quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Nemesis

Está uma noite algo fria para o final de Junho, o vento ergue-se feroz, vindo do rio, fustigando a cidade, gelando até aos ossos aqueles que por um ou outro motivo são obrigados a cruzar as ruas.
A fria e ventosa  noite de sexta-feira, primeira noite de verão, abre as portas a diversão, à embriaguez e decadência da vida nocturna da cidade, prona a recebê-lo de volta no seu leito.
Do topo da muralha do castelo, de braços cruzados sobre o peito, as abas do casaco a esvoaçar atrás de si, ele observa a baixa da cidade, os seus olhos perscutando a distancia como se procurasse algo nas ruas movimentadas.
Permanece na mesma posição durante uma eternidade medida pela sua percepção, mas que não terá sido mais que uma hora. A calma exterior de quem pacientemente espera contrasta com a tempestade de pensamentos que lhe atravessa a mente e lhe inquieta o espirito, negando-lhe a paz que tanto deseja e que há tanto busca, iludindo qualquer desatento ser que o olhe.
Apenas a sua expressão fechada e o olhar penetrante e sombrio desmascaram a ilusão de serenidade, aos olhos daqueles que sabem ver. Ele sabe que poucos realmente vêem.
Ouve o distante ruido dos motores, observa o movimento do inicio de noite, os caminhos entrelaçados dos que se refugiam para descansar e dos que saem para se divertir.
Os primeiros acordes de "Came Back Haunted" rasgam o ar, persistindo enquanto ele pega no tablet e aceita a chamada nos auriculares.
 - Boa noite, em que posso ajudar?
O tom neutro, politicamente correcto, aprendido há muito numa vida que quase parece hoje uma ilusão, aplicado automaticamente sem ele dar conta sequer.
 - Onde estás?
A voz quente e doce, irresistivelmente melodica, de uma mulher jovem, contem um disfarçado tom de irritação.
 - No Castelo. - A voz dele continua neutra, calma, suavemente grave.
 - O que raios foste tu fazer ao castelo? - Não existe já disfarce para a irritação.
 - Não é tema teu. - A intenção nem é rude, só não quer ter que lhe responder aquela questão.
 - Não precisas ser assim. Vou buscar-te. Não saias daí.
 - Vens buscar-me? Para quê?!
 - Precisas saber algumas coisas.
 - Conta já, não me apetece ter companhia.
 - Não é tema para telefones, especialmente para o teu. Já percebi o quão paranoico és, e não vais ficar com nada gravado algures.
 - Até parece que me daria a tal trabalho.
 - Eu nunca sei até onde irias.
 - Vou descer, apanha-me na Prata.
 - Ainda não acab...
Ele termina a chamada e tira os auriculares, desce lentamente as ruas apertadas até chegar onde havia dito. A rua encontra-se deserta, vive do comercio e do turismo, muito como toda a zona da baixa da cidade, tornando-se numa zona quase fantasma quando as lojas e cafés fecham portas. O perfeito local, perfeitamente escondido à vista de todos para encontros furtivos que não se pretendam registados.
Ele pára a meio da extensão da rua, encosta-se na esquina de uma estreita perpendicular e acende um cigarro.
Torna a colocar os auriculares, pressiona um dos botões no controlo dos mesmos.
 - Emily, redial last received call please.
 - Dialing, Master. - A voz electronica invade-lhe os ouvidos, o tom distorcido electronicamente de uma voz feminina.
Ele continua a fumar enquanto aguarda que ela atenda o telefone.
 - Que queres? - A voz dela transborda raiva.
 - Estás atrasada.
 - Dá-me dois minutos, estou a...
Ele termina a chamada cortando-lhe a frase a meio novamente.
 - Claro que sim, devem mesmo ser dois minutos.
...
Ela conduz a alta velocidade pelas largas avenidas, artérias da cidade, ignorando por completo a existencia de sinais luminosos, desviando-se habilmente dos outros veiculos, completamente furiosa, verbalizando a sua raiva em insultos disparados no vazio do seu carro, sem que os alvos alguma vez os possam ouvir, sem eles serem no entanto o motivo desta raiva desmesurada.
