Apesar do estranho sentimento dentro de si, o pequeno Diogo prosseguia o seu simples dia-a-dia, a rotina dos dias de escola, agora um pouco menos entediante, a companhia de Isabel, e depois de sair, sempre horas depois da hora a que os seus colegas se retiravam, depois de feitos os trabalhos de casa e de ouvir mais algumas historias de Isabel, voltava a casa, aos avós e ao pai. A rotina permitia ao pequeno não se aperceber muito das sensações que dentro de si se desenvolviam e criavam raízes. Ouvia musica. Desde que chegava a casa até à hora estipulada para dormir, a musica era uma constante à volta de Diogo. Apaixonou-se pela música graças à constante entrada de mais álbuns na colecção do pai, coisa que David fazia precisamente por ver o entusiasmo com que Diogo descobria cada novo album que aparecia.
Após ter sido forçado a passar o Natal longe do filho, David recusou-se a abdicar do aniversário deste. Não organizou uma festa propriamente dita, não no sentido normal dos colegas de escola de Diogo, mas organizou um jantar especial, com um bolo de aniversario e a sobremesa preferida de Diogo, a mousse de chocolate caseira com que este tanto se deliciava. Apanhou Diogo e Isabel na escola, convidando-a no momento para o jantar de aniversario do pequeno. Quando questionado sobre tal, David limitou-se a responder a Isabel:
- Convidei os amigos do Diogo para o seu jantar de anos.
A simples frase resumia tudo. Fora da família, Isabel era a única pessoa com quem Diogo falava abertamente.
Depois do jantar, das sobremesas e bolo, dos parabéns típicos, desafinadamente cantados por David, os seus pais e Isabel, Diogo pode finalmente abrir as suas prendas. Livros, sem duvida escolhidos por David, oferecidos pelos seus avós. Isabel, apanhada de surpresa para o jantar, mas não para o aniversario, ofereceu a Diogo uma caneta de tinta permanente, escolhida de propósito com uma pequena mensagem em inglês que apenas anos mais tarde Diogo viria a perceber. David comprara-lhe algo que fez por completo as delicias de Diogo. Um walkman, leitor de cassetes portátil, bem como uma dezena de cassetes virgens para o pequeno poder colocar nelas as suas musicas preferidas. Deparado com a prenda, depois de um estrangulador abraço ao pai e beijos de agradecimento aos restantes, Diogo desapareceu, radiante, para a frente da aparelhagem da biblioteca, deixando David e Isabel sozinhos para poderem conversar.
- O teu miúdo preocupa-me, David.
- Porque motivo?
- Há qualquer coisa nele que me deixa inquieta. Aborrece-se demasiado depressa, tem demasiada energia contida para a vida sedentária que faz. Não posso simplesmente mantê-lo a fazer exercícios extra a toda a hora. Já vai meses a frente do restante da turma, mesmo sendo o mais novo de todos.
- Isso é mau?
- Tentámos avançá-lo para o estimular, mas... ele continua a ter dificuldades de concentração. Não é de mais exercícios ou mais matéria escolar que ele precisa, disso ele tem lá em cima que chegue.
- O que acha que podemos fazer?
- Já devia ter falado contigo sobre isto. Lembras-te do piano, certo?
- Claro.
- Bem, porque não tentar algo semelhante com ele? Ele já passa demasiado tempo trancado na tua biblioteca.
- Mas lá está. Música? Ele já passa demasiado tempo parado.
- Contigo a música funcionou porque tu precisavas aprender a parar. Ele... ele precisa de libertar aquela energia que está a conter. Diogo precisa de algo mais físico. Ele procura por si mesmo a parte intelectual.
- Ele odeia desportos.
- Não concordo. Pelo que tenho notado, o que o mantém afastado dos desportos é a componente de equipa. Ele não sente empatia pelos colegas, e por isso evita esse tipo de desportos.
- E algo em que ele pudesse ficar dependente de si mesmo?
- Em que estás a pensar?
- Artes marciais. Conheço um dojo, propriedade de um dos meus clientes, que dá lições de diversas artes marciais a turmas jovens.
- Acho que é uma optima ideia. Alia-se a componente física à auto-disciplina. Achas que consegues que ele assista a uma demonstração?
