terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Sr Estranho II

Despertei no cadeirão, a lareira há muito apagada. Talvez fosse já manhã. Doía-me a cabeça, como se a apertassem com uma pressão insuportável. Na mesa ao meu lado o copo estava ainda cheio. Peguei nele e emborquei de um único trago todo o seu conteúdo, engolindo sofregamente, nem percebendo bem o sabor acre e férreo até o liquido ter desaparecido pela minha garganta abaixo, provocando-me náuseas, fazendo-me curvar sobre mim mesmo agarrado ao estômago, tentando minimizar o protesto do meu corpo ao tentar rejeitar o liquido morno que eu havia ingerido. Mas a indisposição passou rapidamente, o meu estômago acalmou momentos depois de começar a doer.
A dor de cabeça apenas intensificou, no entanto. Tentei levantar-me, sendo forçado a sentar-me de novo, as minhas pernas falhando sob o peso do meu corpo, vazias de sensação e sem qualquer capacidade de controlo real das mesmas, privadas do correcto fluxo de sangue, provavelmente por demasiado tempo na poltrona adormecido. Esfreguei-as com as mãos durante uns minutos e em seguida tentei de novo, desta vez sendo capaz de me manter em pé, mas não sem alguns protestos dos meus músculos, magoados da noite mal dormida. Caminhei, ou tropecei, até à cozinha, enchi um grande copo com água e bebi-o de seguida, tentando afogar a ressaca. Três meros copos não deviam causar um efeito tão destrutivo. Que raios havia eu bebido afinal?
Pela reacção adversa de há pouco, duvidava que o meu estômago fosse ficar muito feliz por receber comida, portanto resolvi explorar o andar de cima da mansão. Talvez conseguisse uma ou duas respostas. Algo simples, como onde estou, ou outra coisa pequena a que me pudesse agarrar.
Subi as escadas de madeira pesada, com um aspecto antigo, cobertas de uma passadeira presa aos degraus por barras do que aparentava ser cobre ou bronze, sob constantes rangidos de protesto a cada degrau que subia, protestos da casa ao sentir o seu sossego e paz perturbados por um estranho sem memória de si.
O topo das escadas terminava no inicio de um corredor com duas portas de cada lado, todas fechadas, pelo menos à primeira vista. Abri a primeira do lado esquerdo, revelando uma casa de banho bem cuidada, em tons de rosa, modesta mas agradável à vista apesar da escolha de cor. Mas dado que o que no meu sistema digestivo insistia em resmungar era o estômago, não os intestinos, rapidamente perdi o interesse na divisória e segui para a primeira porta do lado direito.
Do outro lado da mesma encontrava-se um pequeno escritório com uma secretária de madeira, grande e trabalhada, que deveria valer uma pequena fortuna para o comprador certo, com uma poltrona em pele semelhante à da biblioteca do piso inferior servindo-lhe de companheira. Em cima da secretária estavam espalhados vários livros, com ar de terem sido consultados recentemente, dois deles ainda abertos e com páginas marcadas por pequenos envelopes. Dirigi-me à poltrona e sentei-me. À minha frente a secretária parecia estar com todos os livros dispostos ao alcance dos braços, pelo menos para alguém da minha estatura. Ao meu lado direito havia uma série de pequenas gavetas, cinco no total, embutidas na estrutura da secretária. Comecei, meio por curiosidade, meio por tédio, a abri-las uma por uma, analisando os seus conteúdos.
A primeira continha duas facas de abrir envelopes, parecendo feitas de prata, com cabo em osso, e por baixo delas uma pilha de envelopes fechados, sem qualquer endereço escrito. Tirei um deles ao acaso. Estava fechado. Deveria abri-lo? Era o do fundo da pilha. Tirei-o para fora da gaveta, coloquei-o em cima do tampo da secretária e peguei uma das facas, usei-a para abrir o envelope. Dentro dele estava uma página manuscrita numa caligrafia difícil de perceber, como se escrita à pressa, como se a mente do autor fugisse e a mão corresse para conseguir acompanhar o ritmo do seu pensamento. Demorei a conseguir decifrar algumas das palavras, mas não foi demasiado complicado tirar uma ideia geral do texto, mesmo quando algumas palavras se tornavam indecifráveis na pressa da escrita.

"10 de Fevereiro de 2012.
A mudança correu bem, se bem que organizar todos os livros correctamente sozinho demorou-me os últimos dois dias, trabalho moroso e entediante, mas imensamente necessário para o normal fluxo da continuidade do meu trabalho.
Ainda irá demorar quase uma semana a ter disponível o laboratório e a cave. Fruto do secretismo necessário. Afinal de contas, a aquisição deste local deveu-se precisamente à minha necessidade de isolamento e de distancia de olhares demasiado curiosos. Os fins justificarão os meios. Por agora há trabalho a fazer."

Algo naquela curta mensagem me despertou a atenção. Talvez a mistura entre uma banal página de um normalíssimo diário e a menção de segredos por desvendar, ou talvez a minha mente a procura de uma resposta que não lhe interessava para nada, mas cuja pergunta poderia mantê-la ocupada e longe de outras perguntas mais relevantes mas igualmente sem resposta que pairavam no limiar da minha consciência.
Resolvi no momento abrir as restantes, tentar encadear aquela pilha de mais de 30 envelopes por ordem de data, tentar encontrar uma resposta qualquer. Demoraria quase uma hora a fazê-lo, e perderia mais duas a ler e reler cada um deles...
Realmente parecia ser um diário, mas um que levantava mais questões que aquelas a que respondia.

Olá?

Fico a olhar o pequeno rectângulo com a bola verde no topo seguida do teu nome, olho para baixo e bato com os dedos nas teclas formando um "olá" demasiado curto mas que se prende ali, naquela linha destinada a escrever a mensagem que quero que recebas do outro lado da cidade ou do mundo, confirmação que não precisas de que penso em ti.
Mas que te digo depois? Sigo a atabalhoada conversa de circunstancia? Nunca tive jeito para essas coisas. Mas não tenho assunto, tu tens a tua vida e seria inoportuno da minha parte bisbilhotar aqueles pormenores que mais gostava de saber, fazer as perguntas às quais não quero a resposta. Falar de mim? Podia fazê-lo. Ontem trabalhei. Cheguei a casa. Jantei. Dormi. Ante-ontem também. Amanhã também. Não me parece muito interessante de contar...
Encontrei o Necronomicon e voltei a falar a algumas pessoas que não via há anos. Mudei de visual. Sei que ias gostar de me ver assim, mesmo sem vires a ver-me com ele. Apanhei livros novos. Continuo a jogar às cartas. Parece-me tão... insípido.
E nestes pensamentos olho um olá escrito mas não enviado e pergunto-me se vale a pena enviá-lo sequer... Não irias responder, ocupada na tua vida, na tua rotina, na tua liberdade. Encontrarias um minuto, muito mais tarde para dizer "Desculpa, só vi agora." e seguirias a tua vida de consciência tranquila sem pensar duas vezes.
Ou então, pior cenário ainda, responderias e teria que inventar um qualquer motivo plausível para te estar a chatear, escondendo que o verdadeiro motivo é a saudade de ti e a ferida que não sarou nem vai jamais sarar que me faz buscar a única cura possível para ela, o único elixir miraculoso capaz de apagar de mim esta ferida de uma ausência eterna e irreparável, e teria que ter uma "conversa-normal-sobre-o-tempo-e-a-bola-e-as-greves..."
Odeio conversas normais.
Odeio não poder berrar a plenos pulmões a tempestade que me envolve a alma.
E no fundo nada odeio...

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Sr Estranho

A latejante e aguda dor na nuca acordou-me de um atormentado sono repleto de fugazes imagens de indescritíveis horrores e abomináveis sombras que me perseguiam por um qualquer pântano sem nome.
Levei a mão à nuca, sentindo o liquido morno que a cobria. Sangue. Apercebi-me ao olhar a minha mão, coberta daquele liquido vermelho vivo. Ferido. Como? Onde?
Não sabia, não conseguia recordar. Não conseguia lembrar-me de nada. Nome, idade, aspecto físico... sentia-me como se me tivessem roubado de mim mesmo. Afinal de contas, o que é um homem sem a sua memória? Sem saber de onde vim, como poderia saber para onde vou?
O meu instinto de sobrevivência sobrepôs-se, no entanto, a todas estas questões. Olhei finalmente em volta, tentando perceber onde estava.
Árvores. Arbustos. Um coelho que corria apressado na direcção de um monte de pedras onde provavelmente teria a sua toca, evocando na minha mente a frase "conejo estupido, conejo malo", vinda de algum ponto da minha mente. Nada disto ajudava. Acordei no meio de um bosque, sem memoria e com sangue a escorrer pela nuca. Doía só de tentar pensar na minha situação actual. O pânico de não saber como vim parar aqui começava a tomar conta de mim, a adrenalina a correr nas minhas veias, o instinto, aquele velho companheiro animal, o "bate ou foge" a tomar conta. Excepto que não havia nada onde bater, não havia um sitio para onde fugir. Fugir de quê exactamente? O que quer que tivesse causado a pancada na nuca, se me quisesse matar, teve essa oportunidade. Era pelo menos uma preocupação imediata retirada. Mas e se não o quisesse fazer? E se quisesse torturar-me? E se...
Tentei parar com a especulação, aquela auto-estrada cujo destino é a loucura.
Precisava de procurar uma forma de estancar qualquer ferida, precisava pelo menos de primeiros socorros e de me localizar no tempo e no espaço. Era um plano, tão bom quanto qualquer outro que alguém sem memória, perdido e ferido podia conjurar. Tentei localizar o Sol através das copas das árvores, uma tentativa de conseguir perceber pelo menos que horas seriam, quanto tempo de luz ainda teria, mas sem sucesso. A copa cerrada impedia-me de conseguir identificar a posição. Não me recordava de nada sobre sobrevivência. Teria algum dia sabido algo sobre tal? Noções, truques... fosse o que fosse. Nada.
Escolhi aleatoriamente uma direcção e caminhei por entre a vegetação cerrada, a custo, um progresso lento entre caminhar e tropeçar nos galhos, pedras e simples alterações no terreno ocultas pelas plantas. Que raios fazia eu no meio de um bosque, sequer?
Caminhei durante o que me pareceram horas, pela minha percepção toldada da realidade, afectada pelo excesso de adrenalina e pela minha própria desorientação espacial e temporal, até que a vegetação começou finalmente a ceder, revelando um pequeno trilho, provavelmente usado por animais, completamente esquecido pela humanidade. Segui-o durante mais umas centenas de passos, chegando por fim até à margem de uma albufeira cuja parede parecia ter séculos, deteriorada, coberta de musgo, com pedras soltas. Finalmente livre da copa das árvores, olhei por fim o sol que descia no fundo do horizonte, raiando de vermelhos e rosas o céu, invocando na minha mente a imagem de um inferno pessoal demasiado familiar e no entanto cuja origem eu não conseguia identificar por mais que tentasse, também ele roubado junto com o restante da minha memória. Tudo o que sentia era uma inquieta familiaridade com aquela imagem, e um sentimento de desassossego interno ao ser absorvido por aquele cenário que muitos diriam ser idílico. Com medo de um pôr-do-sol... quão mais fundo iria eu bater ainda?
Olhei em volta, tentando encontrar através do horizonte agora mais desimpedido um qualquer vislumbre de civilização na qual pudesse refugiar-me.
Ao fundo, do outro lado do lago artificial, talvez à distância de uns dois quilómetros, conseguia vislumbrar o topo do que parecia uma torre de igreja, escondida atrás de uma colina. Talvez houvesse algo próximo da mesma, uma casa, uma aldeia, um qualquer sinal de civilização que acolhesse um estranho perdido e sem memória de si mesmo durante uma noite. Talvez até conseguisse um prato de comida, pois o meu estômago começava a doer de fome, urrando em protesto por não ser alimentado desde nem eu sabia quando.
Forcei-me a caminhar, usando como ponte a decrepita parede que servia de barragem ao curso da ribeira, quase caindo por duas vezes antes de chegar ao outro lado. Segui mais por teimosia que por real força física, determinado a chegar perto daquela torre antes de tentar descansar. Precisava continuar antes que as forças me faltassem, antes que algo me apanhasse e me dilacerasse, me atirasse para um inferno maior que aquele em que me encontrava.
O caminho foi longo e penoso, cada passo cada vez mais difícil, as forças a abandonarem o meu corpo a cada movimento, reduzindo-me a caminhar por pura força de vontade mais que por qualquer outro motivo. Quando cheguei finalmente ao topo da colina que havia visto à distancia, a esperança abandonou-me por completo. Lá em baixo não havia qualquer sinal de que alguém habitasse aquele local há imenso tempo, o edifício cuja torre eu pensara ser de uma igreja era na verdade uma antiga casa senhorial em estilo neo-colonial, com uma torre no canto este do palacete, rodeado de um muro com cerca de dois metros de altura que rodeava toda a propriedade. Não havia qualquer iluminação na mesma e as paredes encontravam-se cobertas de heras que aproveitavam as paredes do edifício para trepar na direcção da luz do sol, para elas essencial à sua sobrevivência. Desci desanimado a colina, dei a volta ao muro em busca de uma entrada. Poderia ao menos abrigar-me durante a noite, pensei. Ao menos poderia ter um mínimo de protecção dos elementos. Do lado oposto aquele de onde eu viera encontrei um portão de ferro ferrugento, entreaberto, também ele consumido pelas heras que tomaram conta das paredes do edifício, e aparentemente de todo o lado interior do muro que eu conseguia ver. À minha frente estendia-se um caminho de terra batida que de alguma forma continuava a resistir ao avanço da vegetação, ladeado por o que em tempos fora um jardim, que agora não passava de um emaranhado de diversas espécies de plantas que se debatiam umas contra as outras por um pouco de luz. A uns vinte metros do portão o caminho terminava em frente de uma pesada porta dupla de madeira sólida, negra, intrinsecamente trabalhada. Caminhei até ela, seguindo o estreito carreiro pelo meio do matagal que substituíra o jardim. Um arrepio percorreu-me a espinha ao esticar a mão para bater na porta, tentando sem esperança que alguém pudesse abrir-me a porta. A casa parecia desabitada, abandonada aos elementos, apesar de se manter estruturalmente sólida, a falta de cuidados parecia indicar que estaria abandonada há vários anos. talvez décadas. Apenas a força dos materiais e a ingenuidade dos construtores pareciam fazer com que a mansão se mantivesse em pé.
Dei três fortes batidas na porta e ouvi o eco das mesmas dentro da mansão, seguido de um sepulcral silêncio. Só agora reparara que não parecia haver qualquer som no ar além dos provocados por mim mesmo. Nem mesmo o vento corria dentro dos muros. À minha volta tudo se encontrava em total estagnação, sem um movimento ou som produzido. Para a minha mente já bastante desassossegada esta percepção causou mais uma explosão de interrogações sem resposta à vista, baseadas nas minhas próprias sensações. Não sabia exactamente como agir, o que fazer, e a perda da minha memória não me ajudava a encontrar calma. Bati novamente, por mero descargo de consciência, antes de testar a pesada maçaneta de bronze. Destrancada. A porta abriu, produzindo um protestante ranger ao sentir a sua inercia perturbada, sem no entanto me levantar mais entraves à entrada na casa.
A porta abriu para um escuro hall de entrada, e os meus olhos demoraram alguns momentos a conseguirem distinguir formas dentro da escuridão cerrada. Do pouco que eu conseguia distinguir, o hall continha um móvel à minha esquerda, uma espécie de cómoda, sobre a qual se encontravam alguns livros cujos títulos eu não conseguia ler devido a escuridão.
Instintivamente, coloquei a mão ao bolso das calças e tirei um isqueiro que não tinha reparado que tinha. Acendi-o, e pude finalmente observar o hall, parcamente iluminado ainda assim, mas pelo menos já não me encontrava na escuridão cerrada. O local parecia bem cuidado, contrariamente ao que o seu exterior dava a entender. Alguns livros em cima da cómoda, um candelabro por cima da minha cabeça, um interruptor à minha esquerda, logo ao lado da ombreira da porta. Testei-o, e fiquei surpreso por o candelabro se iluminar. Realmente eu estava a espera que o local estivesse abandonado, e fui apanhado de surpresa pela revelação de que este possuía luz eléctrica a funcionar.
A revelação atiçou a minha curiosidade, deu-me um propósito imediato. Explorar esta estranha mansão no meio do nada parecia-me uma ideia quase boa, apesar de algo no fundo da minha mente me implorar para não o fazer. Ignorei obviamente o conselho. Afinal de contas, havia encontrado no mínimo um tecto sob o qual passar a noite. Os roncos do meu estômago incentivaram-me ainda mais a procurar algo comestível que apaziguasse a fome. Estava em modo de sobrevivência básica. Precisava tratar de mim antes de me poder preocupar com coisas como a minha memória ou o porquê de ter despertado no meio de nenhures.
Caminhei pelo andar inferior, descobrindo uma biblioteca enorme de um dos lados da casa, e uma cozinha bem apetrechada, de estilo antigo, do outro. Ao centro, uma escadaria em madeira polida abria-se para o primeiro andar, mesmo em frente da porta de entrada. Encontrei pão, vinho e alguns queijos na cozinha. Apanhei dois deles, uma garrafa de vinho e um pedaço de pão, levando-os comigo para a biblioteca.
Sentei-me numa poltrona em pele negra, puxei a mesa de café do centro da divisão para o lado da poltrona, e fiquei sentado a olhar a lareira apagada, sob a luz de um trabalhado candelabro de cristal antigo, requintado. Este lugar parecia estranho, com uma aura familiar de desassossego e abrigo.
As paredes da divisão encontravam-se cobertas de estantes, cheias de livros de diversos tamanhos, alguns deles com aspecto bastante antigo, sendo a única parede de excepção aquela em que se encontrava a lareira, ao lado da qual existia um largo cesto com lenha para a alimentar, bem como uma pequena pá para a cinza e uma tenaz.
Tomei dum golo um copo de vinho e tornei a encher o copo, pegando em seguida no queijo. Comi, ou melhor, devorei o queijo sem tocar no pão, empurrando-o para baixo com mais dois copos de vinho. Só depois disso me consegui concentrar em algo mais que a fome e o cansaço, cansaço este que persistia e me ia roubando o controlo dos músculos das pernas, demasiado cansadas para obedecer. No entanto, elas mesmas seguiram caminho até à porta, fechando-a e trancando-a com a chave presente na parte de dentro da fechadura. Voltei em seguida à biblioteca, acendi a lareira, em piloto automático. Casa estranha no meio do nada? O meu corpo e mente não pareciam processar esse facto, e era assim que me sentia, expectador de mim mesmo, observando as chamas a surgirem dos esforços das minhas mãos.
Voltei a sentar-me na poltrona. Devem ter passado meros minutos até adormecer.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Anjos demoníacos