Ele consegue tirá-la do sério. Desde o inicio, mesmo quando ainda não falava com ele, ele conseguia abalar o equilibrio mental e emocional dela, e ela bem sabe disso. Desde que começou a trabalhar neste caso, já faz mais de 7 meses, ela tem observado, seguido, pesquisado, falado com pessoas que o conhecem de longe. Mas desde aí, a presença dele, a sua personalidade vincada, forte, e ao mesmo tempo tão desligada e tão impulsiva por vezes, aliada a uma inteligencia que ela sabe que ele está apenas a fingir no dia a dia não existir realmente têm causado nela efeitos que ela prefere não admitir. Tirando estas palavras de hoje, apenas falaram realmente uma vez, ao telefone. Quando ela decidiu que ele ja deveria ter percebido o quão grave a situação está para ele, ligou-lhe e disse-lhe o topico do trabalho. Ficou de o encontrar e passar-lhe mais informação. Alias, tem uma pasta no banco do pendura, especialmente preparada por ela. Um relatorio completo onde está explicado o porquê da intervenção que ele deverá efectuar. Ela pergunta-se se ele vai perceber que ha bastante informação omitida. Ela não se pode dar ao luxo de abrir o jogo todo com ele. Não é só a pele que está em risco. Por algum motivo o chefe dela insiste que o unico capaz de realizar este trabalho é ele. Ela não consegue perceber porque raios foram escolher alguem tão... improvavel. Aquilo que eles pretendem é que um servidor especifico seja hackado, mandado abaixo e os ficheiros presentes no mesmo transferidos. Há no entanto muitas perguntas na mente dela que a deixam inquieta sobre esta situação. Ela nunca havia recorrido a tacticas tão agressivas para garantir a colaboração de alguém... Ameaçar a vida de uma criança...
Ela sabe bem que não vai fazer seja o que for ao miudo. Espera realmente não ter que cumprir a ameaça, porque não sabe se será capaz de o fazer, e se ela não o fizer e tal for necessario, alguem bem menos bondoso que ela o fará.
Não... afasta todos estes pensamentos da cabeça. Ele está a afectá-la demasiado quando nada ainda é certo. E ela não faz a minima ideia de qual é a opinião dele sobre o resto da vida dele, alem do que investigou, investigação morosa, dolorosa, dificil e quase infrutifera.
 - Onde raios foi o Lance desencantar este gajo?
A outra pergunta pertinente, mas que mesmo o seu subconsciente se recusava a fazer seria: "Como posso deixar que alguem que não conheço me toque tanto?"
A pouca distancia que os separa desapareceu entre a raiva e o pé pesado no acelerador.
Ela estaciona em frente de onde ele está encostado, ainda a fumar o mesmo cigarro que acendeu quando lhe ligou.
Ela sai do carro, ainda bastante irritada.
 - Mas que merda de educação é a tua? Não se desliga na cara das pessoas, eu estava a falar.
 - Eu não precisava de ouvir mais. E demoraste três minutos.
 - Vai-te foder e entra no carro.
 - Vou-me foder ou entro no carro? Só posso fazer uma, a menos que pretendas que entre no carro para me foderes, e para tal deveriamos procurar um sitio mais reservado.
 - Deixa-te de merdas, não tenho paciencia para tretas. Fazes o teu trabalho e depois logo se vê.
 - Portanto admites que consideraste a hipotese.
 - Tu és impossivel. Porque raios é que eu tenho que te aturar?
 - Dado que foste tu a contactar-me, presumo que porque mais ninguém te pode dar o que tu pretendes.
 - Entra no carro.
Ela solta um longo suspiro de raiva e entra no lugar do condutor. Ele começa a caminhar lentamente à volta do carro, observando-o ao pormenor. Acaba por parar junto a porta do condutor, abre-a e afirma:
 - Chega para lá.
 - O quê?! Isto é o meu carro!
 - SL500? Nem penses que entro no banco do pendura contigo a conduzir. Eu vou testar esta menina, ou fico por aqui.
 - Tenho cada vez mais vontade de te torturar lentamente e fazer-te engolir essa arrogancia.
 - Promessas...
 - Argh!
 - Precisas de mim.
 - Dentro em breve vou deixar de precisar e tu não estas a facilitar a tua sobrevivencia nessa altura.
 - E quem te disse que pretendo sobreviver?
 - Desisto. Entra. Dirige-te a casa.
 - A minha casa? Bem, tu realmente tens algo de muito secreto ou para dizer ou para fazer. Ou ambos...