- Talvez se consiga organizar, é uma questão de falar com a pessoa.
- Faz isso. Vê se ele se interessa por alguma das modalidades. Se for ele a escolher, há mais probabilidades de ele se dedicar desde inicio.
- Vou falar e marcar isso para o fim de semana.
- Mas, David, não o forces. Deixa ser ele a escolher o que quer, se quiser algo, claro. Podemos sempre mostrar-lhe mais coisas se necessário.
David conseguiu marcar a visita de apresentação a Diogo para esse fim de semana. No entanto, apenas seria possível assistir a uma aula das da faixa etária de Diogo. Havia turmas novas a serem formadas para os fins de semana para diversas modalidades, na faixa etária dele. David questionou a que seria possível assistir durante sábado a tarde, mesmo que fosse praticado por alunos mais velhos que Diogo. Recebeu uma lista de varias modalidades que estariam a ser praticadas nesse horário. Marcou a visita para esse sábado. Explicou que iria levar o seu filho a ver diversas modalidades, e deixar que este escolhesse alguma que lhe interessasse.
David guardou segredo sobre a visita até ao momento da mesma, tendo levado Diogo consigo sob pretexto de lhe mostrar algo novo, ao que o pequeno radiantemente se prontificou a acompanha-lo.
Foram recebidos por uma jovem loira, que se prontificou a mostrar-lhe as aulas em curso, para que Diogo pudesse talvez escolher uma. Mas Diogo estava distraído a observar um homem alto, magro, vestido de preto num estranho traje que Diogo nunca havia visto antes. Até a sua cara estava tapada por uma mascara de pano. O homem viu o olhar intenso de Diogo e resolveu aproximar-se do miúdo, que estava como que hipnotizado a olhar os seus movimentos.
- Olá pequenote. Gostas do fato?
Diogo acena afirmativamente.
- Que vieste fazer, pequenote?
- O meu pai disse que me ia mostrar uma coisa gira.
- E queres ver coisas giras é?
- Quero.
- Anda então. Vou-te mostrar umas coisas sobre este fato.
Delirante com a ideia de aprender algo novo, e estranhamente curioso com o homem do fato esquisito, Diogo fez um rápido sinal a David e seguiu o homem a correr, corredor abaixo, desaparecendo da vista do pai em segundos, ao virar a curva. David sorri para a mulher loira:
- Parece que ele encontrou algo interessante. Posso?
- Esteja a vontade. Se precisarem de ajuda, estarei na recepção.
- Obrigado pela sua disponibilidade.
David seguiu o corredor por onde vira Diogo desaparecer, virando a curva a esquerda, onde a porta do fundo se encontrava aberta. Seguiu até lá, deparando-se com Diogo sentado no chão, a olhar para um par de indivíduos a praticar algo que David desconhecia. Um dos praticantes era o homem alto com quem Diogo falara, o outro David ainda não tinha visto. Mas o que realmente espantou David foi o olhar atento, maravilhado com que Diogo seguia os movimentos obviamente bem treinados dos praticantes.
Um deles, de cara tapada ainda, empunhava um longo bastão de madeira, usando-o para criar distancia e bloquear os golpes do outro. De cara destapada, o homem que chamara Diogo empunhava uma longa corrente com pesos nas pontas. Pela estimativa de David a corrente deveria ter uns três metros.
Diogo observava o homem de cara descoberta, vibrando com cada movimento deste, enquanto este fazia dançar a corrente em arcos largos ao lado do seu corpo, fazendo um ruído seco ao ser deflectida pelo bastão do outro combatente, numa investida furiosa e bela, quase como um bailarino cujo par é aquela estranha corrente, o homem faz o seu oponente recuar e defender-se, passando de um ataque a outro, a corrente parecendo responder ao seu pensamento em vez de aos subtis movimentos do seu ágil manuseador. Encurralou o seu adversário a um dos cantos do tapete, forçando este a recorrer a rodar continuamente o bastão a sua frente numa tentativa de afastar o ataque da corrente que parecia dançar. Um sorriso de vitória atravessa o rosto do homem da corrente, ainda antes de qualquer movimento da parte deste. Dois golpes de pulso e ambas as pontas da corrente saem disparadas, contrariando o sentido de rotação do bastão, enroscando-se neste, um mero momento antes de novo golpe de pulsos arrancar o mesmo das mãos do seu adversário, arrastado pelas correntes, depositado inofensivamente aos pés do empunhador da corrente.
