sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Infancia, Parte I

Antes de Jace.

Diogo nasceu numa pequena aldeia do sul, onde passou os primeiros 16 anos de vida, vivendo junto dos avós paternos. Menino prodígio desde tenra idade, aprendeu a ler sozinho aos quatro anos, passando os dias na biblioteca do pai, ou explorando os arredores da quinta dos avós.
Sempre bastante independente, preferia estar sozinho. Tentaram fazê-lo frequentar o infantário, mas ele recusava-se a ir à "escola dos bébes", como lhe chamava.
Assim que se apercebeu de que Diogo havia de alguma forma aprendido a ler, o seu pai começou a tentar estimular o seu crescimento intelectual. Começou por lhe oferecer livros para crianças e adolescentes, mas rapidamente desistiu. Estes ficavam de lado, apenas algumas páginas lidas, e Diogo voltava aos volumes científicos e textos filosóficos da biblioteca. David rapidamente mudou de estratégia. Começou a ensinar inglês ao pequeno, recusando-se a comunicar com Diogo em português. A estratégia deu frutos, Diogo rapidamente absorvendo a nova língua, usando-a como linguagem secreta quando comunicava com David, percebendo perfeitamente que ninguém que os rodeava percebia a língua estrangeira em que falavam.
Quando Diogo fez 5 anos, David ofereceu-lhe uma consola de videojogos, trazida de fora do país, de uma das varias viagens de trabalho de David, um gira-discos e alguns albuns. Um deles em particular, Diogo costumava colocar a tocar horas a fio, voltando ao inicio quando o álbum acabavam. "Images and Words" de Dream Theater.
Diogo era uma criança feliz, se bem que solitária. Não tinha amigos, raramente estabelecia contacto com crianças da sua idade, nem demonstrava qualquer interesse em tal. A única criança com quem Diogo interagia sem restrições era o seu primo Filipe, um ano mais novo, e, em todos os aspectos uma criança normal de 4 anos.
O tempo passava tranquilamente, Diogo continuando a devorar livro após livro enquanto ouvia albuns de rock e heavy metal contemporâneos, escolhendo as pérolas da colecção de David, ou alguns dos que este lhe trazia propositadamente de cada vez que saia em trabalho.
Tudo corria dentro da normal anormalidade da quinta, Diogo crescendo física e intelectualmente.
Aos 6 anos, como de esperar, foi matriculado na escola primaria. Pela primeira vez na sua vida, Diogo experimentou uma sensação que jamais o abandonaria. O primeiro ano de educação primaria era suposto ensinar-lhe o básico de matemática e de língua portuguesa. Diogo falava, lia e escrevia duas línguas, tinha conhecimentos de matemática e noções de química, adorava apreciar os textos filosóficos de vários autores, Nietzsche em especial, apesar de a sua jovem mente não ter de todo a experiência ou o conhecimento necessário para os compreender na sua totalidade, ainda assim as palavras lhe ficavam gravadas, ecoando na sua mente mesmo anos depois com a clareza e exactidão de uma gravação. Tentou acompanhar as aulas durante a primeira semana, se bem que morto de tédio. Quando questionado pelos avós sobre o que achava da escola, limitava-se a encolher os ombros, resignado, procurava algo para comer e refugiava-se na biblioteca de David, compensando o tempo perdido na escola com redobrado afinco nas suas leituras. Se Diogo costumava ler um livro por semana, essa semana leu quatro completos.
Foi com um alivio enorme que viu chegar a sexta-feira dessa primeira semana. Passou a tarde a olhar para o seu relógio com dinossauros, contando cada minuto até à hora de sair, sentindo ansiosamente que o tempo se arrastava para prolongar a sua tortura. Cinco minutos antes da hora de saída já ele tinha tudo arrumado na mochila, esperando o toque reclinado na cadeira, braços cruzados em silêncio. Sentiu no seu cabelo uma leve caricia, olhando para cima para ver nos lábios de Isabel um sorriso compreensivo.
O toque de saída, tão ansiado, fê-lo levantar-se de um salto, acenar a Isabel e desaparecer a correr sala fora, rumo a casa, rumo aos braços de David, as saudades a falarem mais forte, a necessidade de falar com a única pessoa que o compreendia fazendo uma lágrima escorrer pelo seu rosto.
