o seu, tira um maço de tabaco do bolso, acende um cigarro e deixa o maço em cima da mesa.
 - Posso? - Jace aponta para o maço.
 - Tira.
Ele acende um cigarro.
 - Eu não fazia ideia até que aconteceu sabes?
 - Sei... eu percebi isso.
 - Porquê deixares que um completo estranho fosse o teu primeiro? Tê-lo-ias feito em estado puro? Ou simplesmente perdeste a cabeça devido à erva?
Fairy demora alguns momentos a responder, lembrando com nostalgia aquela noite, há anos atrás, a noite em que fez 18 anos, a noite em que foi aceite como parte integrante de um grupo com quem deixara de ter contacto, a noite em que pela primeira vez experimentou drogas, a noite em que perdera a virgindade com um estranho atraente que a abandonou pouco depois sem uma explicação, sem uma palavra, estranho que reencontrara agora, depois de anos em que esperara vê-lo a aparecer do nada numa das suas noites de saída. Voltara aquele clube imensas vezes. Sempre esperou olhar para a pista e vê-lo a dançar de olhos fechados, sentindo a musica como a ensinara a fazer. Fairy crescera, aprendera bastantes coisas entretanto, mas nunca esqueceu. Teve outros, rapazes e homens feitos, envolveu-se com outros que lhe lembravam por algum motivo aquele que agora se encontrava a sua frente. Em quatro anos, ela teve quem quis. E no fundo, nunca teve quem realmente queria. Aquela noite marcara-a até hoje. Demorou meses a deixar de pensar nele todos os dias. Durante mais de um ano não conseguira voltar a entrar ali. E quando finalmente voltou a cruzar as portas daquele clube, quando finalmente pensava ter esquecido, apercebeu-se que ainda esperava que ele fosse ali, ainda esperava poder falar com ele, esperava vê-lo a dançar alheio ao mundo com aquele ar sonhador e inatingível que ferira o seu coração e a sua alma, marcando-a até agora. Pensou tudo isto sem dizer uma palavra...
A voz de Jace arrancou-a das suas memorias.
 - Sempre me senti culpado, sabes? Não esperava ser o teu primeiro. Especialmente porque foste tu a sugerir sair dali. Que raios te passou pela cabeça? Desapareceste comigo deixando para tras as tuas amigas, passaste todo o fim de semana em minha casa. Falamos de tudo e mais alguma coisa. Fizeste amor comigo com uma intensidade e uma paixão que eu nunca antes havia sentido em alguém, abriste a tua alma, entregaste-me o teu corpo... Raios, eu não merecia tal. Nunca fui merecedor de tão bela prenda.
 - Não. Não foste. E o teu desaparecimento provou isso bastante bem. Mas... raios Jace! Tu és algo tão diferente, tão único. Marcaste-me sabes? Acho que me apaixonei por ti naquela noite. Demorei imenso a conseguir parar de pensar em ti, na tua voz, no teu carinho, no teu toque, no quão bem me fizeste sentir. Tive muita gente depois de ti. Mas ninguém me levou até onde tu me levaste naquele fim de semana.
 - Lamento...
A chapada que Fairy lhe deu foi algo que apanhou ambos de surpresa. O gesto saiu-lhe sem ela sequer pensar. Ele olhou-a finalmente nos olhos, surpreso apesar de não magoado.
 - Que raios foi isto?
 - Nunca lamentes. Eu não lamento.