Borboleta libertina, malévola atracção a que despertas, destruidora visão que minha inquieta paz atormenta e meus desejos acorda e minha vontade contraria... Que te leva a fazer-me querer trair votos que criei para proteger outros do que sou, quando nada de mim queres? Nada há de interesse aqui... nada recordo já dessa sombra de algo que um dia fui, e não encontro propósito ou sentido no que resta. Queria perguntar-te porquê. Mas por mais que me torture, não encontro motivo para tal, e acabo por silenciar a minha voz e limitar-me a inventar e imaginar cenários sem nexo, vilã imaginação a minha, que me oferece sem eu pedir ilusões do teu calor e do sabor dos teus lábios, forçando-me a quase sentir essas idílicas possibilidades, queimando ainda mais forte a tua imagem nos olhos da minha alma. Odeio-o, sabias? Odeio não te odiar, odeio pensar, odeio imaginar. No fundo, é tudo ilusão... Nunca pensei desejar tanto que uma ilusão fosse real.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pedaços de Alma

Olho para os milhares de pedaços de uma mente quebrada vezes sem conta, peças soltas do puzzle que um dia foi um ser humano, ao qual só restam sonhos destroçados, agonia e uma folha de papel, perdido na embriaguês da culpa e do desespero.
Nada resta do antigo poeta sonhador, nada de belo ou bom existe ainda cá dentro. Destilado o fel que brota da minha alma, exorciso demonios num papel, em inutil tentativa de colar os pedaços de algo que outrora foi bom, perdido ao criar ilusões que deformam a minha percepção de mim e do mundo.
Não sei o que sou, não sei o que quero, não consigo distinguir as memorias reais dos trances dementes em que algo que não sou eu toma conta de mim e violentamente me possui, acto no qual me deixo levar pelo masoquismo e tentativa de fuga aos pedaços deste coração demasiado magoado para voltar a sentir algo novo, incansavel na sua sede de amor, a mais impura forma de gostar, e renegando aqueles que estão dispostos a arriscar a vida na esperança de que um dia um farrapo de consciencia daquilo que outrora fui possa vir a ser alguém, mesmo quando não há em mim certezas do que sou, quando não resta um pouco de talento nas minhas veias dissecadas por sucessivas mutilações a que me sujeito em momentos em que a dor se torna demasiado insuportável e tenho que exteriorizar tudo o que me atormenta, apesar da frágil aparencia de que tudo está bem.
Sei! Sei que não sou nada e há muito que perdi a esperança de voltar a ser algo...

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O fim do Inicio

Restava-lhe a lealdade ao seu principe regente, e o rigor no cumprimento da missão, e as tarefas enfadonhas de burocracia que o asilo necessitava todas as noites. Estava finalmente à beira do abismo. E havia dado momentaneamente um passo em frente.
Ainda que estivessem a começar a habituar-se a trabalhar juntos, os protegidos de Weiss estavam longe de confiar uns nos outros. E essa noite, essa confiança havia sido ainda mais abalada.
Incumbidos por Crow de resgatar três joias que haviam sido roubadas, e cuja protecção era imperativa, separados em pares e forçados a trabalhar em frentes separadas, foram levados a enfrentar alguns desafios. Para Marcos, a perda de Arabella fora um golpe duro, quase fatal.
A paranoia de estar no centro do iminente ataque dos Escarlates a Nosgoth, a dor, a raiva, o tedio da eternidade. O conjunto de tudo colocara Marcos num estado explosivo. E apenas Edward foi testemunha do macabro sorriso no rosto de Marcos, do medo reflectido nas faces dos bandidos. E, pior que tudo, do seu olhar demoniaco fixo no seu, penetrando até as sombras que rodeavam Edward, um esgar de profundo ódio.
Edward conseguiu apanhar ambas as joias, sob o sorriso e o esgar de Marcos, quando sentiu o seu companheiro a virar o seu poder contra si. Sentiu as joias a quase serem arrancadas pela força da mente de Marcos das suas mãos, tentando encontrar um forma rapida de ultrapassar as chamas infernais que Marcos colocara na unica saída da sala subterranea.
Felizmente Marcos recuperara a tempo o controlo de si mesmo, causando com que as chamas e as sombras infernais por si controladas se dissipassem, permitindo a Edward sair da sala rapidamente, sem olhar para trás e ver o que aconteceram.
Mas Marcos sabia o que havia acontecido. Perdera de novo o controlo da sua insanidade, os seus demonios internos subindo acima e tomando o controlo, a sua mente temporariamente perdida.
Foram alguns momentos apenas, mas e se tivesse sido mais tempo? Edward poderia ter morrido às suas mãos, e ele teria a eternidade para se arrepender de tal.
Não podia dar-se ao luxo de perder o controlo, não quando isso implicava colocar em risco as vidas daqueles que lhe eram minimamente próximos. Precisava de uma solução, de um conselho, de algo que lhe permitisse controlar aquela parte destrutiva de si.
Precisava daquele que o criou...

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Testemunha do tempo

Era tão pequena que ninguém reparou nela. Uma pequena racha com apenas alguns milímetros. Não podia ser importante. Não chamava a atenção.
Mas cresceu à medida que o peso que o pilar suportava aumentava de dia para dia, de hora para hora. Imperceptível a olho nu, escapou-se de qualquer exame minucioso. Não havia necessidade, afinal, tudo parecia estar bem.
Até que corrompeu toda a estrutura. Qual vírus desconhecido propagou-se invisível. Propagou-se sem causar estragos. Até que se activou. Até que um pequeno pedaço apanhado entre duas das ramificações se escapou e caiu, levando consigo todo o resto do pilar principal. Sem a sua base, a estrutura ruiu. Desfez-se em ruínas e pó numa implosão inaudível. Não havia ninguém por perto para a ouvir. Como de costume, toda a gente estava demasiado ocupada com algo supostamente importante para reparar.
Procuraram depois, a intervalos de tempo irregulares, conforme a necessidade de apoio daquele templo onde tudo parecia sempre tão perfeito, e no lugar do seu paraíso encontraram uma pilha de pó e pedras quebradas sobre o jardim da mágoa. O seu refugio havia sido destruído por algo que nunca ninguém chegaria a perceber. As mudas ruínas levaram consigo as palavras doces inscritas nas paredes, tornando-as ilegíveis e indecifráveis. As ruínas sangravam pó de rubi outrora incrustados nos pilares.
Tristeza, melancolia e quase indiferença eram as reacções comuns nos supostos peregrinos. A palavra não se espalhou. Os fieis choraram em silencio a sua falta de atenção, enquanto os opositores se regozijavam na ilusão de que algo esquecido que tivessem feito pudesse ter levado à queda do templo.
Mas apenas uma alma perdida sabia a verdadeira história. Um corpo que assistira de dentro à implosão, consumido pela infecção que ninguém detectou, deixando para trás uma alma condenada a relembrar sem nunca poder partilhar com ninguém a queda do templo.
Uma alma que observou fieis e infiéis, incapacitada de intervir, consumida pela fúria, o ódio e a mágoa...
Condenada a apontar o dedo em silencio do fundo dos sonhos mais negros ao responsável pela rachadura original. Condenada a ser ignorada como um fragmento da imaginação descontrolada de alguém que dorme profundamente... Condenada a esperar que alguém alguma vez aprenda a ler o seu silencio forçado... A esperar que alguém aprenda as palavras mágicas para o quebrar, para finalmente poder partilhar as razões por todos os outros desconhecidas para a queda do antigo templo que continha no seu seio o jardim da mágoa.
Com o tempo até ela esquecerá... e a eternidade é bastante tempo para poder esquecer... Talvez no esquecimento encontre a sua paz final...
A eternidade o dirá...

