Fartara-se de ser humilhado e ostracizado pelo que tinha de melhor. Depois de 5 anos a ser colocado de lado, provocado e arrastado para brigas, fartara-se. O novo ano escolar que se avizinhava implicaria a mudança de escola, a sua entrada no secundário. Diogo olhava para si e não sabia o que via. Via algo ao espelho que não podia ser ele, porque ele não se sentia assim.
- Pai, quero pedir-te um favor.
David estava sentado na biblioteca, em frente da lareira apagada, ventoinha ligada formando uma fresca brisa na sua direcção.
- Que favor?
- É algo estúpido.
- Conta.
David sorri. Por algo estúpido, Diogo provavelmente estaria com vontade de fazer algo normal para a sua idade.
- Preciso de comprar roupa.
- Sim, realmente precisas de roupas novas. Não sei se é do treino ou da tua própria natureza, mas este verão deste um salto em altura bastante acentuado.
- Mas...
- Sim?
- Quero ser eu a escolher.
David levanta o sobreolho a esta frase. Era, portanto, este o pedido estranho. Desde pequeno que Diogo usava roupas escolhidas por David, não por imposição deste, mas porque nunca mostrara qualquer interesse no que vestia até aí. David desistira de o questionar sobre opiniões, dado que a resposta era sempre a mesma, um mero encolher de ombros de indiferença.
- Cá por mim... tens toda a liberdade de escolhas. Quando pretendes fazer isso?
- Depende. Que tens para fazer à tarde?
- Não tinha intenções de sair daqui, está um calor infernal lá fora. Preciso de terminar as esquemáticas de dois circuitos.
- Bem, se formos agora, podemos estar a fazer isso juntos lá para as 19:00, eu faço-te uma delas.
- Vais fazê-lo como? Tudo o que tens é a peça física, construi-as como prototipo, ainda não me apeteceu fazer os esquemas.
- Aposto que consigo perceber o que fizeste e o que pretendes. Fazer engenharia reversiva ao teu trabalho é fácil.
David sabia bem o que Diogo podia fazer. Afinal, ajudava-o e incentivava-o todos os dias. Mesmo fora em viagem, David normalmente telefonava com um qualquer desafio novo diariamente, pequena tradição entre ambos de já há muito tempo, uma forma de David estimular o jovem Diogo a pesquisar informação direccionada a uma área.
- Vai vestir algo decente em vez de andares de calções e descalço e vamos. Bem que bebia qualquer coisa fresca.
- O problema é esse. Não tenho nada que me sirva. Tens algo audível no carro?
- Define audível.
- Apetece-me Mudvayne.
- Não tenho no carro.
- Eu trago. Dá-me 10 minutos.
David levanta-se e vai tirar o carro da garagem. Acaba de colocar o carro na rua quando Diogo lhe chega ao pé com um CD, já com outra roupa. Uns jeans azuis claros, tenis e camisa brancos.
- Mudvayne, The Beggining of All Things to End.
- É berros?
- É nu-metal, segundo percebi é o que chamam a esta corrente.
- Deve ser berros. Ao menos o vocalista dos Dream Theater não berra.
- Não me mostraste metal? Gostei. Aguenta os estilos que eu ouço. Não é tudo rock e progressivo, pai.
- Mete lá os berros, pronto.
Grande parte do conhecimento musical de Diogo foi obtido através de David. O amor de David pela música era antigo e com alguma mágoa recordados os seus inícios. David fora colocado em miúdo em aulas de piano, de forma a ajudá-lo a concentrar-se, mesmo motivo porque havia ele proprio sugerido a Diogo escolher um hobbie. No fundo, o treino marcial de Diogo e as aulas de piano de David tinham exactamente o mesmo propósito. Isabel era uma grande mulher e uma grande mestra na arte de ensinar e guiar pequenos prodígios. David eventualmente largou o piano em prol dos estudos, mas sentiu até ao momento a saudade das melodias. E desde aí que tem coleccionado a música que o faz deixar-se cair nos braços daquele amor à arte, por si abandonado em prol da escolha de uma carreira. Agora, tem o tempo para praticar, mas 20 anos parado entorpeceram os seus dedos, e não sente já a vontade de pisar um palco. Perdido o desejo de deslumbrar, de que lhe valia tocar se não havia já a paixão que outrora o consumia?
Mas em Diogo esta vivia. E David alimentava-a. Mostrara a Diogo uma variedade imensa de estilos e peças, desde os clássicos até à música contemporânea. Mas sempre fora o metal e o rock a eleição de Diogo. Logo desde miúdo, de entre tudo o que dispunha, o que normalmente pegava eram trabalhos com ênfase nos graves, o metal em particular sendo o estilo mais escolhido, aliado ao ocasional jazz e ao sempre presente Beethoven. Tentara uma vez, há poucas semanas atrás, ter essa conversa com Diogo, interrogar o mesmo sobre o porquê desta tendência. Diogo respondera com uma única frase.