Um ar de surpresa cruzou o rosto de Jace. Não esperava esta reacção, e ainda menos esperava as palavras dela em seguida. Jace pensara em Fairy muitas vezes. Demasiadas até. De certa forma, ela havia-o marcado, e ele não conseguia uma explicação para tal. Jace tivera inúmeras pessoas antes dela. Tivera algumas depois de se separar também, casos sem significado, encontrados quando a solidão e o vazio ameaçavam consumir a sua sanidade por completo. Alguns desses casos, Jace arrependera-se pouco depois, não pelo que havia sido feito, mas por saber exactamente qual era o seu efeito nas pessoas. A sua intensidade, a forma como abalava quem tocava foram algo que Jace aprendera a temer. Ele nunca quis causar magoa a nenhuma delas, no fundo. Mas havia certos desejos a que ele por vezes cedia. Antes de Fairy, Jace procurava quase todos os fins de semana uma parceira diferente. Deixou de o fazer apenas quando, pouco depois de ter conhecido Fairy, recebera a noticia de que iria ser pai. Acalmou, passou a ponderar as coisas baseando-se no seu miúdo em vez de seguir simplesmente os seus impulsos como fizera até aí. Mesmo depois de as coisas não terem dado certo, Jace manteve a sua fria e calculista forma de gerir a sua vida, aprendida durante os quase três anos em que estivera com a sua ex-companheira. Além disso, Jace sabia bem os riscos que corria ao ser quem havia sido até há bem pouco tempo. A personagem do General Fantasma, que criara como um mero desafio, tomou vida própria, e Jace era quem estava por trás dela, quem manipulava as operações a partir das sombras. De certa forma, Jace temera ser apanhado, ter que pagar pelos crimes por si organizados, mesmo sabendo bem as suas capacidades, ele sempre teve esse receio. Valera-lhe o anonimato proporcionado por Emily ao dar ordens aqueles que geria. Apenas um grupo muitíssimo restrito sabia que era Jace quem estava por trás de tudo, e nenhum destes fora incriminado quando Jace entregara as provas a Luis. Por isto, e pelo seu filho, Jace não havia voltado a falar com Fairy depois daquele fim de semana, não havia voltado aquele sitio. Pensara por diversas vezes voltar a falar com ela, depois de se separar, mas sempre se reteve. Temia estar a enganar-se, estar apenas a preencher o vazio deixado pela ausência da sua ex, a quem, apesar de tudo, se havia afeiçoado.
Fairy apercebe-se de que ele havia ficado perdido em pensamentos, resolve dar-lhe alguns minutos para tal. Termina a sua bebida e acende outro cigarro. O copo de Jace encontrava-se quase cheio, e Fairy foi apanhada de surpresa quando este o despejou de uma única vez, levantando-se de seguida e estendendo-lhe a mão. Demora alguns segundos a dar-lhe a sua, deixando-se guiar pelo súbito impulso de Jace. Sem uma única palavra, Jace aperta a mão dela na sua, e guia-a para fora da sala. Para ao balcão, ainda de mão dada a Fairy.
 - Diablo, devo-te algo?
 - Rapaz, eu pago o teu café e a primeira vodka. A Fairy pagou a segunda. Não me deves nada.
 - Até depois, Diablo.
 - 'Té mais ver, puto. Fairy, toma conta desse idiota que ele 'tá mais que farto de sofrer nos últimos tempos.
Jace sai, sem uma palavra a Fairy, mantendo a mão dela segura na sua. Ela está completamente perdida. Onde vão, que se passa naquela cabeça dura? Ela sabe que ele normalmente não falava muito, mas este súbito impulso deixa-a completamente sem saber o que fazer. Deve ir com ele? Deve afastar-se? Acaba por segui-lo em piloto automático para fora do bar.
Jace pega no telefone assim que sai da porta do bar, tocando com o polegar no ecrã tactil algumas vezes, falando de seguida para o telemóvel.
 - Emily, contacta o Manel, estou onde ele me deixou. Ele que se despache, tenho coisas importantes a fazer. Paga-lhe ambas as viagens se ainda não o fizeste.
 - Entendido, Mestre. Já foi feito o pagamento da primeira. Farei de imediato o desta.
 - Obrigado, Emily.
Jace sobe a rua em direcção ao Príncipe Real, ainda sem uma palavra a Fairy, mas ainda com a mão desta presa na sua.
 - Estavas a falar com quem?
 - Difícil explicar aqui. Mostro-te em seguida. Tens razão, devo-te uma explicação, mas esta não pode de forma alguma ser dada ali. Vens comigo.
 - Vou contigo para onde?!
 - Menos perguntas. Anda. O Manel deve estar a nossa espera já, se bem conheço o velho, ele não apanhou ninguém desde que me deixou aqui. Demasiado preocupado comigo, deve ter ficado algures aqui perto à espera de um contacto da Emily.
 - Quem é a Emily?
 - Já te explico. Tens que ver para acreditar.
 - Jace...
Jace para, olha-a nos olhos e coloca o indicador da mão livre sobre os lábios dela.
 - Shhh... já vais perceber.
Caminharam em silencio, Fairy sendo guiada pela mão, completamente perdida com o que se passa. Ele continua a afectá-la, mesmo depois de todo este tempo. A sua curiosidade, aliada ao efeito da presença dele, bem como à súbita reacção dele, fazem com que ela se limite a segui-lo.