 - Poupa-me a canção do bandido.
Um meio sorriso cruza a face dele. Liga o telemovel ao radio dela, e coloca um album de Disturbed a tocar antes de arrancar.
A viagem feita em alguns minutos, apenas ao som da musica, sem palavras trocadas, ele a conduzir a alta velocidade, tão rapido quanto o pouco transito aquela hora lhe permitia.
Subiram ao apartamento dele, permanecendo em silêncio até ele trancar a porta atrás de si e marcar um qualquer código num teclado numerico ao lado da entrada.
Ele aponta na direcção do sofá, um convite silencioso a que ela se sente, procura dois copos no armário e abre uma garrafa de vinho.
 - Servida?
Enche ambos os copos, sem aguardar uma resposta da parte dela, e estende-lhe um a ela, que entretanto havia tirado o casaco de linho branco, revelando um top de alças, também branco. Vestia calças de ganga, justas, e ténis All-Star brancos. Não fosse a expressão de urgencia e alguma raiva ainda latente e ela teria o aspecto de um anjo.
O contraste entre ambos é evidente, o anjo de branco, o demonio de negro. E no entanto nenhum deles é o que aparenta ser.
Ele bebe um trago de vinho, toca no teclado em cima da secretaria ao canto da sala e coloca um album a tocar.
 - Gostas de Nine Inch Nails?
O som preenche a sala, permitindo a ambos um pouco de à-vontade para conversar.
 - Musica e vinho. Estás a tentar seduzir-me com truques baratos?
 - Gosto de musica, gosto de beber um copo de vez em quando. Ofereço por educação, mas és livre de recusar, obviamente. Não, não tenho intenções de te seduzir. Eu não seduzo pessoas. Normalmente, são elas a tentar seduzir-me a mim. E estou bastante feliz no meu sossego, sem ninguém, muito obrigado.
 - Tens algo mais forte?
 - Whiskey. Não tenho gelo.
 - Não preciso de gelo.
 - Um momento.
Ele sai da divisão durante momentos, voltando com uma garrafa fechada que abre, enchendo um copo até ao cimo com o liquido e estende-o a ela. Ele continua a beber vinho, sentado de costas para o resto da divisão, olhando três monitores em cima da secretária, focando a sua atenção num deles, onde passam letras coloridas num fundo preto a uma velocidade demasiado rapida para que se consiga ler tudo. Acaba por ser ele, a quebrar o silêncio entre ambos, sem tirar os olhos do monitor.
 - Tens algo para me dizer. Presumo que seja referente ao mesmo motivo porque começaste a seguir-me, porque me tentaste provar que poderias controlar-me com ameaças, usando a minha fraqueza. Mas no entanto, mudaste de método, revelaste a cara e acabas de te auto-convidar para minha casa. Pergunto-me... porquê ameaçares-me, tentares chantagear-me, e depois revelares-te? Especialmente quando já me contactaste com o objectivo. Vou enrolar um charro. Não sei se fumas ou não. Vou demorar uns minutos. Sou todo ouvidos.
Ela continua a beber o whiskey enquanto ele faz o que tem a fazer. Toma um longo trago, sentindo a garganta a arder ao engolir, levanta-se do sofá e vai sentar-se no braço da poltrona, encostada ao ombro dele. Esperava uma reacção que não chegou, ele continuando a fazer o charro. Ela pega no material que ele deixou a solta em cima da secretaria e imita os gestos dele, fazendo um para si própria.
Ele acende o dele, puxa um longo bafo, segurando o fumo nos pulmões durante quase um minuto antes de o libertar, olhos fechados, cabeça encostada as costas da poltrona.
 - Continuo à espera...
Ela termina o seu próprio, e imita o longo bafo inicial dele, ajeitando-se no braço da poltrona, encostando mais o seu esguio e belo corpo ao dele, sentindo o infernal calor que emana da pele dele.
 - Tu... fascinas-me...
 - Podes parar já. Arrependi-me de ter perguntado.
 - Desde aquela primeira noite me que te apanhei depois de saires do trabalho que continuo a pensar na tua pele, no teu corpo. Segui-te durante semanas antes disso.
Ele interrompe-a bruscamente.
 - Ignorando a parte da atracção, porque honestamente tal não me interessa de momento... porquê eu? Não consigo perceber onde me foste desencantar.