- O barulho ajuda a silenciar a minha cabeça.
David tentou explorar a frase, mas não obteve mais resposta da parte de Diogo.
Fizeram a viagem em silencio, ouvindo o álbum que Diogo trouxera, este trauteando a musica de olhos fechados, encostado no banco. Ao ouvir as letras, David vai tentando deduzir o que se passa na cabeça de Diogo, mas não insiste no assunto. David sempre fez questão de que Diogo soubesse que podia falar com ele sobre tudo, mas cada vez menos Diogo era dado a falar.
Só ao estacionarem no destino, um centro comercial ainda afastado da quinta, é que Diogo finalmente profere algumas palavras.
- Até onde posso gastar?
- Eu aviso-te quando começares a abusar.
Demasiado curioso com o que Diogo está a preparar, David resolve dar-lhe liberdade. Segue Diogo por três lojas sem que este revele qualquer interesse no que vê, antes de desistir de o pressionar com a sua presença.
- Estou na zona da restauração a beber qualquer coisa que está um calor abrasador. Perdes-te?
- Deves estar a brincar.
- Pega o cartão, mas não abuses.
- Já vou ter contigo. Obrigado pela confiança.
- Desaparece antes que me arrependa.
O sorriso cúmplice, réplica quase exacta um do outro, atravessa o rosto de ambos.
David encontra-se preocupado. De certa forma, David revê me Diogo certas partes de si, e isso deixa-o apreensivo. Entrar para o secundário aos 14 anos não pode ser uma experiência fácil. Passar os últimos anos, sendo no minimo dois anos mais novo que os seus colegas de turma não foi certamente fácil para Diogo, e David tem observado pequenos indícios do que isto fez no desenvolvimento e na personalidade de Diogo. O pedido desse dia foi algo que apanhou David de surpresa, e ele está no mínimo curioso com o resultado da liberdade que acaba de oferecer ao filho. No fundo, ele queria seguir Diogo, ajudar nas escolhas, mas apercebeu-se rapidamente que havia já uma ideia formada na cabeça deste. Resolveu dar-lhe o espaço que este aparentava precisar para a desenvolver.
Encontrou um café, pediu um imperial e ficou sentado a espera, dividido entre a preocupação e a curiosidade. Tinha acabado de esvaziar o terceiro copo de imperial quando Diogo o encontra, vindo carregado de sacos.
- Dá-me uma mão a levar isto para o carro.
- Que compraste?
- Guarda-roupa completo.
- Decidiste renovar tudo!?
- Quase nada me serve.
- E o que serve não corresponde ao que procuras...
- Era mais isso...
- Voltamos para casa?
- Sim, já fiz o que precisava.
Diogo pousa os sacos e abraça David, deixando o gesto preencher a falha nas suas palavras, tentando partilhar o quanto isto havia sido importante para si naquele breve gesto.
- Obrigado.
David sorri, devolvendo o abraço.
- Temos que ouvir berros no caminho de volta?
- Nah. Encontrei um álbum de The Doors.
- Boa escolha.
Mais uma viagem feita em silêncio. Diogo apanhara algures o hábito de se perder no seu mundo durante as viagens longas, e David respeitava isso. Sempre tentou dar a liberdade necessária a Diogo, deixando que este tomasse as rédeas do seu próprio destino, mas sempre tentando puxar pelo seu desenvolvimento pessoal e intelectual. "Deixa-o cair. Está lá para ajudar a levantá-lo."
Só ao chegarem a casa David pediu para ver o resultado da sessão de compras. De certa forma não ficou chocado, mas foi apanhado de surpresa pela escolha. Diogo comprara roupas simples, não havia escolhido marcas caras ou roupas da moda. Apenas havia uma cor presente: preto. Os estilos variavam, podendo ser combinados entre si, mas todas as peças eram pretas. Perguntou a Diogo o porquê, e a resposta, inesperada e enigmática deixou-o atónito, ficando gravada para sempre na sua cabeça, a voz do seu miúdo, nos seus 14 anos, repetindo dentro da sua cabeça para sempre aquelas palavras, como se as tivesse ouvido há segundos atrás:
- Preto por luto. Luto pela inocência, pela bondade e pela compaixão, mortas nos nossos dias, e luto pela esperança morta de que um dia as coisas se tornem mais fáceis. Não há espaço para a fraqueza neste mundo, pai.
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