"Onde vamos? Porque raios estou eu a seguir este idiota? Onde é que ele me leva? Porque não lhe digo simplesmente que não quero segui-lo? Porque é que não consigo reagir?"
Em poucos minutos chegam onde Jace havia há pouco sido deixado. Manel espera-o, dentro do carro, janela aberta, enquanto fuma um cigarro. Jace abre a porta traseira e faz sinal a Fairy para entrar, fechando-a assim que ela entra, e de seguida entra para o lugar ao lado de Manel.
 - Estás bem, miúdo? Parece que viste um fantasma. Quem é a pequena?
 - Deixa-me em casa, Manel. Não, não estou bem. O fantasma que vi está no banco de trás.
 - Ui! Estás bêbado?
 - Não. Só bebi duas vodkas. Preciso pensar.
 - Entendido, meu rapaz. Dentro de 10 minutos estás à porta de casa. Relaxa. Pensa. Aqui o velho percebe, não te preocupes.
Jace limita-se a sorrir por um segundo, encosta a cabeça ao banco e fecha os olhos.
Trinta anos de carreira como taxista fazem com que Manel conheça cada ruela da cidade, cada atalho e cada forma de escapar ao transito. Os prometidos 10 minutos depois, Manel pára o carro em frente da porta do prédio de Jace.
Jace sai do carro, abre a porta a Fairy, que continua com um ar confuso, aperta a mão a Manel.
 - Obrigado meu velho. És um amigo como poucos.
 - És família rapaz. Presumo que, como sempre, a tua menina me tenha ja feito o pagamento de ambas as viagens, e como sempre com uma gorgeta engraçada.
 - Ela disse que havia feito o primeiro, deve ter-te já feito a transferência do segundo.
 - Sempre que precisares, sabes que podes contar comigo. Mesmo que não tenhas dinheiro, sabes?
Jace abraça o velho taxista, seu amigo de há quase 9 anos.
 - Que faria eu sem ti meu velho?
 - Serias um gajo um pouco mais infeliz?
Manel solta uma gargalhada, e volta a entrar no carro, seguindo viagem em seguida.
Jace torna a dar a mão a Fairy, abre a porta da frente marcando o código no painel das campainhas, e dirige-se ao elevador. Sobem em silêncio, Jace demasiado pensativo, Fairy ainda sem reacção física apesar da confusão na sua mente.
Saem do elevador e Jace passa o indicador direito pelo leitor de impressões digitais ao lado da campainha de casa, a porta abrindo quando ele o faz. Jace faz sinal a Fairy para entrar, e ela segue a indicação. Ele entra atrás dela, fecha a porta e tranca-a.
 - Podes ficar à vontade.
 - Mudaste de casa...
 - Há cerca de ano e meio.
Fairy olha em volta, observando a divisão. A divisão é uma mistura de sala de estar com um dos cantos a servir de cozinha, com fogão e lava-loiças. Frigorífico perto do fogão. O resto das paredes estão cobertas de estantes com livros, à excepção de um dos cantos, onde se encontra uma secretária com três monitores e  uma poltrona em frente da secretaria. No centro da sala há um sofá e uma mesa de centro. Jace aponta para o sofá, e de seguida puxa a poltrona para o outro lado da mesa de café.
 - Emily, "Four Seasons" se faz favor. Preciso de musica ambiente. Reduz o volume para 15%.
 - Efectuado, Mestre.
Os acordes da musica começam a ouvir-se. Jace senta-se na poltrona e Fairy senta-se a sua frente, no sofá.
 - Coloca as tuas questões.
Se Fairy estava confusa antes, esta entrada em casa dele deixou-a ainda mais. Especialmente o pedido de musica atirado para o ar.
 - Que se passou aqui? Quem, ou o que é a Emily? Pensei que fosse a tua namorada ou algo semelhante.
Jace sorri, um sorriso condescendente.
 - Longe de tal. É a minha companheira, uma inteligência artificial. Pensa nela como a minha companhia virtual, aquela que me ajuda no dia a dia em praticamente tudo.
Fairy faz um ar surpreso. Não esperava aquilo. Na verdade, não esperava nada do que aconteceu esta noite. Saíra de casa com intenção de beber qualquer coisa. Nunca pensara encontrar Jace, muito menos aceitar um convite não verbalizado para casa dele. Não sabe por onde começar, que perguntas fazer, o que pensar.