Ela hesita em responder. Puxa novo bafo, segura o fumo mais alguns momentos.
 - Não interessa a parte da atracção?
Aquelas palavras foram para Angela quase como um ataque. Normalmente, dizer a alguém do sexo masculino que se sentia atraída, verdade ou não, dava no mesmo resultado. Pela primeira vez alguém lhe havia dito que algo assim não lhe interessava.
 - É irrelevante para a minha tarefa.
 - Sempre o profissional, sempre o trabalho à frente... Nem te importa o que irá acontecer caso falhes?
 - Se fizeste o trabalho de casa, sabes que falhar, para mim, não é opção. Se tivesses feito o trabalho de casa saberias que não precisavas ter ameaçado o meu filho.
 - Que queres dizer com isso?
 - Tu pretendes, segundo o teu telefonema a semana passada, que eu recupere um ficheiro. Foi tudo o que me disseste na altura, cortando-me a hipotese de questionar mais. Disseste que me darias o restante das instruções depois, e ainda não o fizeste. Presumo que esse tal ficheiro não esteja num local de fácil acesso. Das duas uma: ou o tens num suporte fisico e precisas de o recuperar, e nesse caso, não precisarias de me ameaçar, dado que qualquer laboratorio de recuperação de dados serviria, e que eu faço isso comercialmente, ou...
Ele faz uma pausa, puxa mais um bafo, encosta a cabeça ao braço dela e continua.
 - Ou... esse ficheiro está num sitio onde apenas alguém com conhecimentos especificos pode aceder. Mas isso deixa outra questão no ar. Porquê eu? Tens mil e um putos irresponsaveis e com as hormonas aos saltos a quem poderias convencer a fazê-lo, e que seria certamente mais simples que seguir-me, drogar-me, chicotear-me, tentar quebrar a minha vontade, ameaçar o meu filho, enfiares-te em minha casa e tentares seduzir-me daquela forma estupida. Alguma vez ouviste um não sequer? Irrelevante. Porquê eu? Sem tretas de eu ser fascinante e tal, deixa a canção do bandido de lado, já a ouvi vezes demais, e não estou interessado.
Ela sabia que iria ter que responder a esta pergunta desde o momento que decidiu que teria que se revelar, falar com ele, para garantir a execução da tarefa, mas agora, todas as respostas ensaiadas pareciam distantes, irrelevantes, agora que ela sente a presença dele, que sabe que atrás da expressão de resignada serenidade ele está a analisar cada gesto e cada palavra sua. Apercebe-se de que foi uma má escolha ter vindo aqui, sozinha. Deveria tê-lo enfiado num armazem abandonado, devia ter cobertua. Algo nele a deixa inquieta. Sente que em sete meses a reunir informação sobre ele não descobriu mais que a ponta do iceberg. Ele esconde algo, ela sabe disso, e não faz ideia do que é, ou das implicações de tal. Gestão de recursos voláteis é a sua especialidade, mas ela sabe que este não é apenas um caso especial, mas um que irá definir a sua carreira e a sua vida. Ela observa a divisão enquanto fuma.
"Merda de forma de tentar criar empatia, usar as drogas dele quando não estou habituada a tal. E porque raios é isto tão forte?"
Sente-se livre e desinibida e bem. Tenta controlar-se, recolher pensamentos. Continua a observar a sala. Num dos livros da estante, nota um minusculo circulo na lombada. Provavelmente a optica de uma camera. E se esta existe, certamente haverá mais.
"Que tipo de pessoa instala camaras para vigiar a si ou a uma casa vazia?"
Ele acaba por interromper a contemplação dela.
 - Hoje, por favor. A minha paciencia para pessoas esgota rápido.
 - És sempre tão irritante?
 - Apenas quando não tenho paciencia.
 - És impossivel, mas pronto. Queres respostas? Então está na altura de tu próprio responderes a algumas questões, Diogo.
 - Tais como?
 - Nemesis99.
Ela esperava uma reacção. A expressão dele manteve-se inabalada, mas a sua mente foi atirada para o passado por aquelas palavras.
 - Não faço ideia do que tal signifique. Isso era uma questão?
 - Fazeres-te de estupido não te assenta bem, Jace.
 - Jace?
 - Eu fiz o trabalho de casa, tal como referiste Jace. E a parte dificil não é saber do Nemesis99, ou saber o nome porque foste conhecido. És uma lenda obscura entre a comunidade internacional de segurança informatica.