terça-feira, 2 de setembro de 2014

São as centenas de perguntas que não faço, ou são as poucas que me atrevo a fazer?
Que intuito me leva a massacrar-me, a desejar cada segundo de tortura?
Quem és tu, borboleta que esvoaça a meu redor? De onde vens, que essencia tens?
Tu que com tua elegante deselegancia me roubas o olhar e a atenção que eu deveria dar a fosse o que fosse que não tu, tu que nem sabes quem sou ou notas que existo aqui, que me atiras com migalhas da tua atenção sem reparares que aqui estou de verdade, que há vida atrás do vazio olhar de dor e solidão.
Há vida? Há mesmo?
Há vida dentro desta tempestade de luz e trevas onde o caos e a ordem se confundem e se misturam? Silenciados na musica os gritos de dor, haverá realmente algo que ainda recorde sentir e viver por trás da máscara? Está a máscara viva agora? E quem raios és tu e que diabos vês tu? Vês? Vês mesmo? Não, não vês, ou vês sem ler, porque não sabes ler os simbolos alienigenas que diante de teus olhos se demonstram, mesmo com a chave contida no proprio puzzle...
Muralhas de logica e arcanas defesas desfeitas num olhar.
E doi por dentro a cada segundo, e pego a folha marcada de circulos estranhos em algumas partes e queimo-a na vela que uso para iluminar a minha caneta na sua viagem pelas linhas, enquanto a minha mente tenta traçar uma imagem que vê mas não sabe desenhar.
Odeio.

sábado, 21 de junho de 2014

Beco dos Vadios, Parte 2: O Rato

Estava em frente dos monitores, cinco no total, observando alternadamente três deles, batendo ritmicamente com os dedos no tampo da secretária, impaciente. Esperava algo, mas esse algo não era o toque do telemóvel.
"Raios! Que querem agora?"
A impaciência era óbvia no seu tom quando atendeu. Não chegara sequer a olhar para ver quem lhe ligava.
— Sim?
— Rato?
— Sim? Quem fala?
— É o Marco.
— O que queres?
— Irra! Mau feitio.
— Estou ocupado, Marco. Diz lá o que precisas.
— Dei o teu contacto a uma miúda. Acho que ela precisa de ajuda.
— Deves pensar que eu sou a Santa Casa da Misericordia...
— Disseste para nos mantermos atentos a casos de desaparecimentos.
— Sim. É o caso?
— É. A irmã dela desapareceu.
— Há pistas?
— Nada, segundo a Filipa.
— Quem diabos é a Filipa?
— A miúda que mandei contactar-te.
— Fizeste bem. Depois recompenso-te se ela me contactar.
— Rato... há outra particularidade. Eu conhecia bem a irmã dela. É uma miúda que eu gosto bastante. Elas são gémeas.
— Gémeas, hum? Acho que ganhaste o mês se ela me contactar, Marco. Obrigado. Precisas de alguma coisa mais por agora?
— Descobre a Elisa, Rato. Preciso que descubras a Elisa...
— Não prometo nada.
— Faz o que puderes Rato. Até mais.
O Rato desligou a chamada. Mantinha os olhos no monitor, mas seleccionou um dos ecrãs inactivos, abrindo nele um ficheiro de texto.
"Rumores de mais um desaparecimento sem pistas. A aguardar contacto da irmã da desaparecida. Segundo informação recebida, a desaparecida e a irmã são gémeas. Talvez provem ser a oportunidade que eu tenho esperado. A aguardar contacto."
Guardou o ficheiro e continuou a monitorizar os ecrãs. Aguardava agora duas coisas.
"Odeio esperar..."
—***—
Somente um louco confiaria num estranho sem rosto para responder às questões a que ninguém saberia responder. Mas louca esperava Filipa ficar se não obtivesse uma explicação. Sem um corpo para velar, sem uma noticia de que Elisa estava viva, e sem uma pista que pudesse seguir, tinha ela alternativa? Tudo o que tinha era um cartão entregue por uma cara semi-familiar e o incessante eco na sua mente repetindo vezes sem conta aquelas palavras. "O Rato explica. O Rato sabe."
Ponderou e pensou e reviu opções, chegando sempre a mesma conclusão. A sua única pista era aquele estranho cartão com um numero de telefone dado por um quase desconhecido depois de uns quantos copos. "Devo estar a perder o juízo" era o pensamento que mais se repetia na sua cabeça. Passavam três semanas desde o desaparecimento de Elisa, e cada vez Filipa tinha menos esperança de a encontrar viva, mas algo que ela não sabia explicar a impelia a continuar a busca. Quase como se a sua irmã implorasse pela sua ajuda, de onde quer que estivesse. Foi esse estranho sentimento, mais que a esperança, que levou Filipa a ligar o numero no cartão. Sozinha no seu quarto, deitada na cama, finalmente resolveu marcar o numero. Pareceu-lhe uma eternidade antes de ouvir uma voz do outro lado, mas não teria passado um minuto.
— Boa noite.
Do outro lado ouviu uma voz rouca, grave. Paralisou, as palavras presas na sua garganta.
— Posso ajudar?
A questão colocada fez com que Filipa conseguisse finalmente falar.
— Queria falar com o Rato.
— Qual é o assunto?
— É sobre o desaparecimento da minha irmã.
— O seu nome é Filipa?
— É sim. Como sabe?
— Foi um conhecido meu que lhe deu este numero. Estava à espera do seu contacto. Eu não confio muito em telefones, e isto é um assunto delicado. Vou enviar-lhe uma morada. Esteja lá amanhã, às 21:00. Não se atrase, sou uma pessoa ocupada. Até amanhã, senhora Filipa.
Filipa ouviu o clique da chamada a ser terminada antes de poder responder. Segundos depois recebeu uma mensagem com uma morada. Pesquisou a mesma, descobrindo que ficava localizada numa zona mal afamada da parte antiga da cidade. Na sua cabeça, a ânsia de respostas lutava contra o receio. O risco de comparecer a um encontro com um desconhecido numa zona conhecida pela sua insegurança, famosa por assaltos e tráfico de drogas fazia-a pensar não ir. Mas esta era a sua única pista. Mal conseguiu dormir nessa noite, e o dia seguinte foi passado numa angustiante espera. Decidiu comparecer. Vestiu uns jeans confortáveis, um top justo e calçou um par de ténis que lhe permitiriam correr caso algo desse para o torto. "Porque correr vai mesmo safar-me de levar um tiro..."
Tentou apanhar um táxi que a levasse à morada, mas apenas o terceiro que parou se disponibilizou a fazê-lo, os dois primeiros recusando-se a entrar no bairro em questão.
Faltavam dez minutos para a hora marcada quando o táxi parou em frente da morada. Viu recusado o seu pedido para que o taxista esperasse consigo esses dez minutos, sendo forçada a pagar e esperar na rua. A casa indicada encontrava-se em ruínas, obviamente desabitada. Sentia-se completamente vulnerável e indefesa na rua deserta. Esperou cinco minutos a sós antes de notar um grupo de cinco rapazes a percorrer a rua na sua direcção, jovens, nos seus 17 ou 18 anos. Um deles foi ter com ela, os restantes espalhando-se à volta a pouca distância, cercando-a. Viu um sorriso sádico no rosto do que a ela se dirigia, qual predador que olhava uma presa indefesa e cercada.
— Olá beleza. Arranjas-me um cigarro?
Filipa tirou do bolso de trás das calças uma cigarreira de prata. Abriu-a e tirou um cigarro, estendendo-o ao rapaz sem dizer uma palavra.
— Lumes?
Filipa entregou-lhe um isqueiro Zippo também ele de prata. Viu o rapaz observa-lo durante momentos, acendendo depois o cigarro com ele.
— Bonito isqueiro, beleza. Acho que vou ficar com ele. E com essa cigarreira também. Passa para cá.
Filipa hesitou, sem saber o que fazer. Sabia que era um erro ter vindo até aqui. Pensou que se colaborasse talvez fosse poupada a problemas mais graves. Tremia como varas verdes ao pegar novamente na cigarreira, preparada para a entregar, quando ouviu uma voz grave e calma atrás de si, com um timbre que Filipa tinha ouvido antes.
— Vais devolver o isqueiro à senhora, pegar nos teus amiguinhos e desaparecer da minha vista antes que eu me perca a paciência contigo...
Filipa e o seu assaltante pausaram, olhando na direcção da moradia abandonada, em busca da voz. Vestido de negro, calças largas, botas de combate, mãos dentro dos bolsos de um casaco longo até abaixo dos joelhos, o rosto obscurecido pelas sombras causadas pelo capuz largo do casaco puxado sobre a sua cabeça, um homem alto, um pouco mais de metro e oitenta, olhava-os por trás da escuridão que lhe escondia o rosto por completo, pose neutra, quase descontraída.
— És surdo, miúdo? Disse-te para devolveres o isqueiro à senhora. Estás a demorar a cumprir ordens. Não gosto de demoras. Agora...
O tom era de óbvia ameaça. O rapaz olhou-o com um intenso olhar de raiva.
— Mas quem pensas tu que és para me dares ordens? Aqui a única lei é a lei do mais forte. Desaparece.
O silvo de um disparo com silenciador e a dor no joelho que o atirou ao chão foram a resposta que obteve, seguida da voz rouca em tom sarcástico.
— Exacto, fedelho. Lei do mais forte. Avaliando pelo estado em que estás, eu diria que esse sou eu. Sou o Rato. Vais entregar o isqueiro, bem como o que quer que tenhas contigo à senhora como compensação por seres um idiota e a teres assustado.
Rato levantou a voz, sem se mexer, fazendo-se ouvir perfeitamente aos restantes companheiros daquele que jazia no chão.
— Além do fedelho, vocês são quatro. Eu tenho mais 11 balas no carregador. Desapareçam.
Dirigiu-se ao rapaz caído no chão, apanhou o isqueiro, tirou-lhe uma carteira do bolso, entregando ambos a Filipa que os recolheu em choque.
Apontou a pistola à testa dele, saboreando o medo nos olhos do rapaz, o predador que subitamente se havia tornado presa...
— Não vales a bala.
Guardou novamente a arma.
— Siga-me, senhora Filipa. Tenho o carro ali atrás. É melhor irmos para um sitio seguro, temos muito que falar. Você procura respostas, e talvez me possa ajudar.
Filipa continuava em choque, paralisada. Acabava de ser alvo de uma tentativa de assalto, salva por aquele que era culpado de ela estar naquele local para começar. Nem registou a frase do Rato.
— Senhora Filipa...
Ela voltou por fim a si, respondendo num murmúrio.
— Sim?
— Siga-me.
Nas traseiras da casa esperava-os um BMW preto, de vidros fumados. Rato ocupou o lugar do condutor e baixou o vidro.
— Entre.
Filipa entrou no banco do pendura, ainda em piloto automático. Rato arrancou de imediato, a alta velocidade, sem uma palavra. Minutos depois estavam a entrar no que parecia por fora ser um armazém abandonado, Filipa ficando espantada com o contraste entre o exterior e o interior. Dentro do espaçoso armazém havia uma oficina, e ao fundo uma separação, uma divisão. Foi para lá que Rato se dirigiu, com Filipa no seu encalço. Ao entrar deparou-se com uma sala arrumada, sofás, estantes. Uma sala que ela esperaria ver num apartamento, com duas portas fechadas para o que ela esperava serem divisões extra. Perdida na observação não vira o Rato tirar o capuz. Soltou um grito de susto ao olhá-lo novamente. Pele branca, cabelo branco e olhos vermelhos, penetrantes, que a olhavam com um certo espanto.
— Que foi? Nunca viu um albino? Sente-se. Temos muito que conversar...

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Sometimes...