 - Tira-me dali. É demasiado estúpido, pai, por favor.
 - Calma Diogo, calma. Que se passa?
 - A escola. É quase igual ao infantário. Ninguém me fala e não vale a pena ouvir quando falam. O que é cabra-cega?
David riu-se com a pergunta. Há algum tempo que temia isto. Diogo costumava dizer que queria preparar-se para a "escola dos crescidos", no entanto era demasiado tarde. Diogo enfrentara sozinho a desilusão, a "escola dos crescidos" não era nada do que esperava.
David resolveu falar com a professora do filho, sua própria professora de ensino primário, há mais de vinte anos atrás. Explicou-lhe a curta conversa com Diogo, falou das suas próprias experiências. Lembrou-lhe o quão penoso havia sido também para ele aquele tempo, aquele tédio. Ambos sorriram, um sorriso feliz de quem recorda e relembra a parte feliz da memoria partilhada, rindo naquele momento juntos de piadas e manias de David que há tanto tempo atrás Isabel havia odiado.
Concordavam num aspecto: Diogo deveria ser poupado ao máximo possível do tédio, deveria ser-lhe possibilitado tirar partido da sua inteligência e do seu insaciável desejo de aprender. Foi entre ambos redigido e assinado um apelo ao ministério, um pedido para passar o pequeno Diogo directamente para o terceiro ano.
O pedido foi analisado e debatido, um debate muito mais prolongado que o necessário para a urgência da situação, mas debate necessário para o excepcional pedido. Acabou por ser aprovado, mas com um entrave do qual Isabel rira à gargalhada ao ler quando recebeu a carta de resposta. Diogo teria que fazer provas de aferição de conhecimento referentes ao primeiro e segundo anos do ensino primário. Os testes foram entregues a Isabel junto com a resposta ao pedido e os critérios de correcção dos mesmos. Isabel marcou os testes para a sexta-feira dessa semana, terceira semana de Outubro. Afinal de contas, ela poderia justificar todo o dia do pequeno como dedicado às provas, e poderia dispensá-lo depois de este as concluir. Foi precisamente isso que disse a Diogo. Que estaria livre assim que terminasse as provas. Diogo iniciou as mesmas as 9:00, terminou as 11:30. Isabel ficou alegremente surpreendida pela celeridade, ainda mais ao fazer a correcção essa tarde, nota máxima em todas as provas. Não se havia enganado. De certa forma os tempos haviam mudado, felizmente. Isabel gostaria de ter feito o mesmo por David, mas naquela altura tal avanço seria inconcebível.
O plano de David e Isabel fora bem sucedido. O intuito era poupar Diogo ao tédio, e potenciar ao máximo o seu desenvolvimento intelectual. Nunca consideraram os efeitos deste avanço no desenvolvimento social de Diogo, mas nem mesmo o pequeno se importava minimamente com a sua obvia falta de amigos da sua idade, ou demonstrava qualquer tipo de interesse em resolver essa lacuna.
Diogo ignorava por completo a existência dos seus colegas tanto quanto possível, tentando cortar ao mínimo qualquer interacção iniciada por estes. No entanto, costumava ficar com Isabel na sala de aulas, falando alegremente, ouvindo a historias das viagens dela, historias de outros povos, outros lugares e outras vistas, historia mitos e lendas de outros sítios, eras e culturas. As vezes acordava de manhã com um sorriso no rosto depois de um sonho em que também ele viajava e via fenómenos da sua imaginação.
Passou alegremente esse tempo na escola, desde que havia sido mudado para o terceiro ano até as férias do Natal. Estudou para as provas, porque Isabel a amiga não era tão amiga assim no que tocava a deveres. Esperava que ele fosse excelente, e Diogo não queria desiludir. Havia um padrão de deveres que Isabel passava dia-sim-dia-sim a Diogo e aos seus colegas, deveres esses que normalmente eram feitos por Diogo depois de os seus colegas saírem da sala, enquanto Isabel corrigia trabalhos e preparava a matéria para o dia seguinte. Por vezes, recebia um exercício para resolver, Isabel usando-o para testar a dificuldade destes, analisando o tempo que Diogo demorava a resolvê-los. Tornaram-se amigos, mestre e aprendiz, companheiros na solidão, palavra que a Isabel muito dizia, e sentimento que Diogo em breve passaria também a conhecer.