Os combatentes fazem uma vénia, a figura mascarada tirando a máscara para revelar uma flamejante cabeleira ruiva, um rosto de mulher marcado por algumas sardas sob a pele branca, varias gotas de suor caindo pelo seu rosto.
O homem da corrente dirige-se para o pé de Diogo, senta-se ao lado dele e inicia conversa, David ficando a espera de ver a resposta do pequeno aquela demonstração, sem interferir.
- E então? Gostaste?
- Adoro. Como se chama o que estavam a fazer?
- Ninjutsu.
- E a corrente? Tem nome?
- Sim, tem. Chama-se kusari. Podes por outras peças as pontas, além dos pesos que eu tenho. Sabes, o meu mestre usava duas laminas ali.
- Foi tão giro, parecia que estavas a dançar. Ensinas-me? Eu quero dançar com a corrente tal como tu.
- Sabes, vais ter que praticar muito, e que aprender com muito cuidado tudo o que te ensinar. Queres fazer isso?
- Quero. Ensina-me a dançar com a corrente.
- Como te chamas?
- Sou o Diogo.
- Bem, Diogo, o teu papá está a olhar para nós, e se lhe fôssemos perguntar se podes aprender ninjutsu. Consegues perguntar-lhe?
- Podes repetir o nome, por favor?
- Ninjutsu.
- E a corrente?
- Kusari.
- Como te chamas?
- Sou o Félix. Mestre Félix. Sou eu que ensina ninjutsu aqui.
- Pai, quero ser aluno do Mestre Félix. Quero aprender a fazer ninjutsu com ele, quero que ele me ensine a dançar com a kusari tal como ele faz. Pode ser pai?
Não havia muito a dizer. Fora mais fácil do que David previra. Diogo havia ficado maravilhado com a estranha arte, o brilho nos seus olhos logo ao começar a associar os novos nomes dizia tudo. Acenou afirmativamente a Diogo. Teve uma breve conversa com Félix. Estava preocupado quanto a deixar um miúdo praticar com armas reais. Félix tranquilizou-o, explicando-lhe os passos do treino a longo termo. Só quando Diogo estivesse pronto é que poderia usar armas. O processo de aprendizagem começava primeiro por modelar-lhe os movimentos, limar falhas nos mesmos, e ensina-lo principalmente a prever golpes, e só depois de tudo isto estar solidamente consolidado passariam a treino com armas. E mesmo durante o mesmo, não eram usadas laminas reais, e as armas não cortantes eram revestidas de uma camada de esponja para evitar lesões. Félix explicou a David que apesar de serem perfeitamente compreensíveis os seus receios, Félix há mais de 10 anos que ensinava esta arte, e nunca havia tido ferimentos graves com os seus alunos. E não seria a primeira ou a ultima vez que Félix ensinaria alguém da idade de Diogo.
David tentou não se preocupar demasiado, analisando as vantagens da situação em vez de ficar simplesmente a imaginar cenários menos agradáveis, mas ainda assim, só depois de os treinos começarem, e depois de mais de 15 aulas de duas horas assistidas é que David finalmente baixou a guarda, deixando o seu precioso miúdo nas mãos do seu novo mestre, para aprender a dançar com as correntes.
Foi a forma arranjada por David e por Isabel de aproveitar a energia de Diogo, e de que lhe fosse ensinada uma auto-disciplina que este não encontraria de nenhuma outra forma. Falar japonês foi simplesmente algo que aconteceram sem que eles o tivessem de qualquer forma previsto. O importante era que Diogo estava, entre as artes marciais, a escola, e os seus próprios tempos livres, aparentemente completamente preenchido. Andava feliz, se bem que um pouco cansado. Continuava a estudar afincadamente, fazendo os deveres com Isabel depois das aulas, como até aí, correndo de seguida para casa para praticar os movimentos aprendidos e treinados no dojo, enquanto ouvia musica no seu walkman. A felicidade de Diogo duraria durante meses, perdurando até ao ano escolar seguinte, apesar das saudades sentidas de Isabel durante as suas primeiras férias de verão, a sua professora e amiga ausente em mais uma das suas viagens pelo mundo. Diogo esperava ansiosamente pelo regresso dela, bem como por todas as novas historias que Isabel traria para contar. Enquanto isso, praticava e estudava, fazendo orgulhosos o seu pai, e os seus dois mestres, Félix e Isabel, professores e amigos que Diogo guardaria no coração para o resto da sua vida.