Jace tira a cigarreira e acende mais um dos seus charros.
 - Quantos já fumaste hoje?
 - Não sei, uns 8 ou assim.
 - Estás sequer em condições de falar comigo?
 - Perfeitamente.
 - Explica-me porque não tornaste a falar comigo.
 - Recebi a noticia que te disse. Fiquei pasmo com o facto de ter sido o teu primeiro. Fui apanhado de surpresa com ambas as coisas, quase ao mesmo tempo. Decidi fazer o que era certo para o bem do meu diabrete, e decidi que preferia ser visto como um filho da puta a explicar o que se passava.
 - Cheguei a significar algo? Eu sei que um fim de semana não é muito, mas ainda assim... dado o que se passou, dado o que falamos, a forma como me trataste, com tanto carinho, como me contaste de onde vinhas e o que tinhas passado... sou uma idiota, mas pensei que eu pudesse ter significado algo.
 - Não foste idiota.
 - Não?
 - Não.
 - E agora, porque me arrastaste para aqui? Pensas que vou simplesmente para a cama contigo novamente é?
 - Nem tinha pensado nisso até que o disseste.
 - Então porquê?
 - Acho que é uma questão de segurança. Isto é a minha zona de conforto, o meu santuário, o local do meu exílio.
 - Exílio?
 - Sim. Praticamente cortei contacto com o mundo exterior. Tive trabalhos normais enquanto estive com a mãe do meu filho. Despedi-me pouco depois de me separar. Voltei a trabalhar como freelancer. Deixei a vida de crime para trás e escondi-me aqui. Estive, acho que ainda estou, próximo de um esgotamento nervoso. Tranquei-me com os meus livros, dediquei-me a programação, entreguei à policia aqueles que para mim trabalharam e me traíram, e deixei por completo a vida no submundo. Cansei-me de tal. Já tinha começado a trabalhar na Emily quando te conheci, e entretanto completei a programação dela. Tenho passado o tempo entre programação e livros e as minhas plantas. Fumo demais, voltei a beber por vezes, sempre até cair para o lado, quando preciso de preencher o vazio. Pensei em ti muitas vezes, demasiadas ao longo destes anos. Não sabia o que te dizer, como olhar para ti, e como tal acabei por não voltar a falar contigo. Presumi que tivesses seguido em frente, tomando-me como mais uma curte insignificante. Não esperava de todo rever-te ali hoje, e muito menos que tivesses vindo falar comigo, ou que me pedisses explicações. Não sei bem o que te dizer sequer.
 - Pensaste em mim?!
Jace limita-se a acenar afirmativamente.
 - Porquê?
 - Não faço ideia. Sentimentos recalcados provavelmente.
 - Explica-te.
 - Não sou muito bom a falar de sentimentos.
 - Merda Jace. Tu fizeste-me apaixonar por ti.
 - Desculpa.
 - Desta vez estás demasiado longe para levares a chapada que mereces.
 - Felizmente.
Um sorriso atravessa o rosto de ambos.
 - Fairy, como é que te apaixonaste por mim? Foram... alguns dias apenas...
 - É. E porque raios tu dizes que pensaste em mim?
 - Porque o fiz.
 - Eu conheço a tua reputação, Jace. As minhas amigas tentaram avisar-me para ter cuidado contigo, mas no momento não as ouvi, e depois foi tarde demais. Tu e a Dariel já se tinham envolvido antes. Mas a Dariel sempre foi mais desligada que eu, sempre foi pessoa de foder por foder, pelo prazer apenas. Eu caí nas tuas garras. Acabei por desistir de te reencontrar. Durante meses procurei-te, perguntei por ti a toda a gente. Ninguém sabia muito bem onde estavas, o que fazias, merda... ninguém sabia praticamente nada sobre ti, à excepção de que eras um cliente regular naquele sitio, e que te envolveste com meio mundo ali. Ouvi rumores de que eras um traficante de droga. Ouvi rumores de que eras gay. Ouvi rumores de que tinhas saído do país. Merda, no fundo só ouvi rumores, ninguém sabia confirmar nada. Só o Diablo resolveu dizer algo sobre ti. Disse-me que tu tinhas algumas questões importantes a resolver, que não era ele que teria que falar comigo sobre tal. Disse-me que tu havias deixado aquele mundo, que havias encontrado um trabalho normal, que estavas bem. Mas recusou-se a dizer-me mais que isso. Eventualmente cansei-me de insistir, especialmente porque ele próprio me disse que tu havias deixado a vida que levavas, e que mesmo que eu não quisesse acreditar, tinhas um bom motivo para tal. Pelos vistos, esse motivo era o teu filho.
