Jace está exausto. Demasiado exausto para ir enfiar-se num clube nocturno até as 4 da manhã, mas sabe que precisa de o fazer. Não é simplesmente uma opção não o fazer. Passou as duas noites anteriores colado ao teclado, escrevendo e testando pedaços de código, tentando forçar as ideias na sua mente a serem traduzidas pelos seus dedos para uma linguagem que o seu processador compreenda. Ele precisa disto, há muito tempo que ele precisa deste projecto terminado. Adiara-o tempo suficiente, por preguiça, por magoa de remexer em algo que fora iniciado ao lado dele... Mas o tempo de preguiça e mágoa há muito que se esgotara. Cada noite que passava, cada operação que supervisionava tornavam-no mais vulnerável. A continuar daquela forma, por muito cuidado que tivesse, as coisas irremediavelmente terminariam mal. Jace precisa deste projecto concluído. Precisa dele para que o resto possa ser tratado enquanto ele se mantém nas sombras, longe de olhares e suspeitas.
Esta noite fora calma, apesar de tudo. Tinha combinado uma entrega para a meia noite, nas docas. Jace odeia trabalhar nas docas. A zona fá-lo sentir-se inquieto. Sente-se vigiado mesmo sabendo que não o está a ser. A entrega foi realizada à hora marcada. Jace observava, escondido entre as sombras de um par de contentores industriais, enquanto os rapazes por si contratados recebiam o produto, o colocavam numa carrinha de caixa fechada, e arrancavam seguindo o percurso por Jace traçado. Tudo correra conforme o planeado, mas nos confins da mente de Jace perdurava a sensação de que ainda não estava tudo bem. Só ao receber uma mensagem no telemóvel, a indicar que o pacote havia sido recebido, Jace descansou. Estava feito. Mais uma vez ele conseguira iludir toda a gente, conseguira mexer os cordéis de diversas marionetes, numa dança afinada pelo toque do seu intelecto.
Está exausto. A única coisa que quer agora é voltar para casa. É quase uma da manhã. Quer dormir. Esquecer. Deixar o cérebro descansar, deixar que este repouse, longe de operações sombrias de movimentos de substancias, longe das linhas de código que começam a finalmente oferecer resultados, longe de tudo.
Acaba por soltar um longo suspiro, abandonar o seu posto de vigia e apanhar um táxi. O destino é o mesmo clube nocturno de sempre, o sitio onde de há um ano para cá tem sistematicamente escolhido para passar todas as noites de sexta e sábado. Escolhera aquele sitio não só por o seu estilo de vestuário normal, bizarro para a comum percepção, ali era não só tolerado, mas encorajado. A música ajudava. A companhia também não o fazia odiar o sitio, mas no fundo toda essa regularidade tinha como único objectivo o de criar um álibi. Quer ser visto ali. Quer que o máximo de pessoas recordem tê-lo visto, no caso de alguma vez precisar. Sabe bem que os testemunhos de horas exactas numa noite de copos são impossíveis. Conta com tal. Toda a gente conseguiria dizer que ele ali estivera. Mas quantos seriam capazes de indicar a hora a que havia chegado? Provavelmente só o barman, Diablo, e este e Jace tinham uma relação demasiado próxima, eram demasiado chegados para que Diablo alguma vez o traísse. "Não. Não preciso de me preocupar com Diablo. Ele sabe bem o quão mais útil sou como aliado que como oponente."
Chega ao clube passam uns minutos da uma hora. Já se encontra quase cheio. Dirige-se ao balcão, pede dois Red-Bull, entrega a nota para pagar a Diablo e sorri com um aceno de boa noite. Não falam ali, quase nunca trocam mais que umas palavras, um pedido normal, cliente e barman apenas.
Procurou a sua mesa de canto habitual. Felizmente desocupada, posicionada a um canto, longe da vista de olhares indiscretos, a escuridão escondendo boa parte do seu corpo, tornando os seus gestos imperceptíveis. Abriu a primeira lata, esvaziando-a sem parar sequer para respirar. Abriu a segunda e tentou distrair-se, encontrar fosse o que fosse que lhe prendesse a atenção, que obrigasse os seus olhos a manterem-se abertos até que a bebida energética tivesse tempo para ser absorvida, reactivando os seus sentidos durante o tempo exacto para lhe permitir passar ali a noite e voltar a casa, para o tão desejado e merecido descanso.
As caras que vê são semi-conhecidas, uma boa parte dos presentes sendo clientes habituais. Deixa-se percorrer com os olhos a pista de dança, observar potenciais companhias que lhe permitissem esquecer o vazio... "Não. Estou demasiado cansado para isso." Desiste da ideia. Levanta-se e vai encostar-se num dos pilares grossos que se erguem do chão ao tecto, rodeando a pista de dança. Fica quase meia hora parado ali, bebendo ocasionalmente da sua lata, acenando com a cabeça a um qualquer conhecido por vezes, sempre tentando manter-se alerta, sempre focado em parecer o mais a vontade possível, o mais simpático possível. Parecer distante nunca seria um problema em Jace. Isso ele fazia naturalmente. Era a parte de fingir algum grau de empatia com os restantes ocupantes que exigia um esforço da parte dele.