Many years ago I was too afraid to say "Stay by my side", to say "I need you here with me". Because I said nothing at all, you left, not knowing just how important you once were for me. Now, a decade later, I see you online and I think to myself "should I tell you?". And I don't. I never tell you anything because I think you wouldn't understand. I think that maybe you wouldn't care, or it wouldn't be relevant. In your absence I learned about myself, and found the strengh to endure, to challenge and to survive. Maybe I wouldn't have found that if I had said those words so long ago. Maybe we would have tried out a reality where you and me would be "us". Or maybe I wouldn't have made all the mistakes that made me who I am today. Maybe we would both be different persons if I had had the courage to speak.
But maybe I wouldn't have the strengh I have today. And maybe you wouldn't have become the rebel activist you are now. I don't know. There is no way to know for sure. But I do know one thing... somehow, a decade later, even though I've healed the wound of losing you, the perfect woman I never won, I find myself staring at your picture online, looking at the green dot that marks you as online, and I think that maybe this decade just made us so much better for each other.
It pains me that our time has past... for sometimes... not everyday, not even every month, but sometimes I still dream of you. I still dream of those afternoons together playing a game I could have won hours before, yet kept dragging on waiting for you to find a way to beat me just to see that smile.
Sometimes, I still dream of you.
I hate dreaming...

quarta-feira, 4 de junho de 2014

As palavras que não te disse

Não vi "A vida de Pi" mas de alguma forma uma frase do filme encontrou-me no momento certo. Uma frase que diz que devemos sempre concluir tudo, sem deixar pontas soltas, sem deixar nada por dizer, pois só assim podemos seguir em frente, e ter a paz que merecemos.
Há coisas que não te disse. Coisas que ficaram por dizer no tumulto que antecedeu aquele final abrupto, mas não inesperado. Culpa em parte de estar ainda a terminar de remendar os pedaços da minha vida antes de ti. Pedaços que tinham que ser resolvidos e sem os quais, mais uma vez voltamos, eu não poderia seguir em frente e dar-me a 100% como o merecias.
Não te disse que estava pronto para ficar junto a ti e que dentro de pouco mais de uma semana estaria ao teu lado. Fui avisando que estava a tentar mas nunca dei muito mais noticias que isso. Eu tenho o problema de viver demasiado dentro de mim, e de não saber as vezes como comunicar o que poderia talvez fazer a diferença. É um daqueles meus defeitos que sempre me custou e continua a custar mudar.
Não te disse que começaria na segunda feira da semana seguinte a fazer um trabalho que certamente iria odiar, mas que seria próximo de ti e que por tal eu poderia aguenta-lo perfeitamente. Nem que tinha até dado o sinal de um lugar próximo, para que ambos pudéssemos ter o nosso espaço e a nossa companhia sempre que tal fosse desejado.
Não te disse o quanto eu esperei por a oportunidade de finalmente poder estar perto, ou o quão importante eras. É este meu ar frio e distante e as cicatrizes da minha alma e aquela aparente força inabalável que tento transmitir a mim mesmo e que os outros acabam por apanhar como sendo certa, que as vezes me impede de dizer estas coisas.
Não te disse que durante todo este tempo eu tenho estado a adiar o meu emprego de sonho para ficar contigo. Não queria que te sentisses responsável por eu estar a desperdiçar uma oportunidade, quando sabias bem que já o tinha feito antes. Não era minha intenção que te responsabilizasses, nem o é agora tão pouco. Só quero dizer aquilo que ficou por dizer.
Não te disse que demorei mais de um dia e meio a responder àquela mensagem, apesar de a ter lido e relido, desiludido mas ainda assim sem a capacidade de te culpar por algo. Acho que devo explicar melhor a desilusão. Não é contigo que estou desiludido, mas um pouco comigo por não ter sido mais rápido. Ficar-me-á sempre aquela questão, sabes? Questão irritante como tantas outras começadas por aquelas duas fatídicas palavras. "E se..."
"E se eu tivesse sido mais rápido, mais eficiente, mais forte, mais corajoso, mais..."
Não te disse que tinha planos meus, mas que gostaria imenso que passassem a ser nossos, ou mesmo que colocasse de lado os meus planos em favor dos nossos, concebidos em conjunto tendo em conta os desejos e necessidades de ambos.
Não te disse que estava a perder a esperança de viver mais uma vez quando te encontrei, nem que me mostraste que eu tinha força para lidar com aquilo e muito mais. Não quero desenvolver muito este ponto, mas basta dizer que considerava refazer o que fiz há anos atrás, e que desta vez não ponderava falhar.
Não te disse como me mostraste que eu estava longe de chegar ao meu limite, e como me deste de novo a vontade de me erguer e lutar por mim, por nós, por ti. Não to disse porque não podia entregar-te sobre mim tanto controlo, por receio de que ele fosse usado de forma errada.
Não te disse que tinha uma enorme desconfiança face a todas as pessoas, mas contei-te uma pequena parte do que causou isso. Não te disse que sempre receei entregar-me por completo precisamente por isso, mas que sempre tentei dar o máximo que me era possível enquanto recolhia as certezas que precisava.
Não te disse o quão exausto estou de procurar em vão a felicidade que por momentos senti nos teus braços.
Não te disse que não tinha intenção de procurar mais além de ti.
Não te disse que sem o teu apoio eu não teria voltado a abraçar a minha paixão pela arte. Que foram as tuas palavras e os teus pedidos de informação adicional que me atiraram à caneta e ao papel para satisfazer a tua curiosidade, causando com que a minha necessidade e a minha paixão pelas letras tomasse novamente o seu lugar em mim, lugar que há tanto tempo eu lhe passara a negar para que as minhas palavras não fossem distorcidas ou mal interpretadas e viradas contra mim.
Não te disse nada disto, porque eu não falo muito. E não to disse porque eu adorava beber as tuas palavras, e deixar-te esvaziar a tua dor, e que o fazia com prazer mesmo que não soubesse a falta que te fazia ter alguém que te ouvisse.
Falhas de comunicação irreparáveis agora, que mesmo esta tentativa de exposição não vai de todo remendar. Não é esse o intuito. Não posso alterar o passado. Não o iria fazer mesmo que pudesse.
Disse-te no entanto que não me arrependo de nada. E não me arrependo do tempo que passei a teu lado, por curto que tenha sido, mas qualquer tempo é curto para se estar com quem nos faz bem. Tudo tem um tempo certo, e eu deixei que o nosso passasse.
Posso dizer—te ainda mais uma coisa. Não é algo que tenha ficado por dizer, mas algo que quero que saibas agora. Digo-te obrigado, e digo-te até um dia, e digo-te que poderás se um dia precisares, contar comigo se achares que o deves fazer, ou se necessitares de uma daquelas habilidades sombrias e não conheceres mais ninguém.
A vida chama-me lá para fora por agora, e assim me despeço com votos de felicidades e um "Até um dia destes."

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Beco dos Vádio, parte 1: Questões sem resposta

Em todas as cidades existem gatos vadios, bolas de pêlo fofinhas que caçam e vasculham restos em busca de refeições. Alguns com antigos donos humanos, outros nascidos entre becos e ruelas, todos possuindo uma natural desconfiança para com os humanos que com eles partilham a cidade. Desde as mais antigas cidades da história humana, até à recente era de neons e anúncios berrantes, gatos vadios percorrem os nossos becos e ruelas, alimentando-se de presas fáceis.
Em várias culturas pré-clássicas, os gatos foram adorados como seres divinos, guardiões da passagem entre mundos. Culturas separadas pelo tempo, espaço e herança chegaram a um ponto comum nos gatos e nas lendas que os envolvem. Os gatos são inteligentes, sagazes caçadores, que aproveitam presas fáceis e indefesas.
Em várias cidades do mundo, numa qualquer avenida principal da cidade existe um arco baixo e sólido entre dois prédios que dispõe de um sinal de mármore escrito na língua nativa indicando o nome da rua à qual dá acesso. "Beco dos Vadios". Encontrar a entrada do beco dos vadios nunca é um acto voluntário. Ouvem-se rumores e histórias que contam que aqueles que o tentam encontrar voltam frustrados de infrutíferas horas de caminhada em busca de algo que se recusa ser encontrado. Mas quase todas as semanas mais alguém desaparece na noite. Atribuem-se as culpas ao álcool e às drogas e a outras coisas. Os olhos sem voz vêem e calam. Poucos perguntam aos mendigos. Quem o faz recebe uma resposta que de tão simples soa a um enigma sem solução. "Foram os vadios que o levaram." Aqueles que pretendem saber sobre os vadios, como sobre outros segredos das ruas, devem estar prontos para pagar a refeição e manter o vinho a fluir generosamente antes de poderem colocar a sua questão e serem julgados. Os mendigos, os que vivem nas ruas, sabem mais sobre muitos segredos que aqueles que vivem confortáveis em suas casas conseguem imaginar possíveis de existir. Tudo o que pedem em troca é uma refeição quente, e vinho, e a vontade de ouvir as suas histórias sobre os recantos esquecidos da cidade.
Quando questionado sobre os vadios, o mendigo pedirá um cigarro, e lume. Só depois, barriga cheia e pulmões aquecidos contará a sua versão do que sabe. Várias vezes testemunhara pessoas, normalmente jovens nos seus vinte e poucos anos, a caminhar ébrios pelas ruas fora, a meio da madrugada. Sozinhos. O ar ficaria subitamente mais frio, e próximo do solitário caminhante apareceria um gato jovem, pequeno, com aspecto de ter frio e fome. Com pena no coração, o estranho tenta confortar a pequena cria, que mia solicitosamente e se mantém a dois ou três passos de distância do humano. Pouco depois, apenas a uns metros de onde aparecera, a cria vira para um beco, através de um arco baixo entre dois prédios, com um sinal de mármore que indica o nome da rua. A história era retida e partilhada entre os sem-abrigo, e o numero de visões da entrada do beco parecia estar a aumentar ao longo das décadas, à medida que a própria cidade crescia. Os vádios são os habitantes do beco. Sejam os gatos ou os seus ocultos mestres, aqueles que atraem jovens ébrios a becos dos quais não retornam, cuja entrada desaparece com o raiar da manhã. A história é obviamente falsa, como diria uma mente sã actual. O mendigo menciona ainda antes de abandonar o seu anfitrião, de que há histórias de alguns que entraram e saíram, mas não sem deixar para trás a sua sanidade. Desencoraja tentar encontrar um desses poucos loucos que sobreviveram.
Mas certas almas necessitam de respostas mais do que outras, e para Filipa, o súbito e inexplicável desaparecimento de Elisa, sua irmã gémea, numa noite em que havia saído sozinha para esquecer, para nunca mais ser vista, precisava de uma resposta. Mente curiosa e alma atormentada, Filipa procurou incessantemente uma pista, uma razão, um esclarecimento. Gêmea, sabia que não era de Elisa desaparecer sem avisar. Algo acontecera de extraordinário para que a sua irmã tenha desaparecido da face da Terra. Filipa ficara obcecada em descobrir o quê. Distantes em personalidade e interesses, mas ligadas pelo nascimento e aparência, eram as melhores amigas, companheiras inseparáveis de uma vida.
Filipa tentou recriar os passos da sua irmã. Falou com os amigos e conhecidos. Chegou a um trajecto que desaparecia após as 2 da manhã. Elisa fora vista em alguns locais habituais, sempre sozinha. Bebera bastante. A última vez que alguém se recorda de a ter visto seriam quase 2 horas, a sair de um bar que costumava frequentar.
Nada disto respondia às questões de Filipa. Parecia uma noite de copos talvez um pouco abusada, mas nada que Elisa não estivesse habituada. O rasto que podia encontrar era inútil. Ninguém aparentava ter nenhuma pista.
Mas a necessidade de resposta fez Filipa pedir ajuda que lhe ficaria cara, e que era um risco usar. Dada a falha da parte da policia em dar noticias da investigação, respondendo as questões de Filipa apenas com "estamos a investigar", ela decidiu fazer a sua própria investigação.
Demasiadas vezes ouvira aquela frase, e deixara por completo de acreditar nela. Desabafou com um dos frequentadores do ultimo bar onde Elisa fora vista, entre vodka e outras conversas, um dos habituais clientes do local com quem Filipa nunca falara antes.
Estranhou o paranoico olhar dele face ao desabafo, e desconfiou ainda mais do "segue-me" murmurado em voz baixa. Seguiu-o a medo para um beco próximo, e só aí, depois de ele se certificar que ninguém os observava, recebeu um pequeno cartão de visita. "Pede para falar com o Rato."
Perguntou quem era o Rato. A resposta deixou-a ainda mais apreensiva. "O Rato explica. Não fales do Rato a ninguém. O Rato explica. O Rato sabe."
Em vez de respostas viu o estranho desaparecer de vista, deixando-a só num beco escuro, com mais perguntas sem resposta.
Estava a enlouquecer? Tudo lhe parecia surreal. Completo solipsismo sob ela caíra. Olhou o cartão, descrente. Impresso em fonte genérica, apenas a inscrição "O Rato" e um número de telefone.
Deveria ligar? Quando? Quem era o Rato? O que sabia o Rato? Que sabe ela? Que aconteceu afinal? Somente um louco confiaria num estranho sem rosto para responder a questões que ninguém saberia responder. Mas louca esperava Filipa ficar se não obtivesse uma explicação. Sem um corpo para velar, sem uma noticia de que Elisa estava viva, e sem uma pista que pudesse seguir, tinha ela alguma alternativa?
Tudo o que tinha era um cartão entregue por uma cara semi-familiar e o incessante eco a sua mente repetindo vezes sem conta aquelas palavras. "O Rato explica. O Rato sabe."