 - A parte do traficante é mais ou menos verdade.
 - Mais ou menos?
 - Nunca vendi nada a ninguém, mas controlava quem o fazia.
 - E o resto?
 - Não sou gay. Não saí do país. Arranjei um trabalho normal. Vivi com a mãe do meu filho. Enquanto estive com ela, tornei-me um cachorrinho, praticamente. Vivia para ela e o pequeno, enterrava-me em drogas para esquecer que era infeliz. Vivia entre o trabalho e casa. Usava a Emily para controlar as minhas operações. Eu só lidava com a Emily, ela fazia os contactos.
 - Quanto tempo durou isso?
 - Quase três anos.
 - E depois?
 - Depois de me separar, voltei a assumir o controlo mais directamente. Mas no fundo sempre fui um fantasma que ninguém conhecia. Eu contei-te mais sobre mim naquele fim de semana que a qualquer outra pessoa que conheci.
 - Porque raios farias isso?
 - Não sei. Foi natural. Aconteceu. Senti-me bem contigo, senti-me a vontade. Tu ouviste-me sem me julgar. Nunca tinha experimentado isso, e... e aproveitei ao máximo. Desabafei contigo coisas que nunca havia contado a ninguém. Só a Emily hoje em dia sabe o que sou, o que faço.
 - Porque te isolaste depois de te separares?
 - Receio. Receio de arrastar pessoas atrás de mim, de criar ligações, de sofrer, de magoar, de ter mais sangue nas minhas mãos.
 - Sangue?
 - Literal e figurativamente. Ao longo da minha vida, eu magoei muita gente. Eu matei algumas pessoas, porque a escolha era acabar com elas ou finalmente pagar pelos meus crimes.
 - Quantas pessoas?
 - Algumas.
 - Quantas...?
 - Três.
 - Quem?
 - Alguém que matou o meu mentor. Um investigador da judiciaria que estava a chegar demasiado próximo de mim. Um informador da judiciaria que se infiltrou na minha operação.
 - Porquê?
 - Vingança. E auto-preservação. O primeiro, fi-lo por ter sido consumido pela raiva, pela dor, por sede de sangue depois do que perdi. Os outros dois, porque descobriram quem eu era. Por auto-preservação.
 - Arrependes-te?
 - Todas as noites...
 - Porque o fizeste então?
 - Já te disse. Auto-preservação. Fi-lo para proteger o miúdo. Porque, agora, mesmo afastado dele, continuo a querer o melhor para ele. E o melhor para o meu miúdo não é ter o pai numa prisão para o resto da vida.
 - Porque estás afastado dele?
 - Circunstâncias... não quero por agora falar nisso. Talvez um dia destes, desculpa.
 - Um dia destes?
 - Se não quiseres falar comigo, se não quiseres ver-me, podes sair por aquela porta e nunca mais saberes de mim. Não te vou impedir de tal.
Silencio entre ambos, Jace esperando a próxima frase dela, Fairy sem saber o que dizer.
Fairy tira o ultimo charro ainda existente na cigarreira e acende-o. Jace levanta-se e sai da divisão.
 - Onde vais?
Ele responde de fora da sala:
 - Vim só buscar uma coisa ao quarto.
Ele volta poucos segundos depois, trazendo consigo um saco de erva, e faz mais um para si próprio.
 - Jace... cheguei a tocar-te?
 - Tocaste, bastante. Estiveste quase sempre a tocar-me durante o tempo que passamos juntos. Raio de pergunta.
 - Não foi isso que quis dizer...
 - Que quiseste dizer então?
Fairy faz uma pequena pausa, fumando durante momentos antes de reformular a questão.
 - Quero saber se fui mais que uma foda.
 - Não sei o que te responder.
 - Raios, Jace, não é difícil. Cheguei a marcar-te de alguma forma? Cheguei a ser mais que uma das muitas que tu levaste para a cama? Ou fui apenas mais uma das tuas conquistas sem propósito?
Ele pousa o charro no cinzeiro, passa ambas as mãos pela cara, pelo cabelo, percorrendo-o até à nuca.