Larga o pilar e volta ao balcão.
- Diablo, faz-me um café duplo se faz favor.
- A sair.
A espera de uns momentos vale a pena ao receber a sua frente uma chávena grande, cheia até ao topo de café. Não é de longe nem de perto o melhor café que Jace alguma vez bebeu, mas o mero facto de estar a ingerir uma dose industrial de cafeína dá algum conforto à mente de Jace, e os efeitos das duas bebidas energéticas começam a sentir-se. Quer fumar, mas sabe que não pode tocar no seu precioso veneno, sob pena de que o efeito da cafeína não seja suficiente para afastar o sono e a moca da erva. Não pode correr o risco.
- Diablo, dá-me um maço de Davidoff.
Paga e acende um cigarro, saboreando o fumo sem o inalar para os pulmões. Volta para a mesa do canto. Pensa em dançar, mas as dores nas suas pernas depressa o dissuadem da ideia. "Merda. Não consigo dançar, não posso fumar, não posso beber..."
Acaba por se deixar embalar, abanando a cabeça ao som da música, deixando os minutos e as horas fundirem-se. Podia jurar que começara a sonhar. O tempo, ao fim de tanto tempo sem dormir, começava a parecer-lhe estranho. Não sentia este a passar, mas o tempo corria por si. Olha finalmente para o telemóvel. 3:40. Óptimo. Passara ali tempo mais que suficiente para evitar qualquer suspeita. Horas de seguir viagem, rumo a casa. Rumo à cama e ao sono. "Merda de semana..."
Sai do clube e percorre um grupo de ruelas e becos que o deveriam levar à Praça do Comercio, e a um táxi para casa. É um percurso que ele faz todas as vezes que sai e volta para casa sozinho. Em noites em que tem a paciência para arranjar companhia limita-se a chamar um táxi para a porta do clube, mas estando sozinho, não vê qualquer propósito em tal. Não há a promessa da satisfação dos seus desejos carnais, e como tal ele tem todo o tempo do mundo. A parte complicada já passara, e agora nada o impedia de ir descansar, excepto talvez a sua própria vontade.
Ou o par de homens de mau aspecto a ameaçarem uma rapariga no meio do seu caminho. Está ainda a uns vinte metros do trio semi-oculto pela escuridão. Dois homens a ameaçarem uma rapariga indefesa. Tão cansado... mas esta não é a cidade que ele quer para si. Não, na sua cidade uma miúda indefesa pode bem passear as 4 da manhã pelas ruas desertas sem ter que temer dois idiotas. E apesar de esta estar ainda longe de ser a cidade que pretende, Jace não vai permitir aqueles dois mancharem a imagem da sua cidade perfeita, não a sua frente, não arrastando uma rapariga inocente. Aproxima-se deles silenciosamente, sem despertar a atenção deles até estar a pouco mais de dois metros de distância das costas dos dois indivíduos. O tempo não é muito para observar o trio, apesar de a adrenalina ter acordado todas as terminações nervosas do seu corpo de uma forma que cafeína nenhuma alguma vez conseguiria.
Já vira aquela miúda antes. Uma das raparigas do clube. Lembra-se vagamente de ter sido apresentado a ela semanas antes, de saber o seu nome. Algo começado com um V. Não sabia mais nada. A face dela estava lívida, o medo tomara conta dela. Encostada a uma parede, os dois homens cortando-lhe a possibilidade de correr. Jace nem se preocupa em analisar os rufias. Não interessa. Precisa agir antes que algo de mal aconteça. Está próximo que chegue, a menos de dois metros das costas de ambos. Precisa de virar a atenção deles para si, dar à miuda a oportunidade de fugir enquanto ele os retem.
- Hey! A morcega está sob a minha protecção. Pirem-se.
Obviamente que ele não espera ser obedecido, não sem alguma persuasão envolvida, provavelmente sob a forma de algum tipo de violência. Os dois assaltantes viram-se para ele, apanhados de surpresa. Por momentos temem ter sido encurralados por um grupo que lhes pudesse causar problemas, mas ao depararem-se de frente com uma única pessoa, a figura magra de Jace a sua frente, descontraíram. Que mal poderia aquele ser esguio fazer-lhes? Um deles solta uma gargalhada, aponta a faca na direcção de Jace, demasiado longe para ser mais que um gesto de ameaça, uma tentativa de intimidação, que Jace percebe bem pelo que é, sem um perigo imediato envolvido.