domingo, 11 de maio de 2014

Mestre Félix

Jace entrou no dojo às 8 em ponto, hora de abertura. Camisa preta de manga curta, bermudas e botas de cabedal, mochila às costas, corrente à cintura. Foi directo à parte do ginásio, escolheu uma passadeira, ligou o leitor de CD's portátil e começou a correr a um ritmo elevado, deixando-se levar pela música. Minutos depois apercebeu-se d que a passadeira ao seu lado fora ocupada, mas não deu conta de quem o fizera. Desde quinta que precisava daquilo. De esforçar o corpo, de se arrastar até ao limite da exaustão, deixar o corpo queimar tudo e a mente focar—se apenas em controlar o esforço, ocupada demais para fazer perguntas inoportunas. Só quando sentiu um toque no ombro olhou o cronometro à sua frente. Trinta e cinco minutos. Parou a passadeira, tirou os phones.
 - Não aqueceste já o suficiente?
Félix olhava-o com um sorriso. Estendeu-lhe a mão e Jace retribuiu o cumprimento.
 - Anda para a nossa sala. Dava-me jeito treinar uns movimentos.
 - Eu preciso desemperrar. Passo tempo demais a ensinar e de menos a praticar. Vai trocar de roupa, nada de botas no tapete.
 - Vou lá ter em minutos.
Trocou para o uniforme e colocou as roupas e a mala no seu cacifo, correndo de seguida ao encontro de Félix.
 - Como estás, miúdo?
 - Bem.
 - Mentir é feio, sabias? Estavas às 8 horas na passadeira...
 - É complicado.
 - Provavelmente será, pela tua reacção.
 - Praticamos?
 - Queres escolher a minha arma para praticar?
 - Escolhe o que preferires.
 - Sabes o que eu prefiro. Não tenho mais nenhum aluno do nosso estilo, não preferes praticar contra outra coisa? Algo que te seja útil contra o resto?
 - Nunca posso praticar contra o nosso estilo excepto contigo.
Félix sorriu, um sorriso de concordância. Félix treinara Jace desde os seus 7 anos. Viu-o evoluir de um miúdo cheio de vontade de aprender para um excelente praticante do estilo que Félix realmente amava. Félix demonstrara a vários, tentara ensinar combater com a arma. Mas lidar com uma arma flexível e difícil de controlar era um processo longo do qual vira muitos desistir. Jace era o seu único aluno actual a usar a kusarigama. Félix desde cedo se apercebera da visão de combate, a fria analise, a precisão que ele colocava em cada golpe sendo um reflexo da mesma. Cada vez era mais difícil a Félix vencer o seu aluno, prova da evolução da técnica de Jace. Nos últimos dois anos Félix tem notado nas poucas oportunidades de se defender dos golpes de Jace, e na rotina da aula, que cada vez mais é a sua vantagem física e força a bater Jace, não a técnica superior. Debaixo da sua supervisão viu Jace criar laços com todos ao seu redor, criar com os colegas de curto e longo prazo uma empatia que era visível, acompanhada por um desejo de competição saudável. Ao contrário da escola, onde Jace sempre se sentira entediado e sem desafio, no tapete Jace sempre teve que trabalhar duro para sobressair. Provara com a dedicação e o empenho conseguir tornar-se um excelente praticante, e um oponente honrado e desafiante para todos os seus actuais alunos. Apenas um punhado deles conseguiam bater Jace com regularidade. Félix via em Jace uma versão mais jovem de si mesmo, do seu percurso inicial. Ao fim de tantos anos juntos, era impossível não ter surgido entre eles uma sólida relação.
O improvisado combate entre mestre e aluno terminou numa ronda de aplausos de um publico que eles não se haviam apercebido ter, Félix conseguindo por fim imobilizar Jace, se sequencia de um prolongado jogo de ataques e defesas, desvios e contra-ataques, acompanhado de um incessante zumbido de correntes.
Começaram as lições regulares. Fariam uma pausa ao meio-dia para almoço e restabelecer energias.
Félix observara Jace durante toda a manhã. Notara-o tenso, muito fechado e defensivo. Não arriscava aberturas que podia ter aproveitado, deixando os seus adversários livres para recuperar o fôlego e investir de novo.
Teria falado com ele durante as duas horas de pausa para almoço antes da sessão que daria à tarde, mas Jace eclipsara-se durante as mesmas.
Reapareceu na sessão da tarde, de uniforme, mas sem a mascara. Aqueceu e começou a praticar movimentos no fundo da sala. A voz de Félix arrancou-o da sua silenciosa pratica contra um inimigo imaginário.
 - Pedro, Jace, podem apresentar-se no tapete por favor. Os restantes sentem-se à volta. Vamos analisar a técnica deles e tentar encontrar pontos de melhoria. Podem começar.
Félix esperava que Jace mantivesse a linha de combate que demonstrara durante a manhã. A surpresa foi evidente no seu olhar enquanto observava os seus dois alunos. Jace tinha o olhar distante, como se não estivesse ali. Estava parado, corrente ainda presa a volta da cintura, onde a tinha colocado ao dirigir-se ao tapete. Pedro, colega de treino de Jace há cinco anos, não sabia como agir. Olhou Félix nos olhos, em busca de um incentivo ou uma directriz. O olhar duro de Félix e o seu ligeiro aceno de cabeça foram tudo o que Pedro precisou para investir. Lançou o bastão numa pesada investida, esperando uma defesa que não chegou, o pesado bastão sendo lançado num golpe largo apontado à cabeça de Jace. Esperava que fosse a corrente a apanhar o seu bastão. Jace baixou-se no ultimo momento, o bastão passando a pouco mais de um centimetro da sua cabeça, o impeto do golpe fazendo Pedro dar um passo em frente para absorver o coice do golpe falhado. Mal colocou o pé no chão, sentiu a familiar caricia da corrente de Jace a enrolar-se no seu tornozelo, seguida de um puxão que aproveitou o seu desequilíbrio, deixando Pedro a olhar para o tecto, caído de costas. Ao lado da orelha direita ouviu o embate metálico da kama de Jace, a foice da ponta oposta à que fora usada para lhe prender o tornozelo a cair de lamina no tapete a meros milímetros da sua orelha. Pedro sabia que ela havia batido ao lado por ser um treino. Se Jace quisesse, ele estaria morto, a lamina enterrando-se entre os seus olhos. Jace não falharia aquele golpe, Pedro vira-o praticar milhares de vezes o arremesso da foice, a precisão demoníaca de Jace com esta.
Félix observava, surpreso. Ele não conseguia colocar naquele golpe a precisão que Jace lhe havia colocado. Não o usava em treino com outros por receio de falhar e magoar alguém. Mas o seu aluno fizera-o sem hesitar, sem ponderar que pudesse falhar o arremesso com consequências fatais. Félix sentia orgulho dentro de si, apesar de não o demonstrar.
O combate que Félix esperava durar uns bons minutos terminara passados poucos segundos do inicio. Valia a pena analisar o mesmo, mas a resposta era evidente. Pedro colocara demasiada força no golpe, esperando uma defesa. Jace previra isso, e não só não aparou o golpe como se aproveitou do desequilíbrio causado.
Jace estava estranho. Passara a manhã desconcentrado, voltando agora com um nivel de concentração irreal. Félix precisava perceber o que se passava com Jace. O abrupto fim da demonstração deu-lhe uma ideia de como fazer o tempo passar.
 - Pessoal, próximo voluntário contra a kusarigama do Jace. Quero que alguém o derrote. Ele precisa de algo competitivo, vamos lá. Voluntários?
Um dos seus colegas juntou-se a Jace no tapete, katana na mão, em posição de defesa, atento a Jace, que se encontrava simplesmente em pé, de corrente na mão. Nada na pose dele indicava que estivesse pronto para lutar. Mas assim que Félix deu sinal para começar, o peso da corrente de Jace voou na direcção da cabeça do seu oponente, sendo bloqueado pela lamina da katana deste, a ponta pesada da corrente enrolando-se à volta da lamina. Assim que o peso terminou a volta à lamina, a foice de Jace prendeu a sua propria lamina pouco acima do punho da katana, e o seu adversário sentiu o puxão de ambas as pontas da corrente, demasiado forte e imprevisto para conseguir segurar a sua arma nas mãos. Desarmado, frente a Jace, que empunhava agora a sua própria katana bem como a corrente que lhe era característica, resignou do combate.
O olhar de Jace continuava fixo nos olhos do seu ultimo adversário quando ouviu a voz de Félix novamente.
 - Jace, o treino terminou. Segue-me. Restantes, treino em pares, com armas de madeira. Não quero que se magoem na minha ausência. Eu volto daqui a pouco, mas vou pedir à Elisa para vos vir assistir.
 - Mas Mestre, eu quero fazer mais alguns combates.
 - Fora de questão. Segue-me.
 - Sim, Mestre.
Jace estava visivelmente contrariado, mas a sua lealdade a Félix impedia-o de o contrariar numa ordem tão directa. Seguiu-o para fora da sala, para fora do edifício, Félix parando apenas na recepção para dar indicação à rapariga presente ao balcão para mandar Elisa para a sua sala. Seguiu para um café do outro lado da rua. Ninguém fez qualquer sinal de achar estranho ver duas pessoas em uniformes de combate negros, já habituados aos praticantes do dojo virem ali para tomar refeições ou uma bebida refrescante.
Félix pediu dois chás pretos e sentou-se numa mesa, fazendo sinal a Jace para se sentar a sua frente. Momentos depois, os chás foram-lhes entregues.
 - Que se passa, miúdo?
 — Nada.
 - Nada me deixou a minha avó. Chegaste à hora de abertura, passaste a manhã desconcentrado, desapareceste durante a minha hora de almoço, e voltas à sessão da tarde a usar golpes que eu nem sabia que conseguias usar. Estás estranho.
 - Sou estranho.
 - Mas hoje estas mais do que o costume. Sabes que podes confiar em mim.
 - Não sei por onde começar.
 - Tenta começar pelo inicio, se possível.
Jace suspirou, levantou-se e pediu um isqueiro e um maço de tabaco. Pagou, tornou a sentar-se e acendeu um cigarro.
 - Não devias fumar...
 - Acalma-me.
 - Acredito. Conta lá o que se passa.
Novo suspiro.
 - Perdi o controlo, Mestre. Usei o que aprendi consigo na escola. Arrumei com três tipos do ultimo ano e desmaiei. Não me consigo lembrar de nada. Passei mais de dois dias inconsciente. Fui suspenso a semana passada.
 - Acalma-te. Já passou. Meteram-se contigo?
 - Não. Atacaram o John. Segundo o que me contaram, eu não parecia eu. Agi por instinto, acho eu.
 - O John é o teu namorado não é?
 - Qualquer coisa como isso.
 - Diz-me uma coisa. Causaste estragos? Ossos partidos, contusões, algo do género?
 - Não. Deixei-os inconscientes.
 - Defendeste que amas. Fizeste bem.
 - Mas... e se torna a acontecer? E se eu...
 - Eu percebo o teu receio. Partilho dele...
 - Tem receio que eu perca o controlo?
Félix demorou a responder. Parecia pensativo.
 - Não. Tenho medo de perder o controlo.
 - Como assim?
 - Há anos atrás, aconteceu-me algo semelhante. Estava num bar, e já tinha bebido um pouco mais que o meu habitual. Apaguei. Provocaram-me. Eu não me lembro de nada. Só me lembro do olhar aterrorizado de um cliente do bar. Eu tinha um taco de snooker partido encostado ao pescoço dele. Ainda hoje penso nisso, no que poderia ter acontecido. Mas eu não posso mudar nada. Passei a evitar ao máximo qualquer tipo de confusão. Mas, Jace, o que tu fizeste, fizeste para defender alguém importante, nunca lamentes ter tido a coragem de defender alguém. Descansa essa cabeça. Relaxa. Não deixes que isso te consuma.
 - Mestre, mas e se da próxima vez eu... se eu não recuperar os sentidos a tempo? Sinto que há um monstro sedento de sangue dentro de mim, e que todo o treino que tenho apenas está a preparar esse monstro para atacar.
 - Jace, lembras-te do ano passado? Quando tu e o Pedro estavam a praticar juntos e ele falhou uma defesa?
 - Mais ou menos.
 - Tu ficaste horrorizado com a possibilidade de teres magoado o Pedro. Insististe em ir com ele para o hospital, e não saíste de perto dele enquanto ele não acordou. Isso não é a acção de um monstro, mas de alguém que se preocupa. Jace, tu és boa pessoa. Um dos miúdos com melhor coração que eu já tive a honra de treinar. Eu percebo as tuas duvidas.
 - O que posso eu fazer mestre?
 - O meu mestre contou-me um historia uma vez. Ele contou-me que todos nós temos dois animais ferozes dentro de nós. Um deles, é bondoso, carinhoso, e preocupa-se com o bem estar dos outros. O outro é egoísta, feroz e sedento de sangue e poder. Eu acredito nessa história.
 - É uma boa analogia. Mas no final, qual deles ganha?
 - Aquele que tu alimentares, Jace, aquele que tu alimentares. Volta para casa, toma um bom banho, ouve musica, lê um livro. Esquece. As questões que te passam pela cabeça não têm uma resposta definida. Tu, ao longo do caminho da tua vida vais obter as respostas, como eu obtive. Ah! Bom trabalho hoje à tarde. Dois combates perfeitos. A tua visão e os teus reflexos estão cada vez melhores. Até a mim me dás trabalho a vencer. Vai descansar miúdo. És demasiado jovem para pensamentos tão adultos.
Jace levantou-se e abraçou Félix. Depois saiu, deixando Félix com o seu chá ainda a meio.
 - Este miúdo vai longe. Só espero que vá longe no caminho certo...