 - Sim.
 - Sim o quê?
 - Sim, foste mais que uma foda.
 - Que mais fui?
 - Foste alguém que me marcou, alguém que deixou a sua marca em mim até agora. Se não o tivesses sido, teria ignorado por completo a tua existência hoje, quando me pousaste o copo a frente. Já o fiz inumeras vezes antes. Não me custa nada simplesmente ignorar alguém que nada me diz. Faço-o todos os dias, praticamente. Eu quase nem reparo nas pessoas hoje em dia. É como se fossem vultos indistintos na periferia da minha percepção. Foste importante. Já te disse que pensei em ti mais vezes do que me permito a mim mesmo admitir ao longo destes anos. Não me recordo sequer da cara ou dos nomes da maioria que acabou na minha cama durante aqueles conturbados anos desde que vim para aqui até que te conheci. E os poucos que me recordo são vagas lembranças, meras imagens na minha memoria. Tu foste importante. A mãe do meu filho foi importante.
 - E agora?
 - E agora o quê?
 - Ela é importante?
 - Segui em frente há bastante tempo. Não sinto nada por ela.
 - Sentiste?
 - Sim.
 - E eu?
 - Tu o quê?
 - Foda-se! Fui importante?
 - Já te disse que sim.
 - Ainda sou?
 - Estás em minha casa, comigo a responder a todas as tuas questões...
 - Que merda quer isso dizer?
 - Se não fosses, não estarias. Já o tinha dito antes.
 - Odeio-te.
 - Tu e meio mundo, começando por mim.
 - Que aconteceu ao rapaz cheio de autoconfiança e amor próprio?
 - Morreu. Confiança? Sim, tenho confiança nos meus conhecimentos, na minha inteligência, nas minhas habilidades. A Emily é uma prova de tal. Amor próprio? Esse há anos que desapareceu. Odeio-me tanto hoje quanto alguma vez me amei.
 - Porquê?
 - Culpa. Por ti. Pelo miúdo. Por toda a dor e magoa que causei. Porque fui capaz de matar, e pior, sobreviver a tal. Porque tenho medo que possa voltar a fazê-lo se for forçado a tal. Porque graças a mim, há inúmeras pessoas agarradas a varias substancias. Há inúmeras pessoas a quem eu permiti destruir a sua própria vida graças à minha ganância. E isso consome-me.
Jace está sentado na poltrona, cabeça enterrada nas mãos, olhos fechados. Fairy nota que há uma lágrima a escorrer pelo rosto dele abaixo. Ela levanta-se, contorna a mesa e, colocando um joelho no chão, abraça-o.
 - Idiota...
Ela levanta-lhe a cabeça, limpa a lágrima do canto do olho dele e beija-o, primeiro ao de leve, os lábios de ambos unidos de novo ao fim de tanto tempo, depois mais intensamente, ele respondendo aos lábios dela, num beijo fogoso, repleto de desejo, como dois amantes separados que finalmente matam saudades um do outro. Como se nunca nada se tivesse passado de errado, aquele beijo afasta do pensamento de ambos toda a mágoa, toda a dor sentida, consumindo-os por completo pelo desejo um do outro. Ambos pensaram neste beijo mais vezes que conseguem recordar ao longo dos anos que passaram. Ele abraça-a, puxando-a para o seu colo, continuando a beijar os lábios dela, sentindo o calor dos mesmos, a doce sensação que nunca esqueceu desde aquela noite, desde aqueles dias perdidos no tempo.
Ela deixa as suas mãos percorrerem o pescoço, as costas, sente junto ao seu peito o calor dele, deixa-se levar pelas sensações, esquecendo tudo, olhos fechados, explorando as suas costas por cima da finissima blusa, sentindo os músculos definidos nas suas mãos, os lábios dele no seu pescoço, a sua respiração quente na pele dela, um arrepio percorrendo as costas dela ao mesmo tempo que as mãos dele as percorrem, agarrando-a junto a ele um pouco forte demais, quase magoando. A súbita dor dos dentes dele a morderem o seu pescoço lança pelo corpo dela novo arrepio, o toque das mãos debaixo da blusa dela, na sua pele suave. Fairy atira a cabeça para trás, expondo o pescoço ao beijo quase vampírico dele, perdida por completo no calor do corpo colado ao seu, nas mãos que percorrem as suas costas, nos lábios que tocam o seu pescoço. Deixa as suas próprias mãos percorrerem as costas dele por baixo da blusa, levantando-a pouco a pouco, acabando por lha tirar, interrompendo por momentos o toque dos lábios no seu pescoço, subitamente privada do calor da respiração e do toque dele na sua pele, ansiando por voltar a senti-los, ela pega-lhe na cabeça, apertando o cabelo dele na sua mão, obrigando-o a voltar a colar os lábios no seu pescoço.