- E quem te protege a ti, miúdo?
A voz grave tem um tom meio sádico mal disfarçado. Jace olha ambos, tirando-lhes as medidas dos pés à cabeça. Um deles, o que o interpelara, deve estar perto dos trinta anos, branco, os dentes da frente podres, tornando o seu sorriso bastante desagradável à vista. O outro deve ser da idade de Jace, talvez um ano mais velho. 21 anos no máximo dos máximos. Negro, face redonda, olhos grandes, castanhos que fitam Jace com uma curiosidade enorme, aliada a uma certa surpresa.
- Proteger-me de quem? Não vejo nenhuma ameaça.
- 'Tás a gozar comigo, lingrinhas? Acho que te vou desfazer as trombas, e depois volto a tratar da tua morcega. Não te preocupes, eu deixo-te consciente para assistires.
O meio sorriso do homem passou a um esgar enegrecido, de visível satisfação, saboreando a promessa de violência gratuita, esperando efeitos que não apareceram na figura a sua frente.
Jace vira-se para o mais novo dos dois, esticando o braço esquerdo, apontando para ele com o indicador.
- Tu! Tu viste-me há três semanas atrás, na vossa rua. Recordas-te?
O ar pensativo do rapaz negro torna-se obvio na sua face. Sim, ele recordava-se. E a recordação era viva o suficiente para o deixar desconfortável.
- Man, esquece isto. A miúda não vale a pena, não quando para lhe chegar aos bolsos é preciso passar por ele.
- 'Tás a brincar? É só um puto.
- Man, ele desfez as trombas de quatro gajos na rua onde eu costumo estar a noite, bem a minha frente. Só porque um deles apalpou a miúda com quem ele estava a sair de um bar.
- Ele pode desfazer a cara de quantos bêbados queira, a mim não me mete medo. Anda cá rapaz. Mostra-me o que vales vá.
O sorriso de Jace foi a única resposta que este lhe resolveu dar, condizendo com o sorriso do homem que a sua frente empunhava uma faca na sua direcção. Jace está finalmente acordado. Completamente acordado, como se tivesse agora acordado de uma rejuvenescedora sesta. Rufias nas ruas da sua cidade não seriam tolerados, e Jace sabe bem que não pode dizer nada que convença o homem a sua frente a desistir da ideia de o esmagar, mas resolve atirar mais umas achas para a fogueira. As palavras do seu mestre repetidas na sua mente: "As emoções do teu oponente são uma arma tão poderosa quanto a kusarigamma que manejas. Aprende a usa-las e ganharás qualquer luta."
- Verme! Cala o bico, guarda a faquinha de esfolar coelhos e acata as ordens do teu General. Essa miúda está sob a minha protecção. Os morcegos estão sob a minha protecção. Guarda a faca, dá meia volta e vai embora, ou tiro-a eu das tuas mãos e faço-te arrepender pela tua insolência.
- A quem 'tás tu a chamar verme?!
Funcionara. Conseguira uma semente de fúria. Apenas umas gotas e esta vai desabrochar, cegar o seu oponente. Jace sabe perfeitamente que num combate justo, ele perde no momento em que apanhar um soco em cheio do seu oponente. Mas Jace está neste momento no meio do tapete no dojo, a fazer a sua saudação inicial. O próximo insulto é a sua venia de inicio, e depois será o fim.
- Sabes, verme? Estava a pensar puxar a minha kusarigama, arrancar-te a faca, e apagar-te da consciencia com a outra ponta dela. Mas... não. Vermes como tu não merecem a honra de sentir a minha arma. Anda. Apetece-me sujar as mãos.
Não há resposta verbal. O homem investe contra Jace, faca estendida a frente, com a intenção de empalar aquele fala-barato daquele miúdo ranhoso, de lhe fazer provar o seu próprio sangue. Não espera o ar neutro deste, não espera ver a lamina da sua faca ser evitada por milímetros, o ombro de Jace a desviar-se do golpe mal apontado pela sua visão toldada de raiva. Menos ainda espera encontrar no caminho do seu pé a biqueira de aço da bota de Jace, imóvel, cravada ao chão, sentir os dedos do seu pé esmagarem-se no aço, o brusco impulso virado dele virado contra si mesmo, a faca a ser largada quando as suas mãos, por reflexo travam a sua queda caindo no alcatrão velho, a pele grossa delas rasgadas pelo toque aspero do pavimento da rua. Desorientado, levanta-se, grunhindo de dor e frustração. Quer esmagar aquele pirralho, e vai fazê-lo com as suas próprias mãos, se assim tem que ser.