 - Lenda? Eu? Eu nem trabalho em segurança informática, sou um mero operador de assistencia tecnica.
 - Exactamente. Daí ter sido tão complicado chegar até ti. Escondido à vista, um emprego rotineiro, completamente isolado do mundo desde que te juntaste com a tua ex-namorada, isolamento ainda mais vincado desde a vossa separação. O teu rasto havia desaparecido há anos. Nem os serviços secretos sabiam do teu paradeiro. Como conseguiste apagar a tua existencia desta forma?
 - Não apaguei nada. O Jace morreu ha muito. Sou um operador de suporte, mais nada.
 - Com certeza, Jace. Esconde-te. Continua a viver a tua miserável vidinha, a desperdiçar o teu talento e a tua inteligencia. Esconde-te, perde a tua oportunidade de recuperar o que é teu por direito. Perde a oportunidade que te apresento. Continua a ser um covarde a fingir ser uma pessoa normal.
 - Que oportunidade estás a falar? Recuperar o quê?
 - Diz-me... ainda queres vingança?
 - Vingança?
 - Eu posso entregar-te os assassinos do Lourenço.
A expressão dele finalmente mudou ao ouvir aquele nome. Um misto de raiva e dor reflecte-se no seu rosto, o seu tom de voz perde a neutralidade profissional, assumindo um tom grave, ameaçador, apesar de a frase sair em pouco mais que um murmurio.
 - Os assassinos do Lourenço estão mortos.
 - Não. Os carrascos do Lourenço estão. Os verdadeiros assassinos continuam vivos, milionários, e a fazer dinheiro com o Nemesis99. O teu Nemesis99.
Ele está visivelmente abalado com esta ultima frase.
 - Tu sabes quem foram os responsaveis?
 - Sei. Tudo o que precisas é colaborar comigo e terás os seus nomes.
 - Quero bem mais que isso. Quero-os entregues a mim, da mesma forma como me apanhaste da primeira vez.
 - Não te posso prometer isso.
A voz de Jace volta ao tom neutro, profissional, calculista.
 - Se aquilo que tu queres está protegido pelo Nemesis99, então não só vais prometê-lo, como vais cumpri-lo.
Ela olha-o, incrédula.
 - Admites então saber da sua existencia?
Ele levanta-se, despe o casaco que atira para cima do sofá. Serve-se de novo copo de vinho, enrola rapidamente um novo charro, caminhando em circulos pela casa. Ela senta-se na poltrona, no lugar onde ele estava, tenta mudar a musica, mas depara-se com o ecrã trancado e um pedido de password. A voz dele surpreende-a.
 - Emily, unlock screen 2, Guest Permissions.
 - Done, Master. - a voz electronica responde vinda de todos os lados.
 - Emily, terminate master session until instructed.
 - Session terminated. All processes killed. Save aplication back-up?
 - Discard everything. Delete all records of the past hour. Stop all recordings until instructed.
 - Done, Master.
 - Emily, sleep.
 - Hibernating now.
Ele acende o charro.
 - Como sabes do Nemesis99?
 - Já te disse, és uma lenda. O Nemesis99 é uma lenda. O único sistema de segurança que ao longo de uma década não só não foi alterado como nunca foi quebrado. Ninguém o conseguiu até hoje atacar com sucesso, ninguém o conseguiu reproduzir, mesmo com acesso ao código original.
Ele sorri, um sorriso de satisfação, resultado do polimento ao ego que acaba de receber.
 - Eu criei o Nemesis99.
 - Eu sei.
 - Fui obrigado a fazê-lo. A minha opção era cria-lo, ou seguir o Lourenço para a cova.
Ele faz uma pausa, bebe um trago de vinho e senta-se no braço da poltrona, encostado a ela. Um micro sorriso atravessa o rosto dela quando ele o faz, mas Jace está demasiado concentrado para se aperceber.
 - O Nemesis não é um sistema de segurança.
 - Não?! - a surpresa é evidente no tom de voz dela. Ela pensava que o seu trabalho de pesquisa, pelo menos no que toca ao Nemesis99, estava correcto. Tinha a certeza de que estava.