Após ter sido forçado a passar o Natal longe do filho, David recusou-se a abdicar do aniversário deste. Não organizou uma festa propriamente dita, não no sentido normal dos colegas de escola de Diogo, mas organizou um jantar especial, com um bolo de aniversario e a sobremesa preferida de Diogo, a mousse de chocolate caseira com que este tanto se deliciava. Apanhou Diogo e Isabel na escola, convidando-a no momento para o jantar de aniversario do pequeno. Quando questionado sobre tal, David limitou-se a responder a Isabel:
- Convidei os amigos do Diogo para o seu jantar de anos.
A simples frase resumia tudo. Fora da família, Isabel era a única pessoa com quem Diogo falava abertamente.
Depois do jantar, das sobremesas e bolo, dos parabéns típicos, desafinadamente cantados por David, os seus pais e Isabel, Diogo pode finalmente abrir as suas prendas. Livros, sem duvida escolhidos por David, oferecidos pelos seus avós. Isabel, apanhada de surpresa para o jantar, mas não para o aniversario, ofereceu a Diogo uma caneta de tinta permanente, escolhida de propósito com uma pequena mensagem em inglês que apenas anos mais tarde Diogo viria a perceber. David comprara-lhe algo que fez por completo as delicias de Diogo. Um walkman, leitor de cassetes portátil, bem como uma dezena de cassetes virgens para o pequeno poder colocar nelas as suas musicas preferidas. Deparado com a prenda, depois de um estrangulador abraço ao pai e beijos de agradecimento aos restantes, Diogo desapareceu, radiante, para a frente da aparelhagem da biblioteca, deixando David e Isabel sozinhos para poderem conversar.
- O teu miúdo preocupa-me, David.
- Porque motivo?
- Há qualquer coisa nele que me deixa inquieta. Aborrece-se demasiado depressa, tem demasiada energia contida para a vida sedentária que faz. Não posso simplesmente mantê-lo a fazer exercícios extra a toda a hora. Já vai meses a frente do restante da turma, mesmo sendo o mais novo de todos.
- Isso é mau?
- Tentámos avançá-lo para o estimular, mas... ele continua a ter dificuldades de concentração. Não é de mais exercícios ou mais matéria escolar que ele precisa, disso ele tem lá em cima que chegue.
- O que acha que podemos fazer?
- Já devia ter falado contigo sobre isto. Lembras-te do piano, certo?
- Claro.
- Bem, porque não tentar algo semelhante com ele? Ele já passa demasiado tempo trancado na tua biblioteca.
- Mas lá está. Música? Ele já passa demasiado tempo parado.
- Contigo a música funcionou porque tu precisavas aprender a parar. Ele... ele precisa de libertar aquela energia que está a conter. Diogo precisa de algo mais físico. Ele procura por si mesmo a parte intelectual.
- Ele odeia desportos.
- Não concordo. Pelo que tenho notado, o que o mantém afastado dos desportos é a componente de equipa. Ele não sente empatia pelos colegas, e por isso evita esse tipo de desportos.
- E algo em que ele pudesse ficar dependente de si mesmo?
- Em que estás a pensar?
- Artes marciais. Conheço um dojo, propriedade de um dos meus clientes, que dá lições de diversas artes marciais a turmas jovens.
- Acho que é uma optima ideia. Alia-se a componente física à auto-disciplina. Achas que consegues que ele assista a uma demonstração?
- Talvez se consiga organizar, é uma questão de falar com a pessoa.
- Faz isso. Vê se ele se interessa por alguma das modalidades. Se for ele a escolher, há mais probabilidades de ele se dedicar desde inicio.
- Vou falar e marcar isso para o fim de semana.
- Mas, David, não o forces. Deixa ser ele a escolher o que quer, se quiser algo, claro. Podemos sempre mostrar-lhe mais coisas se necessário.