As férias de Natal chegaram, trazendo consigo duas coisas: a companhia de Filipe, e a ausência de David, obrigado a sair do país em trabalho, sem hipótese de recusar, sob pena de perder um cliente importantíssimo. David é engenheiro electrotécnico, trabalha por conta própria e trabalho não falta, mas este cliente implicaria a adição de uma importante fonte de trabalho e lucro a ser adicionada à sua carteira de clientes, coisa que David não se podia dar ao luxo de dispensar. Queria aproveitar as férias do filho para uma escapadela com o pequeno, talvez levá-lo a ver a neve, mas o aparecimento inesperado deste cliente atirou por terra os seus planos.
Tentou explicar a situação a Diogo, mas, apesar de um prodígio para a idade, Diogo continuava a ser um miúdo de seis anos, e não aceitou bem o facto de ir passar o natal sem o pai. Queria a sua companhia na biblioteca, queria aquelas tardes preguiçosas em frente da lareira, a sombra da silenciosa presença do pai fumando o seu cigarro, o aroma da aguardente no ar, a possibilidade da companhia daquele que no fundo era o único que Diogo tinha que sentia compreendê-lo. Mesmo não sendo dado a manifestações de afecto, Diogo ressentia as ausências de David, especialmente naquela quadra.
E foi depois da partida de David que Diogo primeiro sentiu a solidão. Rodeado de pessoas, entre os avós, o primo, as ocasionais visitas de familiares e conhecidos, Diogo sentia-se só. Só e vazio. Tentava em vão ignorar a solidão e o vazio, tentando preencher ambos com livros e musica.
Foi numa dessas tardes de inicio de férias, quando voltava da aldeia com algumas coisas que a avó lhe havia pedido que fosse buscar, que ouviu, sem que alguém desse conta, uma conversa entre a sua avó e uma tia da mesma, já nos seus oitenta anos.
 - Tenho receio pelo teu neto, filha.
 - Porquê tia?
 - Meninos assim não se criam. Pergunto-me se chegará a homem, e coitado dele se chegar.
 - Porque diz isso?
 - Porque é demasiado inteligente para poder ser feliz. Pessoas inteligentes nunca são felizes filha. Pensam demais, sofrem demais, e ficam condenadas a ver o sofrimento alheio e a sentir o seu próprio, sem que a sua inteligência possa ajudar. Espero estar enganada, filha, mas o teu neto tem dois destinos: sofrimento, e morte.
 - Não diga essas coisas que me assusta, tia.
A conversa interrompida por Diogo, como se nada tivesse ouvido.
 - As tuas coisas e o troco. Comprei um chocolate para mim.
 - Fizeste bem meu querido. Podes ir brincar se quiseres. Não preciso mais de ti. Obrigada.
Diogo retirou-se, mas as palavras da anciã jamais seriam esquecidas, mesmo tendo sido enterradas nos confins da sua jovem mente poucos minutos depois de serem ouvidas.
O tempo de férias passou antes do regresso de David. O Natal de Diogo, esse ano, passou rapido, solitário e triste. Nem a presença dos avós, dos tios, primos e família alargada, nem o ambiente de festa e confraternização, ou mesmo as prendas conseguiram arrancar a Diogo um sorriso nesse dia. Passou o tempo sossegado e calado, lutando dentro de si mesmo por conter uma lágrima que teimava em surgir no seu olho, impedindo-a de cair. "Homens não choram." O mantra repetido inúmeras vezes, quase resultando de cada vez... quase...
Por varias vezes lhe perguntaram o que se passava com ele, porque parecia triste. A resposta de Diogo era sempre a mesma, uma que seria apresentada à mesma questão durante anos e anos.
 - Nada. Problema meu.
E o seu problema era o mesmo que daí em diante se tornou uma constante. Sentia-se só. Só David realmente compreendia Diogo, e a sua ausência marcava a jovem mente de Diogo. A solidão, o vazio apoderavam-se dele, tornando-se constantes, afectando tudo nele daí em diante.

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