sábado, 10 de maio de 2014

Biblioteca

A última coisa que queria era ficar aborrecido e sem nada para fazer. E os dois dias de suspensão foram um desassossegado aborrecimento, uma quieta inquietação. Tentou ouvir música, ler, programar, jogar. Não conseguia concentrar-se. Desistia, mais irrequieto, agitado e frustrado depois de cada tentativa falhada de se entreter, de tentar não pensar. E o pensamento fugia para questões às quais temia a resposta, o que tornava tais questões sobre si mesmo ainda mais pertinentes de resolver. A frustração era enorme. Não conseguia resposta, mas não conseguia deixar de ouvir a questão ser repetida ad nauseum na sua cabeça.
Estava na biblioteca, na noite de sexta, já depois das 23:00 quando ouviu dois toques na porta.
 - Entra.
Ouviu a porta abrir, ficou momentaneamente cego com a luz.
 - Que estás tu a fazer no escuro?
 - Pensar.
 - Na morte da bezerra.
 - É importante.
 - Aposto que sim. Quão importante? Partilha lá.
 - Falaste com a Ema?
 - Falei.
 - Que lhe contaste?
 - O suficiente para satisfazer as questões dela. Se havia antecedentes. Onde aprendeste aquilo. Se eu tinha noção de que tu andavas com uma arma. Se a questão de perderes os sentidos também já havia acontecido.
 - Que lhe disseste?
 - Tens lume? Deixei o meu isqueiro na cozinha.
 - Toma.
David acende o seu cigarro.
 - Trás lá um digestivo ao pai, vá. Faz-te útil.
 - Dá-me um cigarro, não tenho. Mas que lhe disseste?
Diogo passa um copo de whiskey a David.
 - Disse-lhe que sim, que já antes havias passado por episódios semelhantes. Que já tiveras que passar por lutas e provocações antes. Disse-lhe que tanto quanto sei, é a primeira vez que usas excesso de força e perguntei-lhe o que te levou a lutar.
 - Pelos vistos, o John. Eu não consigo lembrar-me da cena.
 - Foi o que ela me respondeu. Que teria sido por ele.
 - E...?
 - E, o quê? Disse-lhe que estavas a defender alguém importante. E que para isso, usaste o que aprendeste pela primeira vez.
 - E quanto à arma, que lhe disseste?
 - Isso? Respondi que desconhecia que tu andavas armado, porque a corrente que tu usas, com lamina, está em casa excepto em dias de treino, e que a corrente para caniches que tu trazes, com os pesos mais leves, não é uma arma, só um acessório de estilo, um cinto, porque estás na adolescência e é normal existirem certas afirmações estilísticas características da idade enquanto te tentas encontrar. Disse-lhe também que nunca te permitiria carregar algo capaz de colocar vidas em perigo, não que tu o fosses fazer para começar. Acho que deixei bem clara a minha posição.
 - Eles querem que eu deixe de as levar ainda assim.
 - Eu vou ver o que preciso de fazer.
 - Como assim?
 - Puto, dada a tua propensão para atrair sarilhos, eu gosto de saber que podes ter uma vantagem à mão.
 - Pai.
 - Sim?
 - Levas-me ao dojo às 8?
 - Acordar cedo no meu primeiro dia de folga em quase três semanas. Que maravilha...
 - Depois dormes.
 - Eu vou, não disse que não. Tenho que gostar, é?

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Casa

Abre os olhos e observa o seu redor. Nevoeiro denso tolda-lhe a visão, roubando-o da possibilidade de perceber onde se encontra. Tenta recordar-se de algo, qualquer coisa recente que lhe permita fazer uma ideia de onde está e porquê, mas a memória recusa-se a colaborar. Não há nada na sua memoria de curto prazo. Quase como se tivesse acordado de uma enorme ressaca depois de uma noite de excesso de álcool. Mas não podia ser essa a situação. Não sentia nenhum dos sintomas de uma ressaca. Perder a memória deveria ter causado um enorme mal estar no seu estomago, uma dor de cabeça infernal. Não, não sente nada disso. Além disso, mesmo por muito bêbado que esteja, ele costuma encontrar sempre o caminho para casa. Não está em casa. Não se levantou. Abriu os olhos e estava de pé no meio do nevoeiro.
Caminha, sem direcção definida. Passo após passo, durante segundos, minutos, horas. Não tem noção do tempo. À sua volta existe apenas nevoeiro. Poderia ter andado apenas uns metros ou uma dezena de quilometros. Não sabe. Não sente cansaço sequer. Não faz sentido. Nada faz sentido. Suspira. Pergunta em voz alta sem esperar uma resposta.
- Onde estou?
E não esperando uma resposta, foi apanhado de surpresa quando a recebeu.
- Estás aqui.
A voz vinha de dentro do nevoeiro, aparentemente poucos metros à sua frente. Não se sentia ameaçado ou em perigo. A voz era grave, quase melódica. Bastante semelhante à sua própria na verdade.
- Mostra-te.
O nevoeiro pareceu responder à sua ordem, desvanecendo da sua frente, dissipando-se o suficiente para lhe permitir ver uma figura vestida de negro, roupas largas, aparentemente da mesma estatura que ele, o capuz do longo casaco escondendo-lhe o rosto.
- Quem és tu?
A mesma voz respondeu-lhe após um longo suspiro.
- Já te esqueceste? Eu sei bem que há muito não temos contacto. Mas tu sabes quem eu sou. Só tu sabes quem eu sou.
Sim. Ele sabe, sem saber. Ele conhece aquela voz, e aquele porte, e aquele gosto estranho para roupas, e aquele irritante hábito de falar por enigmas. Sempre soube. Conhece aquela etérea figura desde sempre. Desde que se recorda de si, recorda-se dele. Sempre esteve lá. Aparecia nos momentos mais estranhos. Normalmente sempre quando ele mais precisava de ajuda, quando ele se sentia só e desamparado e perdido.
- Onde estamos?
- Em lado nenhum. Em todo o lado. Onde queres estar?
- Que raios queres dizer com onde quero estar?
- Vá lá, responde. Onde queres tu estar?
- Neste momento? Não sei.
- Exacto. Como não sabes, não estamos em lugar nenhum. Poderíamos estar num lugar onde quisesses estar.
Ele não responde. Inspira fundo. O ar tem um odor sulfúrico, leve mas presente.
- Não é muito relevante onde estamos, pois não?
- Para mim nunca foi. Para ti, as vezes é. Acho que agora não é uma dessas vezes, ou estaríamos lá.
O homem à sua frente dá dois passos na direcção dele, removendo o capuz. O rosto é esguio, magro, tem olheiras profundas debaixo dos olhos castanhos escuros, quase negros. Aparenta ter uns 20 anos, talvez um ou dois mais. O cabelo cinzento prateado cai-lhe sobre o olho esquerdo numa mecha única, o restante apanhado atrás da cabeça num rabo de cavalo que cai pouco abaixo dos ombros. Estende-lhe a mão e espera que ele a tome num aperto de mão que ele demora momentos a retribuir. Na verdade nem sabe bem porque o faz. Acaba por questiona-lo.
- Porquê a formalidade?
- Deve-se sempre cumprimentar um Homem.
Há enfase na palavra homem, um reforço que ele não esperava.
- Agora sou um homem, é?
- Para mim, sim. E um homem merece um bom aperto de mão.
- Nunca o tinhas feito antes.
- Presumo que não precise de te explicar isso.
- Acho que não. Desapareceste. Há anos que não tínhamos contacto.
- Sim. Passaram anos.
- Estás com ar de quem não dorme há uma semana.
- Não te preocupes com isso. Diz-me, como te sentes?
- Além da confusão de não ter a porcaria de ideia nenhuma de onde estou ou como vim aqui parar? E do desejo de estar em casa, na minha cama?
- Sim, além disso.
- Não sei.
- Exacto. E cá estamos novamente. Sentes-te perdido?
- Claro que sim, não faço ideia de onde estou.
- Claro que fazes. E não me referia a sentires-te perdido no espaço.
- Um bocado, sim.
- Casa, dizes tu? Na tua cama?
O nevoeiro dissipa-se e de um momento para o outro dá por ambos no seu quarto, no seu apartamento, em pé ainda, junto à sua cama.
- Que raio?
O homem sorri.
- Assim estás localizado no espaço. Menos uma coisa a preocupar-te.
- Isto não é real.
- Nem deixa de o ser.
- Isto não é a minha casa.
- Claro que é. O teu apartamento. A tua cama. Casa.
- Mas eu não vivo aqui.
- Disseste que querias estar em casa, e estás. Não disseste que querias estar onde vives.
- É a mesma coisa.
- Não. Isto é casa. A tua casa. O teu lar.
- Não é aqui que eu vivo ha quase um ano.
- E nunca deixou de ser casa. Tu sabes disso, ou não seria aqui que estaríamos.
- Enfim... que queres?
- Eu? Nada de especial. Queria ver-te. Saudades sabes?
- Tu? Saudades?
- Sim, qual é o espanto?
- Nada. Não faz parte do que me lembro de ti.
- Tu mudaste. Eu mudei. Simples.
- Que queres tu dizer com isso?
- Estas perdido de novo, e a precisar de mim. Como sempre, aqui estou.
- Nunca apareces quando eu preciso. Apareces quando te apetece.
- Errado. Eu só apareço exactamente quando tu precisas de mim. Já devias saber disso há muito tempo. Na verdade, acho que nunca precisaste tanto de mim como neste momento.
- Porque dizes isso?
- Porque tu estás a ser casmurro que nem uma mula.
- Caralho, explica-te.
Novo sorriso no rosto do homem, que se dirige à cama e se senta nela.
- O que estás tu a fazer?
- Em que sentido?
- Em todos.
- Não sei o que te responder a isso.
- Mas eu sei. Estás a fugir de ti, a exilar-te de ti próprio. A fugir de casa, o que é extremamente irónico quando tu vivias sozinho.
- Não estou a fugir de nada.
- Estás. Estás a fugir de ti mesmo, a agarrar-te estupidamente a um passado que não é real. Estás a viver o que te tentaram incutir, a sofrer por aquilo que não fizeste, e a impedir-te a ti mesmo de viver. Estás a fugir da tua cidade, a escapar das memorias que esta te trás, em vão, quando estás a deixar que estas se apoderem de ti, e pior, estás a deixar que a tua mente distorça a realidade para servir propósitos que não são os teus. Nunca precisaste tanto de um par de chapadas de bom senso como agora, e tu fizeste muita merda.
- Continua.
- Estás a gostar de ouvir, é?
- Nem por isso.
- Eu sei. A verdade dói, e é por isso que tu me pedes para continuar. Esperas que te diga o que fazer. Bem, tu sabes o que fazer.
- Se sei, porque estou perdido?
- Ah! Agora já estás perdido?
- Foi o que disseste.
- Porque é a verdade. Ouve, eu sei que gostas dela. Tens todas as razões para gostar. Mas não podes fazer isto a ti mesmo. Não precisas perder nada para te encontrares, sabes? Tu sabes bem onde é casa. Tu sabes onde pertences. Infelizmente, não consegues o que queres. Não existe essa oportunidade. Mas isso não quer dizer que tenhas que estar ali, isolado, miserável. Queres estar isolado quando estas longe dela, força. Sempre foste um bichinho do mato de qualquer das formas. Aprendeste tanto, fizeste tanto. Descobriste tanto, sobre ti e sobre o mundo. Não és nenhum demónio, como insistes em chamar-te a ti mesmo. Isso são coisas que te fizeram acreditar, e tu no fundo sabes disso. Eu sei bem que sabes. Estás a torturar-te a ti mesmo, baseado numa mentira que estás a contar a ti mesmo. E pior, estás a atirar a responsabilidade da tua indecisão para longe de ti mesmo. No fundo, tu sabes que é possível ter o que queres, o que precisas. Tens que parar de fugir de ti, sabes? Já chega. Estás bem já. Estás curado. E tens a força para voltar ao que tu gostas de fazer, e a capacidade de o fazer. Mas estás a recusar-te a tentar, por uma estúpida mentira que estás a contar a ti mesmo.
- Que mentira?
- Distancia é distancia. Não importa se são 50 ou 200 quilômetros. Se não estás perto, se não tens de momento a possibilidade de estar perto, ao menos deixa-te de desculpas e volta para casa. Espera. Comunica. A distancia doi. Mas a distancia já vos está a doer de qualquer das formas. Não precisas de sentir a dor da distancia, e a dor de estar longe de ti mesmo. Já basta estares longe de quem queres. Não fujas de ti também. Já devias ter aprendido isso. Já passaste o suficiente para saberes disso. Está na altura, sabes?
- Na altura de quê?
- Na altura de te perdoares. Estas a causar mais estragos, e não estás a resolver nada de qualquer das formas. O que causaste ficou no passado. Não vais poder mudar isso. Não vais recuperar quem perdeste ou curar quem feriste ou ressuscitar quem mataste por te continuares a agarrar à culpa. Mas estás a matar-te a ti mesmo. Tu sabes que já não és isso. Que ha muito que não és o que eras. E aquilo que te podes tornar, aquilo que no fundo és, está a ser impedido de desabrochar por essa estupida decisão de te continuares a culpar. A escolha é tua, e não escolher é uma escolha. As palavras são tuas. Chega de merdinhas, e de desculpas. Tu tens a força e a inteligência para o fazer, e estás a desperdiça-las no fim do mundo, onde nada te espera, onde nada tens.
- Tenho-os a eles.
- E não vais deixar de os ter. Sabes bem que não. Mas tu precisas de outra coisa além deles.
- O quê?
- De ti mesmo. E estás a impedir-te de te tornares em ti mesmo.
- Não costumas dar respostas tão directas.
- Não, não costumo. Mas com um homem fala-se directamente. Tornaste-te um, mesmo sem teres a consciência de tal. Está na hora de deixares isso servir os teus propósitos. Vais sofrer, mas tu conheces bem a dor. Não tens medo dela. Deves a ti mesmo isto. Estás quase. Nunca estiveste tão próximo como agora. Mas estás a bloquear o teu próximo passo. Está na hora de dares esse passo. Estás quase a chegar onde deves estar. Faz isso por ti.
- Onde é que eu devo estar?
O homem sorri, um sorriso terno, quase carinhoso.