David conseguiu marcar a visita de apresentação a Diogo para esse fim de semana. No entanto, apenas seria possível assistir a uma aula das da faixa etária de Diogo. Havia turmas novas a serem formadas para os fins de semana para diversas modalidades, na faixa etária dele. David questionou a que seria possível assistir durante sábado a tarde, mesmo que fosse praticado por alunos mais velhos que Diogo. Recebeu uma lista de varias modalidades que estariam a ser praticadas nesse horário. Marcou a visita para esse sábado. Explicou que iria levar o seu filho a ver diversas modalidades, e deixar que este escolhesse alguma que lhe interessasse.
David guardou segredo sobre a visita até ao momento da mesma, tendo levado Diogo consigo sob pretexto de lhe mostrar algo novo, ao que o pequeno radiantemente se prontificou a acompanha-lo.
Foram recebidos por uma jovem loira, que se prontificou a mostrar-lhe as aulas em curso, para que Diogo pudesse talvez escolher uma. Mas Diogo estava distraído a observar um homem alto, magro, vestido de preto num estranho traje que Diogo nunca havia visto antes. Até a sua cara estava tapada por uma mascara de pano. O homem viu o olhar intenso de Diogo e resolveu aproximar-se do miúdo, que estava como que hipnotizado a olhar os seus movimentos.
- Olá pequenote. Gostas do fato?
Diogo acena afirmativamente.
- Que vieste fazer, pequenote?
- O meu pai disse que me ia mostrar uma coisa gira.
- E queres ver coisas giras é?
- Quero.
- Anda então. Vou-te mostrar umas coisas sobre este fato.
Delirante com a ideia de aprender algo novo, e estranhamente curioso com o homem do fato esquisito, Diogo fez um rápido sinal a David e seguiu o homem a correr, corredor abaixo, desaparecendo da vista do pai em segundos, ao virar a curva. David sorri para a mulher loira:
- Parece que ele encontrou algo interessante. Posso?
- Esteja a vontade. Se precisarem de ajuda, estarei na recepção.
- Obrigado pela sua disponibilidade.
David seguiu o corredor por onde vira Diogo desaparecer, virando a curva a esquerda, onde a porta do fundo se encontrava aberta. Seguiu até lá, deparando-se com Diogo sentado no chão, a olhar para um par de indivíduos a praticar algo que David desconhecia. Um dos praticantes era o homem alto com quem Diogo falara, o outro David ainda não tinha visto. Mas o que realmente espantou David foi o olhar atento, maravilhado com que Diogo seguia os movimentos obviamente bem treinados dos praticantes.
Um deles, de cara tapada ainda, empunhava um longo bastão de madeira, usando-o para criar distancia e bloquear os golpes do outro. De cara destapada, o homem que chamara Diogo empunhava uma longa corrente com pesos nas pontas. Pela estimativa de David a corrente deveria ter uns três metros.
Diogo observava o homem de cara descoberta, vibrando com cada movimento deste, enquanto este fazia dançar a corrente em arcos largos ao lado do seu corpo, fazendo um ruído seco ao ser deflectida pelo bastão do outro combatente, numa investida furiosa e bela, quase como um bailarino cujo par é aquela estranha corrente, o homem faz o seu oponente recuar e defender-se, passando de um ataque a outro, a corrente parecendo responder ao seu pensamento em vez de aos subtis movimentos do seu ágil manuseador. Encurralou o seu adversário a um dos cantos do tapete, forçando este a recorrer a rodar continuamente o bastão a sua frente numa tentativa de afastar o ataque da corrente que parecia dançar. Um sorriso de vitória atravessa o rosto do homem da corrente, ainda antes de qualquer movimento da parte deste. Dois golpes de pulso e ambas as pontas da corrente saem disparadas, contrariando o sentido de rotação do bastão, enroscando-se neste, um mero momento antes de novo golpe de pulsos arrancar o mesmo das mãos do seu adversário, arrastado pelas correntes, depositado inofensivamente aos pés do empunhador da corrente.
Os combatentes fazem uma vénia, a figura mascarada tirando a máscara para revelar uma flamejante cabeleira ruiva, um rosto de mulher marcado por algumas sardas sob a pele branca, varias gotas de suor caindo pelo seu rosto.