Sente a sua própria blusa a ser levantada, elevando os braços para permitir que esta seja despida. Ele interrompe o movimento, deixando os braços dela presos, os seus lábios expostos, mas os seus olhos ainda cobertos pelo tecido suave, privada da visão, privada da liberdade, completamente a mercê do seu toque, exposta e sem a possibilidade de o abraçar, sem a possibilidade de o olhar, a pele do tronco dele junto a sua, os seus lábios, o seu pescoço a serem alternadamente beijados, primeiro ao de leve e depois com uma intensidade que revela o desejo dele por ela. A sua respiração acelera, o seu coração dispara, o corpo dela anseia por ele, quer tê-lo, agora, ali, já.
Ela sente-se a ser levantada, os braços ainda presos atrás da sua nuca, mantidos naquela posição pela mão dele e pela sua própria blusa. Ele senta-a na poltrona, sem a libertar, e começa a percorrer a pele, o peito, descendo lentamente, alternando beijos com a sua respiração controlada, deixando-a sentir o ar quente de cada vez que expira apenas para tornar a beija-la, cada vez mais intensamente, o seu peito, a sua barriga lisa, sente a língua dele a percorrer cada milímetro da sua pele exposta. A temperatura da sala parece ter elevado, o frio de dezembro desapareceu por completo, e ela está à mercê do toque e da vontade dele.
Quando ele finalmente liberta os seus braços daquela prisão improvisada, atirando a blusa dela para o chão, o desejo contido até aqui pela privação de movimentos e sentidos consome Fairy, toma o controlo do corpo e das acções dela, e ela toma o controlo da situação. Levanta-se, beija-o, prende o lábio inferior dele entre os dentes forçando-o a ficar colado a ela. Sente as mãos dele a abrir o soutien dela, libertando os seus seios, permitindo-lhe sentir nestes a pele dele. Desaperta as calças dele, um gesto que lhe sai mais facil que alguma vez saiu, e repete com as dela.
 - És meu.
Habituado a ser ele a ter controle, Jace sente-se delirante ao ver os papeis inverterem-se por uma vez na sua vida. Deixa o seu corpo ser manipulado por ela, sente-se a ser virado, empurrado de volta para a poltrona, olhos fechados, apreciando simplesmente a miríade de sensações causadas pelo toque, pelo cheiro, pelo sabor dos lábios dela nos seus, a força do empurrão a que ele poderia facilmente ter resistido, mas a sua vontade não é resistir. Ela despe-o por completo, fazendo o mesmo a si própria. Ele força a poltrona a reclinar-se e sente o corpo dela em cima do seu, recusando-se a abrir os olhos com medo de descobrir que tudo na passa de um mero sonhos. Sente-a a envolve-lo, tornando-os num só com uma facilidade e naturalidade que ele não esperava, os seus corpos movimentando-se em sintonia enquanto sentem o prazer de estarem novamente a fazer amor um com o outro, o tempo irrelevante, a sensação de electrizante prazer e cumplicidade que os atravessa a ambos, enquanto os movimentos dos seus corpos os levam mais e mais próximo do êxtase, até que finalmente explodem num orgasmo simultâneo, Fairy caindo em seguida no peito dele, abraçando-o sem o deixar sair de dentro de si, ficando por tempo indeterminado perdidos naquele abraço, um sorriso no rosto, duas metades do mesmo ser que finalmente se volta a encontrar.
Só o final da musica os desperta, os faz olharem-se nos olhos. Ele levanta-se, arrastando no movimento o corpo dela, pega-lhe ao colo e carrega-a para a cama.
Amanhã poderão falar mais. Agora só querem simplesmente adormecer nos braços um do outro, sem pensarem nas consequências do que se passou. Isso ficará para depois do abençoado descanso que ambos desejam, para depois de uma longa noite de repouso nos braços um do outro como há anos ambos desejam poder ter.