Torna a correr na direcção do fedelho, mãos abertas pronto a agarra-lo e acabar com a brincadeira de se esquivar de uma vez. Uma mão naquela blusa e um soco no nariz. É quanto basta. Ele sabe que sim. O fedelho não tem cara para levar um murro de um homem a sério. Anos de ginásio e de brigas de rua provaram isso inúmeras vezes com fedelhos da laia dele, que pensam que sabem tudo porque veem filmes de artes marciais.
Jace observa o inicio da corrida. O tempo pára enquanto a sua cabeça mede as distancias. Entre o impulso e os três passos que Jace dera para trás, havia agora quase cinco metros entre ambos. As mãos de Jace mexem-se para a sua cintura, pousando nesta quase um segundo, Jace estende o braço direito num arco ao lado do corpo.
O rufia sente algo a bater-lhe na perna, qualquer coisa a enrolar-se em volta dos seus tornozelos, e desta vez o reflexo não foi rápido o suficiente para evitar que a sua cara fosse raspar no alcatrão. Atordoado durante momentos...
Momentos bastantes para que a próxima coisa que sente é uma sola de borracha na nuca, o pé de Jace pousado sobre o seu pescoço, forçando a sua cara a esborrachar-se no pavimento com a pressão. É a voz calma e neutra, mais que estar no chão indefeso, preso, à mercê de um miúdo, que mais o irrita.
- O teu amigo avisou-te. Não deves ter reparado, mas ele não mexeu um músculo para te ajudar. Ele é um rapaz esperto. Hei-de encontra-lo um dia destes. Gosto de pessoas que pensam. Bestas como tu, meu amigo, não me servem para nada. Já agora, imagino que para ti não faça muita diferença, mas, eu gosto de explicar.
Jace sorri, aplicando um pouco mais de pressão no pé.
- Eu disse-te, correctamente, que não eras merecedor da minha kusarigamma. E foi verdade. Essa está enrolada ao meu braço direito, como sempre esteve. O meu querido cinto, como muitos ironicamente lhe chamam, é uma mangarikusari. É uma arma de arremesso. Serve, como deves ter percebido, para imobilizar bestas acéfalas que resolvem correr na direcção do seu General, em vez de se ajoelharem e pedirem perdão por se terem atrevido a tocar num dos seus protegidos. Eu devia acabar com a tua raça, sabes? Mereces isso só por ter causado o transtorno que causaste a uma rapariga. Mas não o vou fazer. Sabes porquê?
Jace pausa, aguardando resposta, chegando a aliviar um pouco a pressão. Torna a calcar com mais força o pescoço do homem.
- Fiz uma pergunta, verme.
- Não sei.
Jace abusa da pressão de seguida, o homem forçado a inalar com o nariz esborrachado no alcatrão, arrastando poeira para o nariz. Jace alivia um pouco a força com que o segura, no entanto, este pequeno espectáculo foi o suficiente para passar a sua mensagem.
- Repete depois de mim: Não sei, meu General.
Jace limita-se a mexer minimamente o pé quando a resposta prontamente lhe é apresentada.
- Não sei, meu General.
- Começas a aprender. Vais mostrar uma mensagem. Tu, morcega.
A rapariga está em choque, observando e obedecendo em piloto automático, a sua atenção presa nele desde que o vira a esgueirar-se por trás dos seus assaltantes momentos atrás.
- Trás-me a faca que este desajeitado deixou cair, por favor.
Ela demora uns momentos a processar o pedido, mas acaba por aceder, entregando a faca na mão de Jace.
Jace rasga a camisa do homem com a faca. E de seguida começa a rasgar as costas deste, em golpes rasos, precisos. "Obedecerei ao General" ficou gravado em letras grandes, ocupando as costas do homem por completo, os golpes fundos o suficiente para garantir que deixariam cicatriz visível e palpável, mas efectuados de forma a garantir que não causava danos de maior além daquilo que pretendia escarificar.
Acabada a mensagem, Jace vira-se para o rapaz negro, também ele em choque.
- Trata deste idiota. Vê se escolhes melhor as companhias. Terça-feira, está à porta do bar as 4 da tarde.
- Que bar?
- Que bar? Onde estás sempre, no bairro alto, na vossa rua. Vou falar contigo. Tenho uma proposta para ti. Interessado em ouvir-me?
- Sim, estou.
- Sim, estou...?
O tom de Jace fora suficiente para passar a mensagem.
- Sim, estou, meu General.
Jace sorri ao ouvir estas palavras.
- Como te chamas?
- Caio.
- Limpa o lixo por favor Caio. Voltamos a encontrar-nos em breve, agora tenho que garantir que levo esta miúda a casa.
Jace finalmente liberta o homem. A vontade deste encontra-se quebrada. Não tem qualquer intenção de dar sinal até que aquela figura estranha desapareça dos seus arredores.
- Caio.
- Sim, General?
- Eu estava a falar a sério. Os morcegos estão sob a minha protecção. Tu também. Espalha a palavra.