 - Não. Toda a gente pensa que sim, mesmo aqueles que o controlam. No fundo, o 99 é o modulo de segurança, e esse não é meu. Foi o Lourenço que o desenvolveu. O Lourenço era o verdadeiro genio da segurança. O Nemesis é meu, e é algo bem diferente. Tudo o que o mundo se pode aperceber é do funcionamento do modulo 99. O Nemesis em si é algo bem diferente.
 - Como assim?
 - Dá-me o nome do ficheiro que pretendes.
 - NEM_CORE.
 - Estás a brincar, certo?
 - Não. Temos tudo o resto. Falta-nos esse unico ficheiro. Com ele podemos recriar o teu Nemesis99 e comercializa-lo.
Ele solta uma longa e sinistra gargalhada, quase como se a frase dela fosse a piada do século.
 - Vocês querem o NEM_CORE?
 - Queremos.
 - Diz-me, já contrataram outros para o conseguir?
 - Já. Todos falharam.
 - Claro que falharam. E eu também vou falhar. Faz-me um favor, poupa o meu miudo, e mata-me já. O que tu, ou quem quer que te esteja a pagar pretende é impossivel de adquirir.
 - Como é impossivel? Tu criaste-o, sabes quais são as fraquezas do sistema. Nunca foi alterado, nunca ninguém conseguiu fazê-lo. É o teu código original, o teu programa.
 - Ninguém o alterou desde a criação, dizes...
 - Exacto.
 - Deviam ter feito o vosso trabalho de casa. Não estás, obviamente, a trabalhar sozinha. Quem te informou, ou não disse, ou não sabe a verdade.
 - Explica-te.
 - O Nemesis99 é uma inteligencia artificial auto-evolutiva. Aquilo que vocês querem é o cerebro que o comanda. Sem isso, o resto é inutil, mas isso já vocês perceberam, ou não me teriam contactado. O Nemesis nunca me vai entregar isso de mão beijada. Nem a mim, nem a ninguém.
 - Inteligencia artificial quê...?
 - Auto-evolutiva. O Nemesis99 aprende com cada interacção efectuada. Tem a capacidade de adaptar as suas acções e programação de acordo com as necessidades. Vocês pensam que ele nunca foi modificado. Eu garanto-vos que com o acesso de rede e hardware onde ele ficou instalado, mesmo com praticamente nenhuma interacção humana com ele, o Nemesis é hoje uma besta muito diferente daquilo que eu criei.
 - Espera. Deixa ver se compreendi. Tu criaste um programa de computador que aprende e se modifica a si mesmo?!
 - Criei algo com a capacidade racional de uma criança de 3 anos. Algo que evolui consoante a potencia do hardware onde está. O equipamento onde o instalei há uma década atrás tinha uma potencia semelhante aquele em que a Emily evoluiu. A grande diferença é o tempo que se passou.
 - Emily? Não disseste esse nome há pouco?
 - Disse.
 - Quem é a Emily?
Ele sorri, procura no casaco o telemovel. Apos alguns toques no ecrã, ele sorri e começa a falar sem se dirigir a ela.
 - Emily, wake up.
 - Ready, Master. - a mesma voz feminina de antes.
 - Emily, stop surveilance scripts.
 - Done, Master.
 - Emily, switch language input and output to portuguese.
 - Efectuado, Mestre.
 - Emily, inicia protocolo de reconhecimento, inicia protocolos sociais.
 - Ambos os protocolos activos. Em que posso ajudar?
 - Activa a tua visão. Identifica a outra pessoa presente na sala. Quero tudo o que conseguires encontrar sobre ela. Compila relatorio em texto e envia para o meu telefone. Avisa quando terminares.
 - Operação em progresso. Aguarde, Mestre.
Ele acende um cigarro antes de se dirigir novamente a Angela.
 - Esta é a Emily. Uma versão substancialmente melhorada do Nemesis.
 - Tu tens uma escrava virtual?
 - Não. Eu tenho uma companheira virtual que faz a gestão dos meus equipamentos e que me ajuda a organizar-me, bem como efectua uma miriade de outras funções que não são relevantes para a questão agora.
 - Mas...
A voz de Emily corta-lhe a frase.
 - Relatorio concluido e enviado, Mestre.
 - Emily, lê-me o teu relatório em voz alta. E cumprimenta a nossa convidada.