Ele acorda, na cama onde adormecera. 3:00 da manhã. Suspira e volta tapar-se. Tem tanto para fazer, mas a manhã ainda está longe de chegar. É tempo de dar mais um passo. De manhã, será necessário começar a dar esse passo.

domingo, 16 de março de 2014

Suspensão

John encontrou Ema na sala de professores, ocupada a preparar aulas, sozinha. Ema gostava do sossego da sala de professores durante o primeiro tempo. Os colegas que não tinham aula a essa hora chegavam mais tarde, os restantes encontravam-se nas respectivas salas com as suas turmas, permitindo-lhe quase duas horas de sossego para preparar aulas ou tratar de assuntos referentes à direcção da turma a si entregue.
Estranhou ouvir bater na porta, mas respondeu.
 - Entre.
John abriu a porta, percorrendo a sala com o olhar.
 - Entra, John. Precisas de algo, querido? Não devias estar na aula?
John entrou, fechando a porta atrás de si.
 - O Diogo voltou.
 - Onde está ele?
 - No café. Pedi-lhe para esperar enquanto eu vinha avisá-la. Ele queria ir à aula. Fui eu que disse que era melhor falar consigo primeiro.
 - Fizeste muito bem. Eu quero falar com ele antes de ele entrar no recinto. São quase 9 horas. Dá-me um momento enquanto arrumo esta confusão. Esperas por mim junto ao portão da escola, por favor?
 - Com certeza.
John saiu, seguindo para o portão da escola. Ema arrumou o material na pasta, guardando-a no seu cacifo. Apanhou o porta moedas, o isqueiro e o maço de tabaco e apressou-se a ir ter com John. Precisava perceber o que se passara com Diogo.
Ema estava a arriscar a posição dela, o seu emprego e a sua estabilidade ao proteger aqueles dois. Aos 38 anos, Ema tivera um punhado de grandes alunos. Recordaria cada um deles até ao final dos seus dias. Mas havia algo naqueles dois que fazia com que ela estivesse disposta a arriscar-se por eles. Menos de seis meses, e eles haviam conquistado o coração dela. Ema sabia que não haviam sido eles a começar a situação. Falara com todos excepto Jace. Ninguém ousou mentir-lhe. Temiam Jace. O director estava furioso, exigia suspensão igual para todos. Isso incluía Jace. Tratava-se de passar uma mensagem. Violência não seria tolerada dentro do recinto. E agora Ema teria que ser o corvo da tempestade, teria que dizer a um dos seus meninos prodígio que iria ser suspenso por ter defendido quem amava.
Saiu do portão da escola, acendendo um cigarro. Fez sinal a John para indicar o caminho, e seguiu-o sem dizer uma palavra.
Apagou o cigarro, inspirou fundo e atravessou a porta do café. Dentro, o ambiente era escuro, parcamente iluminado, o contraste com o ambiente exterior cegando-a momentaneamente até os seus olhos se adaptarem à penumbra.
 - Bom dia. Posso servir-lhe algo?
A voz doce da dona Céu, acolhedora e simpática, surpreendeu Ema.
 - Bom dia. Procuro um rapaz...
Céu cortou-lhe a frase a meio.
 - O Jace está lá em cima, sala do fundo. O John sabe disso. Presumo que você seja a directora de turma. Ema, certo? Você parece ter visto um fantasma, Ema. Está pálida, como quem não tem orgulho do que vai fazer. Sim, eu sei. Não vale a pena dizer-me que eu não devia saber disso só de olhar para si. Demasiados anos a dar de beber a almas atormentadas. Suba. Vou fazer-lhe um chá. Lembre-se, estes dois são importantes. Você pode ajudá-los. Faça-o.
 - Como...
 - Shiu... vá lá falar com o Jace. Já lhe levo o chá. John, podes ajudar-me a mudar o barril de imperial por favor?
John acenou afirmativamente, e Ema subiu as escadas. Atravessou a primeira sala e encontrou Jace na seguinte, encostado à parede, fumando um cigarro de olhos fechados.
 - Bom dia, Ema.
 - Bom dia, Diogo. Como te sentes?
Jace puxou mais um bafo, sustendo o fumo nos pulmões um longo momento, libertando-o em vários anéis de fumo.
 - Confuso.
 - Confuso?
Jace suspirou.
 - Acordei de manhã a pensar que era terça-feira. Chego aqui e descubro que é quinta, que passei dois dias e meio inconsciente, que me envolvi numa luta que não recordo por mais que tente, que pela primeira vez usei o que sei fora do dojo, para defender alguém que me é querido, e que, devido a tal, vou ser suspenso, ou expulso, quando não fui eu ou o John a começar seja o que for. Não acha suficiente para me sentir confuso?
Ema demorou uns momentos a responder. Não podia imaginar o que se estava a passar dentro da cabeça de Jace naquele momento.
 - Diogo...
 - Fora das aulas, chame-me Jace, Ema. Deixemos de formalidades.
 - Muito bem. Jace, o que te lembras daquela tarde?
 - Fui aos correios a correr depois da sua aula. O John foi almoçar sozinho. Quando entrei na escola de novo vi um grupo em volta de John. A única coisa que me lembro é ver John levar um soco. Tenho um flash do John a olhar para mim apavorado. Mais nada.
 - Jace... aquilo que tu fizeste...
 - Foda-se, Ema. Aquilo que eu fiz, segundo o John me contou, foi defender quem gosto. Aquilo que aconteceu foram os últimos 5 anos de dor e humilhação a virem acima. Eu sobrevivi a isso. E eu não vou deixar que o John passe pelo mesmo. E se não posso racionalizar com eles, talvez esteja na hora de lhes mostrar que não são tão fortes quanto pensam. Cansei de engolir em seco, Ema. Cansei de me restringir e deixar os idiotas fazerem o que querem. Eu sou melhor que eles em tudo, e estou farto de ser apontado por isso. Eu aguento muito. Mas não aguento ficar parado enquanto os que me são importantes são magoados quando eu tenho a capacidade de os defender.
 - Eu não te culpo pelo que fizeste, Jace. Pelo contrário. Eu falei com o teu pai. Ele contou-me dos treinos, e contou-me aquilo por que tu passaste. Tu, tal como o resto, estás suspenso até amanhã. Para mim, e para o director, é irrelevante se passaste metade da tua suspensão inconsciente. Eu lamento, mas não consegui evitar que apanhasses suspensão. Mas há outra questão, Jace. Não podes vir novamente com armas para a escola.
 - Isso implica que eu não posso vir à escola. O meu corpo tornou-se uma arma, Ema.
 - Menos, Jace, menos. Nada de correntes escondidas, só isso. Tens uma sorte enorme em legalmente não existir nada que preveja a ilegalidade das tuas correntes. Felizmente, nenhuma lei te impede de as carregar contigo. Faz isto por mim, Jace. E por ti.
 - Sem promessas. Posso pensar em deixar de trazer as correntes, mas já disse. Eu sou uma arma.
 - Jace, esquece. Cumpre isto. Não tragas as tuas correntes, só isso. Não sou eu a dizê-lo, é ordem do director.
 - Eu compreendo.
 - Não podes ir ás aulas até segunda-feira.
 - Mas hoje é dia de clube de informática.
 - Também não podes ir hoje. Vai para casa. Descansa. Voltas segunda-feira, fresco e de baterias carregadas.
 - Só tenho autocarro às 6 da tarde. Normalmente nas quintas o meu pai vem buscar-me depois do clube.
 - Queres que te deixe em casa? Não moras assim tão longe, consigo deixar-te e voltar a tempo da aula.
 - Bem, talvez seja melhor.
 - Sendo assim, anda, senão chego atrasada e esta semana já está um caos suficientemente grande sem eu ter que justificar uma falta minha.
 - É só pagar o pequeno almoço e despedir-me da dona Céu e do John.
 - Sem problema. Jace...
 - Sim?
 - Bom trabalho.
Jace pagou, deu um beijo rápido a John e outro à dona Céu e saiu com Ema. Tinha um fim de semana prolongado pela frente. Arranjaria certamente algo com que se entreter.


domingo, 2 de março de 2014

Problemas

Ao lado de John, Jace não sentia dor ou vazio. Sentia felicidade. Sentia-se especial e gostava de tentar demonstrar que John também era especial para si. Jace não sabia até aí o que era ser feliz, o quão bom, quão sublime é amar e ser amado. Porque mais do que a paixão que havia dentro de si, o que mais existia era amor. Empatia, familiaridade, afinidade... Mas sobretudo amor. E para ambos, o amor que sentiam e partilhavam era novo e excitante e perfeito no facto de eles serem tudo um para o outro.
Mas toda a perfeição e felicidade eventualmente atrairia atenção externa, e depois da atenção a descriminação depressa se generalizou. Já nem importava quem testemunhara aquele beijo, a verdade é que na segunda-feira seguinte já toda a escola sabia dele. Não tardaram a notar os comentários quando passavam. Jace e John passaram a odiar ainda mais segundas-feiras.
Durante toda a manhã ouviram outros a chamar-lhes paneleiros, rabetas, panilas, entre um chorrilho de outros insultos murmurados. Era impossível não notar. Falavam sempre baixo, mas garantindo que a eles seria perceptivel.
Coincidência, destino ou mero azar, David pedira a Jace que lhe fosse colocar um envelope no correio antes das 13:00. Devido ao pedido, assim que saíram da aula da directora de turma as 12:45, John foi almoçar, enquanto Jace corria para apanhar os correios ainda abertos antes da pausa para almoço. Jace fez o percurso remoendo a raiva, imprimindo-a no passo rápido e pesado.
Conseguiu chegar aos correios nuns dez minutos e enviar o envelope a tempo.
Voltou o mais rápido que pôde, esperando apanhar John ainda a almoçar na cantina. Além disso, a raiva dera-lhe fome.
Entrou na escola, seguiu para a cantina. Ou pretendia seguir, não fosse a pequena multidão que se juntara no pátio. Viu John no centro. Viu John levar um soco.
A próxima memória de Jace era o olhar aterrorizado de John ao olhar para si. Havia um peso familiar nas suas mãos. Desmaiou, o seu ultimo reflexo o de agarrar com a vida o peso em suas mãos.
(...)
Acordou na cama. Olhou o relógio na mesa de cabeceira, os dígitos vermelhos sobressaindo no escuro. 3:00 da manhã. Voltou a fechar os olhos. Não interessava, podia dormir mais um pouco.
(...)
Acordou com o despertador. Horas de banho, pequeno-almoço à pressa e correr para o autocarro. Rotina matinal em piloto-automático. O despertar efectivo de Jace viria mais tarde, não precisava de estar muito consciente para a rotina. Beijinho de bom dia à avó. Leite com café e torradas. Sair a correr de casa com a mochila. Apanhar autocarro. Colocar phones e ligar musica. Dormitar encostado à janela do autocarro. Descer. Caminhar em direcção do café. Sentar. Esperar. Mexer. Beber. Bom dia, John, bom dia, Dona Céu.
 - Bom dia, John. Bom dia, dona Céu. O que vamos ter, John?
 - História.
 - História? Isso é às segundas e quintas.
 - É quinta.
 - Não! É terça.
 - Jace, qual é a tua ultima memória?
 - Acordar? De manhã?
 - E antes disso?
Lembrava-se de segunda-feira. De ver John levar o soco. Do olhar aterrorizado dele. Do peso. De perder os sentidos e ter acordado de madrugada. Nada mais. O choque era evidente na sua expressão.
 - Lembro-me de te ver levar um soco. De te ver a olhar para mim como se tivesses medo de mim. De perder os sentidos logo após. Devo ter desmaiado.
 - Não te lembras de mais nada?
 - Não. Que aconteceu?
 - Desmaiaste. Estiveste no hospital. Foste para casa na segunda à noite. Estiveste inconsciente terça e quarta.
 - O QUÊ?!
 - Lembras-te da luta?
 - Que luta?
 - Não te lembras?!
 - Não me lembro de nada, só do que te disse. Que luta estás tu a falar?
Foram interrompidos pela dona Céu.
 - Vão lá para cima, estão mais sossegados. Tostas de frango e dois galões?
 - Sim, acho que ficamos por aqui, não vamos à aula. Anda Jace.
Subiram para a sala do fundo.
 - John, conta-me tudo o que sabes. Desde que eu saí de perto de ti em matemática.
Havia uma sombra no rosto de John. Acendeu um cigarro, revendo mentalmente a sequência de eventos. Fumou metade dele antes de começar a falar.
 - Tu saíste depois da aula. Eu fui almoçar.
Parou. Inspirou fundo.
 - Vinha a atravessar o pátio para vir para aqui. Pensei que te devia encontrar pelo caminho. Bloquearam-me o caminho, começaram a empurrar-me, chamaram-me nomes, a mim e a ti. Um deles deu-me um soco e eu caí. Foi quando tu apareceste. Meteste-te à minha frente, entre mim e eles. Tinhas as mãos na cintura. Não disseste nada.
 - Não me lembro de nada disso.
 - Tentaram provocar-te, mas sem resposta tua. Um deles tentou dar-te um murro. Só aí tu reagiste. Foste bastante rápido. Só depois me apercebi do que tinhas tirado da cintura. Atiraste uma corrente ao braço dele, ela prendeu e tu puxaste, deixando-lhe um pé à frente. Ele desequilibrou-se, tropeçou e caiu de cara no chão. Dois dos amigos dele foram na tua direcção. Atiraste a corrente à cabeça de um, apanhaste-o na têmpora. Acho que ele desmaiou. Deste uma pegada no estômago do outro, seguida de uma pancada com a outra ponta da corrente na testa dele. Toda a gente ficou abismada, sem reacção. Estávamos todos assustados depois de te ver em acção. Parecia que não estavas ali. Eu tentei agarrar-te e tu viraste-te a mim como se fosses eliminar-me também. Olhaste para mim, e depois desmaiaste.
 - Lembro-me só de olhar para ti, e de sentir as forças a desaparecerem do meu corpo.
 - A cena gerou demasiada confusão, os professores aperceberam-se. Eu, tu e eles os três fomos para o centro de saúde. Tu ficaste. Fomos examinados. Ninguém tinha nada partido, mas um deles tem vários arranhões na cara de ter caído.
 - Que aconteceu depois?
 - A Ema falou conosco, todos juntos e depois um a um. Quer falar contigo também.
 - Quão dura foi contigo?
 - Eu safei-me. Eles os três ficaram esta semana de suspensão.
 - Alguém se meteu contigo depois disso?
 - Não. O pessoal ficou chocado.
 - Chocado com quê?
 - Jace, tu desfizeste três tipos do ultimo ano, com um ar de quem nem percebeu o que aconteceu, e desmaiaste em seguida. Como se estivesses noutro mundo. Onde raios aprendeste aquilo?
 - O quê?
 - Aquilo que fizeste com a corrente-
 - Ah! Ninjutsu. Pratico aos fins de semana desde pouco depois de ter entrado para a escola.
 - Não me tinhas dito nada.
 - Não digo muita coisa.
 - Nota-se, senhor caixinha de surpresas.
 - A Ema vai querer falar comigo. Vou levar suspensão de certeza. Estou a espera de uma bela reacção na escola também.
 - Não me parece que te digam seja o que for. Fica aí, come. Eu vou falar com a Ema, dizer que estás aqui e ver o que ela quer fazer.
John saiu, e a dona Céu entregou-lhe momentos depois duas tostas de frango e um enorme galão, bem escuro, tal como ele gostava. Sentia fome, por qualquer motivo.
 - Bom apetite. Três dias sem comer devem dar fome.