- Com certeza General.
Algo naquela figura inspirava não só um certo medo, como um certo grau de respeito. Tratara a miúda e Caio de forma cortês, no entanto não hesitara em desfazer a oposição. Caio já o vira antes. Estava curioso com a suposta proposta.
Jace acompanhado da rapariga saem do beco, seguindo o caminho que Jace pretendera seguir antes da interrupção.
Caio tirou a carteira do bolso do seu colega daquela noite, tirou o dinheiro, e seguiu na direcção contrária.
Esta noite fora calma, apesar de tudo. Tinha combinado uma entrega para a meia noite, nas docas. Jace odeia trabalhar nas docas. A zona fá-lo sentir-se inquieto. Sente-se vigiado mesmo sabendo que não o está a ser. A entrega foi realizada à hora marcada. Jace observava, escondido entre as sombras de um par de contentores industriais, enquanto os rapazes por si contratados recebiam o produto, o colocavam numa carrinha de caixa fechada, e arrancavam seguindo o percurso por Jace traçado. Tudo correra conforme o planeado, mas nos confins da mente de Jace perdurava a sensação de que ainda não estava tudo bem. Só ao receber uma mensagem no telemóvel, a indicar que o pacote havia sido recebido, Jace descansou. Estava feito. Mais uma vez ele conseguira iludir toda a gente, conseguira mexer os cordéis de diversas marionetes, numa dança afinada pelo toque do seu intelecto.
Está exausto. A única coisa que quer agora é voltar para casa. É quase uma da manhã. Quer dormir. Esquecer. Deixar o cérebro descansar, deixar que este repouse, longe de operações sombrias de movimentos de substancias, longe das linhas de código que começam a finalmente oferecer resultados, longe de tudo.
Acaba por soltar um longo suspiro, abandonar o seu posto de vigia e apanhar um táxi. O destino é o mesmo clube nocturno de sempre, o sitio onde de há um ano para cá tem sistematicamente escolhido para passar todas as noites de sexta e sábado. Escolhera aquele sitio não só por o seu estilo de vestuário normal, bizarro para a comum percepção, ali era não só tolerado, mas encorajado. A música ajudava. A companhia também não o fazia odiar o sitio, mas no fundo toda essa regularidade tinha como único objectivo o de criar um álibi. Quer ser visto ali. Quer que o máximo de pessoas recordem tê-lo visto, no caso de alguma vez precisar. Sabe bem que os testemunhos de horas exactas numa noite de copos são impossíveis. Conta com tal. Toda a gente conseguiria dizer que ele ali estivera. Mas quantos seriam capazes de indicar a hora a que havia chegado? Provavelmente só o barman, Diablo, e este e Jace tinham uma relação demasiado próxima, eram demasiado chegados para que Diablo alguma vez o traísse. "Não. Não preciso de me preocupar com Diablo. Ele sabe bem o quão mais útil sou como aliado que como oponente."
Chega ao clube passam uns minutos da uma hora. Já se encontra quase cheio. Dirige-se ao balcão, pede dois Red-Bull, entrega a nota para pagar a Diablo e sorri com um aceno de boa noite. Não falam ali, quase nunca trocam mais que umas palavras, um pedido normal, cliente e barman apenas.
Procurou a sua mesa de canto habitual. Felizmente desocupada, posicionada a um canto, longe da vista de olhares indiscretos, a escuridão escondendo boa parte do seu corpo, tornando os seus gestos imperceptíveis. Abriu a primeira lata, esvaziando-a sem parar sequer para respirar. Abriu a segunda e tentou distrair-se, encontrar fosse o que fosse que lhe prendesse a atenção, que obrigasse os seus olhos a manterem-se abertos até que a bebida energética tivesse tempo para ser absorvida, reactivando os seus sentidos durante o tempo exacto para lhe permitir passar ali a noite e voltar a casa, para o tão desejado e merecido descanso.
As caras que vê são semi-conhecidas, uma boa parte dos presentes sendo clientes habituais. Deixa-se percorrer com os olhos a pista de dança, observar potenciais companhias que lhe permitissem esquecer o vazio... "Não. Estou demasiado cansado para isso." Desiste da ideia. Levanta-se e vai encostar-se num dos pilares grossos que se erguem do chão ao tecto, rodeando a pista de dança. Fica quase meia hora parado ali, bebendo ocasionalmente da sua lata, acenando com a cabeça a um qualquer conhecido por vezes, sempre tentando manter-se alerta, sempre focado em parecer o mais a vontade possível, o mais simpático possível. Parecer distante nunca seria um problema em Jace. Isso ele fazia naturalmente. Era a parte de fingir algum grau de empatia com os restantes ocupantes que exigia um esforço da parte dele.
Larga o pilar e volta ao balcão.
- Diablo, faz-me um café duplo se faz favor.