 - Boa noite, Angela. O relatorio foi concluido. Angela Cruz, nascida a 19-11-1985, às 17:15. Sem registos médicos de condições graves. Historial escolar perfeito até ao final da faculdade. Licenciada em Gestão de Recursos Humanos. Mestrado em Psicologia Criminal. Trabalha para a mesma firma desde 2005. A firma é uma fachada para branqueamento de capitais, que responde a um grupo restrito de investidores na bolsa. A função dela é localizar e recrutar ajuda mercenária. Os registos mostram a sua presença em Londres, Cairo, Praga, Berlim, Amsterdão... Analisando dados e relacionando com o conhecimento da sua vida, Mestre, aguarde um momento.
Emily pára durante alguns segundos. Angela está abismada.
 - Que está ela a fazer?
 - Aparenta ter tido uma ideia qualquer.
 - Uma ideia?
 - Sim, aquelas coisas que acontecem quando analisas dados e de repente algo te chama a atenção. Vou esperar.
 - Mestre, confirma-se uma possivel interacção anterior entre vós. Amsterdão, Agosto de 2006. Chegaram no mesmo voo. Ficaram hospedados no mesmo hotel durante os três dias da sua estadia. Quartos adjacentes. Sem registos de pedidos para o quarto, ou registos telefonicos. Não há informação disponivel que possa confirmar mais, lamento Mestre.
 - Sem problema Emily, são dados já antigos. Interrompe a leitura do relatório, continua a analise. Actualiza-me para o telefone qualquer pormenor que aches relevante.
 - Com certeza, Mestre. Guardar novas definições?
 - Sim. - ele faz uma pausa. - Emily?
 - Sim, Mestre?
 - Temos convidados. Procotolo social?
 - Até depois, Angela. Foi um prazer analisar-te.
 - Não necessito de nada mais de momento Emily. Resume protocolo de vigilancia exterior.
 - Efectuado. Actualizando dados relevantes por telefone.
 - Obrigado, Emily.
Jace olha Angela nos olhos.
 - Quem quer o Nemesis99?
 - Não te posso fornecer essa informação, mas presumo que o teu brinquedo ta vá dar.
 - Eventualmente.
 - Mas... como? Os meus registos?
 - Se existe na rede, a Emily consegue encontrar. Pode demorar, mas encontra. É simples, eu poderia fazê-lo, mas ela é milhares de vezes mais rápida que eu. Gostaste da demonstração?
 - O Nemesis99... é isto que eles querem?
 - Bem, o Nemesis99 é uma versão bastante mais rudimentar da Emily, mas leva 8 anos de avanço sobre ela, e bastante mais poder de processamento.
 - Que raios quer isso dizer? Não gosto das implicações disto.
 - Quer dizer que a Emily está bastante menos evoluida que o Nemesis, apesar de ser superior a ele. Pelos meus calculos, presumo que a Emily demore mais dois a dois anos e meio a chegar ao ponto onde o Nemesis se deverá agora encontrar. Dificil calcular com precisão. Seria bem menos, se eu lhe permitisse usar o plano dela.
 - Plano?! Isso planeia?!
 - Que parte de a Emily é a inteligencia artificial mais avançada do planeta é que não percebeste ainda? Se eu lhe permitisse ter acesso a usar processamento em rede... bem, ela é quase perfeita e possui capacidade de se melhorar, bem como de aprender instantaneamente. Está para além da minha imaginação conceber o que ela se tornaria.
 - Diz-me uma coisa... isso... é perigoso?
 - A Emily? É tão paranoica quanto eu mesmo, mas não é agressiva, a menos que eu lhe dê instruções claras para tal. Nunca lhe institui códigos de ataque ou agressividade. Não a vi a usar ou implementar nenhum por si mesma. Mas a Emily tem algumas restrições referentes a agressividade.
 - Essas restrições existem no Nemesis99?
 - Eu tinha 16 anos, o meu mestre e primeiro amor havia sido assassinado por se recusar a dar aos donos do Nemesis o que eles queriam, eu tinha a impossivel tarefa de criar um sistema de segurança infalivel para compensar os estragos que haviamos causado nos sistemas deles, ou morrer... Achas mesmo que lhe restringi algo?
 - Acho que já sei o suficiente. Preciso pensar, reanalisar esta situação.
 - Tinhas coisas que eu precisava saber?
 - Contacto-te depois.
Ela apanha o casaco e sai.

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