Conversas

Refugiaram-se na sala do fundo do café do costume, acompanhados de dois cafés, oferta da dona Céu, porque "ambos pareciam precisar".
Começaram um jogo de pool, bola 9, ainda em silêncio, despejando os cafés e acendendo um cigarro cada um. Dentro de ambos havia tanto a dizer, tanto a perguntar que nenhum sabia bem por onde começar.
Diogo quebra o silêncio após um rápido final de jogo da parte de John, sem ter feito uma tacada.
 - Porque me beijaste?
Diogo abre o jogo, colocando a bola 7 num dos buracos do fundo.
 - Porque respondeste?
Diogo taca a bola 1 para um dos buracos centrais.
 - Foi instintivo.
Bola 2 e 5 aos buracos do centro.
 - Gostaste.
Bola 8 no buraco do centro.
 - Não sei.
Bola 9 no buraco do centro. Diogo ganha.
 - Não era uma pergunta.
 - Sim, gostei.
 - Gostas de mim?
 - Passaria tanto tempo contigo se não gostasse?
 - "Naquele" sentido?
 - Qual sentido?
 - Tu sabes...
 - Não sei de nada. Explica-te.
 - Se gostas de mim como algo mais do que amigo.
 - Gosto de ti como o meu melhor amigo, como de um mestre, como de um exemplo a seguir. Eu não costumo pensar em termos romanticos.
 - Mas tu reagiste. Gostaste.
 - Sim. Que queres que te diga a isso?
 - Quero que me digas a verdade, Diogo.
 - Que verdade?
 - É como tentar falar com um computador, irra. Gostas de mim? Merda mais as perguntas formais, Jace. Gosto de ti. Sim, gosto de gajos.
 - Não tinhas tido namoradas?
 - Tive. O que mais ainda ajuda a saber. Não sinto nada por mulheres. Apaixonei-me por ti aos poucos. Desde aquela tua apresentação que me ficaste marcado. Colei-me a ti devido a ela, e tu fizeste-me gostar, adorar, tudo o que és.
 - Tretas. Sou só um puto.
 - Jace, tu estás longe de ser puto. Disseste que me vês como mestre, mas na verdade ensinaste-me imenso.
 - Estás só frágil devido ao acidente.
 - Alguma vez te esbofetearam?
 - Não. Normalmente levo mesmo murros.
John foi rápido demais para as defesas em modo passivo de Diogo. Este sentiu o impacto da chapada uma fracção de segundos depois de se aperceber do gesto de John.
 Ainda se estava a aperceber da dor quando sentiu o sabor dos lábios dele nos seus. Fechou os olhos e entregou-se sentindo-se envolvido num abraço que de imediato devolveu, todo o turbilhão de pensamentos roubado da sua mente pelo desejo e o prazer que o beijo de John lhe proporcionava.
 Olhos fechados, ignoraram a silenciosa e inesperada testemunha da sua entrega ao desejo em seus corpos e almas.
 Só após minutos se separaram, e apenas aí Diogo perguntou:
 - Jace?!
 - É melhor que marrão. E o nome é a tua cara.
 John iluminou o seu rosto num sorriso derretido. Diogo ponderava a questão.
 - Jace. Gosto. Jace. Eu sou o Jace. Todos deveríamos definir quem somos. Sou o Jace. Gosto de ti, John.
Beijaram-se de novo.
O mundo continuava o mesmo, mas eles haviam mudado.

Regresso Às Aulas

Não falaram daquela noite. Na segunda semana de férias, Diogo esteve sozinho em casa, sem quase sair da biblioteca. Os avós estavam consigo, David apenas voltaria depois da passagem de ano.
Diogo enterrou a noite de Natal atribuindo os acontecimentos ao álcool. Durante a primeira semana de aulas bebeu café com John, em silêncio. Faltavam as aulas, mas não passavam tempo juntos. Apareciam alternadamente, e isso levantou suspeitas a alguns professores desde logo. Ou iam juntos, ou faltavam juntos, era essa a norma. Segunda feira tinham história e matemática em seguida. Diogo foi a história, sozinho. John apareceu a matemática. A directora de turma estranhou de imediato, mas não disse nada. No final desse dia voltou a olhar o livro de ponto. Haviam repetido a situação durante a tarde. Fizeram o mesmo nos dois dias seguintes.
Na quinta, depois de tornar a ver a repetição da questão, já que John estava presente, mas faltara a história, enquanto Diogo fora a historia mas estava agora a faltar, fez a chamada, anotou Diogo como presente e olhou a sala, passando por cada um dos presentes antes de falar.
 - Bom dia, turma.
Um eco de diversos murmúrios de bom dia.
 - Sara, fazes-me um favor, querida?
 - Que favor, stôra?
 - Vais a biblioteca e dizes ao Diogo para vir ter comigo. De imediato.
A rapariga cumpriu a ordem, mas Diogo ficou relutante em aceder. A directora de turma nunca o havia mandado chamar a uma aula antes. Normalmente deixava-os em paz. Acedeu, seguindo a colega num passo lento, olhos fixos no chão à sua frente. Entrou na sala, murmurou um bom dia e foi sentar-se ao lado de John. Os olhos de ambos não se cruzaram, eles não deram qualquer sinal de terem notado a presença um do outro. A professora notou isso, apesar de mais ninguém ter prestado atenção.
 - Turma, têm como trabalho de casa os exercícios da página 100 à 110.
Um dos rapazes exclamou em resposta um:
 - Isso é muito!
 - Bem, Roberto, eu ia dispensá-los por hoje, mas se o Roberto prefere, você e o resto da turma podem ficar aqui a fazer esses mesmos exercícios e levar a página 111 à 120 para trabalhos de casa, sendo que quem não os apresentar na segunda leva falta aos dois tempos. Que acha?
Um burburinho elevou-se na sala, Diogo e John sem se manifestarem. Todos pareciam concordar com a dispensa e o trabalho de casa.
 - Bem, como é? Roberto, ainda acha muito?
 - Não, stôra.
 - Optimo. Uma coisa. Isto é dispensa para estudo. Nada de sair do recinto da escola ou não se torna a repetir. Entendido?
Todos concordaram. Depois se veria se cumpririam.
 - Até segunda, turma.
A turma começou a arrumar o material quando a voz da professora se voltou a ouvir.
 - Diogo, John, vocês dois ficam. Resto, despachem-se e nada de barulho no corredor.
Esperou que todos saíssem, fechou a porta e foi sentar-se de frente para eles do outro lado da secretária que ambos partilhavam.
 - Muito bem, meninos, comecem lá a explicar.
Fizeram-se de desentendidos em uníssono.
 - Explicar o quê?
 - Explicar porque andam há uma semana a aparecer alternadamente às aulas.
Foi Diogo quem respondeu.
 - Assim ao menos temos toda a matéria, entre as notas de ambos.
A professora não conseguiu resistir a soltar uma gargalhada sonora.
 - Nenhum de vocês tira apontamentos. Ouçam, podem fingir o quanto quiserem, vocês não estão normais.
 Foi a vez de John responder.
 - Nunca o fomos.
 - Mas vocês têm uma rotina na vossa singularidade. Isto é simples, meninos. Ambos deveriam ter chumbado o ano por faltas a meio do primeiro período. Eu fiz, e enquanto não me desiludirem vou continuar a fazer com que tal não aconteça, apesar de ter avisado o teu pai, Diogo, e a tua avó, John. Mas sabem o que isso significa?
Murmuraram um não em conjunto e deixaram-na continuar.
 - Significa que vocês estão em divida comigo e que, como tal, me vão obedecer, ou acaba-se a professora querida e compreensiva. Não estou, neste momento, preocupada em falar-vos como directora de turma ou como vossa professora, apenas como pessoa. Aquilo que vocês encontraram um no outro é precioso. E vocês estão com qualquer coisa a perturba-los. Não vou deixar-vos fazer isso sem um esforço, e sei bem o quão casmurros vocês são. Portanto, aquilo que vocês disserem a mim ou um ao outro não vai sair daqui, mas vocês não saem desta sala sem resolverem o que quer que seja que se passa e eu aprove a resolução. Entendido? Podem começar.
Nenhum respondeu. A professora deu-lhes um par de minutos antes de os pressionar novamente.
 - Que se passa? Qual é a vergonha afinal? John, vamos lá. O Diogo não vai iniciar. Que aconteceu nas férias? Desembucha que eu não tenho o dia todo, e ao contrário de vocês dois, não tenho um anjinho da guarda a fazer desaparecer as minhas faltas.
 - O John beijou-me e basicamente não sei falar disso e ele também não disse nada e é estranho como isto me está a fazer sentir.
 - Só agora?!
Nenhum dos dois esperava aquela reacção.
 - Como assim, só agora?
Mais uma vez falavam a uma única voz.
 - Pensava que já tinham passado da fase do primeiro beijo há algum tempo.
Não houve uma resposta da parte deles, mas a surpresa era evidente nos seus rostos. Ela resolveu explicar.
 - Vocês são o par perfeito, meninos, a todos os níveis. Salta à vista dos pouquíssimos que percebem. Eu tinha a idade do John quando tive a minha primeira namorada. E naquele tempo as coisas eram bem piores que hoje, se bem que confesso-vos, continua a ser estranho na cabeça de muita gente.
Se antes estavam com um ar de surpresa, este intensificou-se e passou a choque.
 - Que foi? A professora directora de turma não pode gostar de lamber carpete, é?
A expressão aliviou a tensão, colocando um sorriso no rosto de todos, antes de ela continuar.
 - Vivo com a Vânia há anos. Quase cinco anos, na verdade. A minha primeira namorada chamava-se Diana. Não durou mais que seis meses, mas foi estranho, intenso e difícil. Diogo, tu já antes eras posto de lado e provocado. Isso vai voltar a acontecer, sabes? Mas tu és o que és. Não é uma escolha. É simplesmente aquilo que vocês são. Vocês são fortes e inteligentes. Não vos vou obrigar a nada, óbvio. Mas, se querem o conselho de alguém que já viveu isso mais do que vocês, não deixem de ser felizes pelo que o resto pensa.
 - Quem mais pensa como você sobre nós?
 - O Carlos de informática e o José de História. Tanto quanto sei mais ninguém. Não se preocupem nem com os adultos nem com os adolescentes. Aproveitem. Agora desapareçam da minha frente e vão vocês conversar um com o outro. Estão dispensados da tarde, eu trato disso. Não iam aparecer de qualquer das formas, portanto é melhor assim. Eu trato do assunto.
 - Obrigado, professora.
 - O meu nome é Ema fora das aulas, entendido? Nós três vamos voltar a falar. Agora desapareçam. Não se esqueçam dos trabalhos de casa.
Diogo fez um meio sorriso.
 - Como se nós os fizéssemos alguma vez, Ema.
Novo sorriso partilhado entre todos.
 - Entendam-se.
Eles saíram e foram para o café. Havia uma conversa a ter.