- A sair.
A espera de uns momentos vale a pena ao receber a sua frente uma chávena grande, cheia até ao topo de café. Não é de longe nem de perto o melhor café que Jace alguma vez bebeu, mas o mero facto de estar a ingerir uma dose industrial de cafeína dá algum conforto à mente de Jace, e os efeitos das duas bebidas energéticas começam a sentir-se. Quer fumar, mas sabe que não pode tocar no seu precioso veneno, sob pena de que o efeito da cafeína não seja suficiente para afastar o sono e a moca da erva. Não pode correr o risco.
- Diablo, dá-me um maço de Davidoff.
Paga e acende um cigarro, saboreando o fumo sem o inalar para os pulmões. Volta para a mesa do canto. Pensa em dançar, mas as dores nas suas pernas depressa o dissuadem da ideia. "Merda. Não consigo dançar, não posso fumar, não posso beber..."
Acaba por se deixar embalar, abanando a cabeça ao som da música, deixando os minutos e as horas fundirem-se. Podia jurar que começara a sonhar. O tempo, ao fim de tanto tempo sem dormir, começava a parecer-lhe estranho. Não sentia este a passar, mas o tempo corria por si. Olha finalmente para o telemóvel. 3:40. Óptimo. Passara ali tempo mais que suficiente para evitar qualquer suspeita. Horas de seguir viagem, rumo a casa. Rumo à cama e ao sono. "Merda de semana..."
Sai do clube e percorre um grupo de ruelas e becos que o deveriam levar à Praça do Comercio, e a um táxi para casa. É um percurso que ele faz todas as vezes que sai e volta para casa sozinho. Em noites em que tem a paciência para arranjar companhia limita-se a chamar um táxi para a porta do clube, mas estando sozinho, não vê qualquer propósito em tal. Não há a promessa da satisfação dos seus desejos carnais, e como tal ele tem todo o tempo do mundo. A parte complicada já passara, e agora nada o impedia de ir descansar, excepto talvez a sua própria vontade.
Ou o par de homens de mau aspecto a ameaçarem uma rapariga no meio do seu caminho. Está ainda a uns vinte metros do trio semi-oculto pela escuridão. Dois homens a ameaçarem uma rapariga indefesa. Tão cansado... mas esta não é a cidade que ele quer para si. Não, na sua cidade uma miúda indefesa pode bem passear as 4 da manhã pelas ruas desertas sem ter que temer dois idiotas. E apesar de esta estar ainda longe de ser a cidade que pretende, Jace não vai permitir aqueles dois mancharem a imagem da sua cidade perfeita, não a sua frente, não arrastando uma rapariga inocente. Aproxima-se deles silenciosamente, sem despertar a atenção deles até estar a pouco mais de dois metros de distância das costas dos dois indivíduos. O tempo não é muito para observar o trio, apesar de a adrenalina ter acordado todas as terminações nervosas do seu corpo de uma forma que cafeína nenhuma alguma vez conseguiria.
Já vira aquela miúda antes. Uma das raparigas do clube. Lembra-se vagamente de ter sido apresentado a ela semanas antes, de saber o seu nome. Algo começado com um V. Não sabia mais nada. A face dela estava lívida, o medo tomara conta dela. Encostada a uma parede, os dois homens cortando-lhe a possibilidade de correr. Jace nem se preocupa em analisar os rufias. Não interessa. Precisa agir antes que algo de mal aconteça. Está próximo que chegue, a menos de dois metros das costas de ambos. Precisa de virar a atenção deles para si, dar à miuda a oportunidade de fugir enquanto ele os retem.
- Hey! A morcega está sob a minha protecção. Pirem-se.
Obviamente que ele não espera ser obedecido, não sem alguma persuasão envolvida, provavelmente sob a forma de algum tipo de violência. Os dois assaltantes viram-se para ele, apanhados de surpresa. Por momentos temem ter sido encurralados por um grupo que lhes pudesse causar problemas, mas ao depararem-se de frente com uma única pessoa, a figura magra de Jace a sua frente, descontraíram. Que mal poderia aquele ser esguio fazer-lhes? Um deles solta uma gargalhada, aponta a faca na direcção de Jace, demasiado longe para ser mais que um gesto de ameaça, uma tentativa de intimidação, que Jace percebe bem pelo que é, sem um perigo imediato envolvido.
- E quem te protege a ti, miúdo?
A voz grave tem um tom meio sádico mal disfarçado. Jace olha ambos, tirando-lhes as medidas dos pés à cabeça. Um deles, o que o interpelara, deve estar perto dos trinta anos, branco, os dentes da frente podres, tornando o seu sorriso bastante desagradável à vista. O outro deve ser da idade de Jace, talvez um ano mais velho. 21 anos no máximo dos máximos. Negro, face redonda, olhos grandes, castanhos que fitam Jace com uma curiosidade enorme, aliada a uma certa surpresa.