O homem da corrente dirige-se para o pé de Diogo, senta-se ao lado dele e inicia conversa, David ficando a espera de ver a resposta do pequeno aquela demonstração, sem interferir.
- E então? Gostaste?
- Adoro. Como se chama o que estavam a fazer?
- Ninjutsu.
- E a corrente? Tem nome?
- Sim, tem. Chama-se kusari. Podes por outras peças as pontas, além dos pesos que eu tenho. Sabes, o meu mestre usava duas laminas ali.
- Foi tão giro, parecia que estavas a dançar. Ensinas-me? Eu quero dançar com a corrente tal como tu.
- Sabes, vais ter que praticar muito, e que aprender com muito cuidado tudo o que te ensinar. Queres fazer isso?
- Quero. Ensina-me a dançar com a corrente.
- Como te chamas?
- Sou o Diogo.
- Bem, Diogo, o teu papá está a olhar para nós, e se lhe fôssemos perguntar se podes aprender ninjutsu. Consegues perguntar-lhe?
- Podes repetir o nome, por favor?
- Ninjutsu.
- E a corrente?
- Kusari.
- Como te chamas?
- Sou o Félix. Mestre Félix. Sou eu que ensina ninjutsu aqui.
- Pai, quero ser aluno do Mestre Félix. Quero aprender a fazer ninjutsu com ele, quero que ele me ensine a dançar com a kusari tal como ele faz. Pode ser pai?
Não havia muito a dizer. Fora mais fácil do que David previra. Diogo havia ficado maravilhado com a estranha arte, o brilho nos seus olhos logo ao começar a associar os novos nomes dizia tudo. Acenou afirmativamente a Diogo. Teve uma breve conversa com Félix. Estava preocupado quanto a deixar um miúdo praticar com armas reais. Félix tranquilizou-o, explicando-lhe os passos do treino a longo termo. Só quando Diogo estivesse pronto é que poderia usar armas. O processo de aprendizagem começava primeiro por modelar-lhe os movimentos, limar falhas nos mesmos, e ensina-lo principalmente a prever golpes, e só depois de tudo isto estar solidamente consolidado passariam a treino com armas. E mesmo durante o mesmo, não eram usadas laminas reais, e as armas não cortantes eram revestidas de uma camada de esponja para evitar lesões. Félix explicou a David que apesar de serem perfeitamente compreensíveis os seus receios, Félix há mais de 10 anos que ensinava esta arte, e nunca havia tido ferimentos graves com os seus alunos. E não seria a primeira ou a ultima vez que Félix ensinaria alguém da idade de Diogo.
David tentou não se preocupar demasiado, analisando as vantagens da situação em vez de ficar simplesmente a imaginar cenários menos agradáveis, mas ainda assim, só depois de os treinos começarem, e depois de mais de 15 aulas de duas horas assistidas é que David finalmente baixou a guarda, deixando o seu precioso miúdo nas mãos do seu novo mestre, para aprender a dançar com as correntes.
Foi a forma arranjada por David e por Isabel de aproveitar a energia de Diogo, e de que lhe fosse ensinada uma auto-disciplina que este não encontraria de nenhuma outra forma. Falar japonês foi simplesmente algo que aconteceram sem que eles o tivessem de qualquer forma previsto. O importante era que Diogo estava, entre as artes marciais, a escola, e os seus próprios tempos livres, aparentemente completamente preenchido. Andava feliz, se bem que um pouco cansado. Continuava a estudar afincadamente, fazendo os deveres com Isabel depois das aulas, como até aí, correndo de seguida para casa para praticar os movimentos aprendidos e treinados no dojo, enquanto ouvia musica no seu walkman. A felicidade de Diogo duraria durante meses, perdurando até ao ano escolar seguinte, apesar das saudades sentidas de Isabel durante as suas primeiras férias de verão, a sua professora e amiga ausente em mais uma das suas viagens pelo mundo. Diogo esperava ansiosamente pelo regresso dela, bem como por todas as novas historias que Isabel traria para contar. Enquanto isso, praticava e estudava, fazendo orgulhosos o seu pai, e os seus dois mestres, Félix e Isabel, professores e amigos que Diogo guardaria no coração para o resto da sua vida.
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