- Proteger-me de quem? Não vejo nenhuma ameaça.
- 'Tás a gozar comigo, lingrinhas? Acho que te vou desfazer as trombas, e depois volto a tratar da tua morcega. Não te preocupes, eu deixo-te consciente para assistires.
O meio sorriso do homem passou a um esgar enegrecido, de visível satisfação, saboreando a promessa de violência gratuita, esperando efeitos que não apareceram na figura a sua frente.
Jace vira-se para o mais novo dos dois, esticando o braço esquerdo, apontando para ele com o indicador.
- Tu! Tu viste-me há três semanas atrás, na vossa rua. Recordas-te?
O ar pensativo do rapaz negro torna-se obvio na sua face. Sim, ele recordava-se. E a recordação era viva o suficiente para o deixar desconfortável.
- Man, esquece isto. A miúda não vale a pena, não quando para lhe chegar aos bolsos é preciso passar por ele.
- 'Tás a brincar? É só um puto.
- Man, ele desfez as trombas de quatro gajos na rua onde eu costumo estar a noite, bem a minha frente. Só porque um deles apalpou a miúda com quem ele estava a sair de um bar.
- Ele pode desfazer a cara de quantos bêbados queira, a mim não me mete medo. Anda cá rapaz. Mostra-me o que vales vá.
O sorriso de Jace foi a única resposta que este lhe resolveu dar, condizendo com o sorriso do homem que a sua frente empunhava uma faca na sua direcção. Jace está finalmente acordado. Completamente acordado, como se tivesse agora acordado de uma rejuvenescedora sesta. Rufias nas ruas da sua cidade não seriam tolerados, e Jace sabe bem que não pode dizer nada que convença o homem a sua frente a desistir da ideia de o esmagar, mas resolve atirar mais umas achas para a fogueira. As palavras do seu mestre repetidas na sua mente: "As emoções do teu oponente são uma arma tão poderosa quanto a kusarigamma que manejas. Aprende a usa-las e ganharás qualquer luta."
- Verme! Cala o bico, guarda a faquinha de esfolar coelhos e acata as ordens do teu General. Essa miúda está sob a minha protecção. Os morcegos estão sob a minha protecção. Guarda a faca, dá meia volta e vai embora, ou tiro-a eu das tuas mãos e faço-te arrepender pela tua insolência.
- A quem 'tás tu a chamar verme?!
Funcionara. Conseguira uma semente de fúria. Apenas umas gotas e esta vai desabrochar, cegar o seu oponente. Jace sabe perfeitamente que num combate justo, ele perde no momento em que apanhar um soco em cheio do seu oponente. Mas Jace está neste momento no meio do tapete no dojo, a fazer a sua saudação inicial. O próximo insulto é a sua venia de inicio, e depois será o fim.
- Sabes, verme? Estava a pensar puxar a minha kusarigama, arrancar-te a faca, e apagar-te da consciencia com a outra ponta dela. Mas... não. Vermes como tu não merecem a honra de sentir a minha arma. Anda. Apetece-me sujar as mãos.
Não há resposta verbal. O homem investe contra Jace, faca estendida a frente, com a intenção de empalar aquele fala-barato daquele miúdo ranhoso, de lhe fazer provar o seu próprio sangue. Não espera o ar neutro deste, não espera ver a lamina da sua faca ser evitada por milímetros, o ombro de Jace a desviar-se do golpe mal apontado pela sua visão toldada de raiva. Menos ainda espera encontrar no caminho do seu pé a biqueira de aço da bota de Jace, imóvel, cravada ao chão, sentir os dedos do seu pé esmagarem-se no aço, o brusco impulso virado dele virado contra si mesmo, a faca a ser largada quando as suas mãos, por reflexo travam a sua queda caindo no alcatrão velho, a pele grossa delas rasgadas pelo toque aspero do pavimento da rua. Desorientado, levanta-se, grunhindo de dor e frustração. Quer esmagar aquele pirralho, e vai fazê-lo com as suas próprias mãos, se assim tem que ser.
Torna a correr na direcção do fedelho, mãos abertas pronto a agarra-lo e acabar com a brincadeira de se esquivar de uma vez. Uma mão naquela blusa e um soco no nariz. É quanto basta. Ele sabe que sim. O fedelho não tem cara para levar um murro de um homem a sério. Anos de ginásio e de brigas de rua provaram isso inúmeras vezes com fedelhos da laia dele, que pensam que sabem tudo porque veem filmes de artes marciais.
Jace observa o inicio da corrida. O tempo pára enquanto a sua cabeça mede as distancias. Entre o impulso e os três passos que Jace dera para trás, havia agora quase cinco metros entre ambos. As mãos de Jace mexem-se para a sua cintura, pousando nesta quase um segundo, Jace estende o braço direito num arco ao lado do corpo.
O rufia sente algo a bater-lhe na perna, qualquer coisa a enrolar-se em volta dos seus tornozelos, e desta vez o reflexo não foi rápido o suficiente para evitar que a sua cara fosse raspar no alcatrão. Atordoado durante momentos...
Momentos bastantes para que a próxima coisa que sente é uma sola de borracha na nuca, o pé de Jace pousado sobre o seu pescoço, forçando a sua cara a esborrachar-se no pavimento com a pressão. É a voz calma e neutra, mais que estar no chão indefeso, preso, à mercê de um miúdo, que mais o irrita.
- O teu amigo avisou-te. Não deves ter reparado, mas ele não mexeu um músculo para te ajudar. Ele é um rapaz esperto. Hei-de encontra-lo um dia destes. Gosto de pessoas que pensam. Bestas como tu, meu amigo, não me servem para nada. Já agora, imagino que para ti não faça muita diferença, mas, eu gosto de explicar.
Jace sorri, aplicando um pouco mais de pressão no pé.
- Eu disse-te, correctamente, que não eras merecedor da minha kusarigamma. E foi verdade. Essa está enrolada ao meu braço direito, como sempre esteve. O meu querido cinto, como muitos ironicamente lhe chamam, é uma mangarikusari. É uma arma de arremesso. Serve, como deves ter percebido, para imobilizar bestas acéfalas que resolvem correr na direcção do seu General, em vez de se ajoelharem e pedirem perdão por se terem atrevido a tocar num dos seus protegidos. Eu devia acabar com a tua raça, sabes? Mereces isso só por ter causado o transtorno que causaste a uma rapariga. Mas não o vou fazer. Sabes porquê?
Jace pausa, aguardando resposta, chegando a aliviar um pouco a pressão. Torna a calcar com mais força o pescoço do homem.
- Fiz uma pergunta, verme.
- Não sei.
Jace abusa da pressão de seguida, o homem forçado a inalar com o nariz esborrachado no alcatrão, arrastando poeira para o nariz. Jace alivia um pouco a força com que o segura, no entanto, este pequeno espectáculo foi o suficiente para passar a sua mensagem.
- Repete depois de mim: Não sei, meu General.
Jace limita-se a mexer minimamente o pé quando a resposta prontamente lhe é apresentada.
- Não sei, meu General.
- Começas a aprender. Vais mostrar uma mensagem. Tu, morcega.
A rapariga está em choque, observando e obedecendo em piloto automático, a sua atenção presa nele desde que o vira a esgueirar-se por trás dos seus assaltantes momentos atrás.
- Trás-me a faca que este desajeitado deixou cair, por favor.
Ela demora uns momentos a processar o pedido, mas acaba por aceder, entregando a faca na mão de Jace.
Jace rasga a camisa do homem com a faca. E de seguida começa a rasgar as costas deste, em golpes rasos, precisos. "Obedecerei ao General" ficou gravado em letras grandes, ocupando as costas do homem por completo, os golpes fundos o suficiente para garantir que deixariam cicatriz visível e palpável, mas efectuados de forma a garantir que não causava danos de maior além daquilo que pretendia escarificar.
Acabada a mensagem, Jace vira-se para o rapaz negro, também ele em choque.
- Trata deste idiota. Vê se escolhes melhor as companhias. Terça-feira, está à porta do bar as 4 da tarde.
- Que bar?
- Que bar? Onde estás sempre, no bairro alto, na vossa rua. Vou falar contigo. Tenho uma proposta para ti. Interessado em ouvir-me?
- Sim, estou.
- Sim, estou...?
O tom de Jace fora suficiente para passar a mensagem.
- Sim, estou, meu General.
Jace sorri ao ouvir estas palavras.
- Como te chamas?
- Caio.
- Limpa o lixo por favor Caio. Voltamos a encontrar-nos em breve, agora tenho que garantir que levo esta miúda a casa.
Jace finalmente liberta o homem. A vontade deste encontra-se quebrada. Não tem qualquer intenção de dar sinal até que aquela figura estranha desapareça dos seus arredores.
- Caio.
- Sim, General?
- Eu estava a falar a sério. Os morcegos estão sob a minha protecção. Tu também. Espalha a palavra.
- Com certeza General.
Algo naquela figura inspirava não só um certo medo, como um certo grau de respeito. Tratara a miúda e Caio de forma cortês, no entanto não hesitara em desfazer a oposição. Caio já o vira antes. Estava curioso com a suposta proposta.
Jace acompanhado da rapariga saem do beco, seguindo o caminho que Jace pretendera seguir antes da interrupção.
Caio tirou a carteira do bolso do seu colega daquela noite, tirou o dinheiro, e seguiu na direcção contrária.
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